Essa plateia se compunha principalmente de mulheres de classe baixa - e o autor da marchinha sugeria que seu lugar era na cozinha. O ator e diretor de rádio teatro Floriano Faissal tinha cunhado um apelido para essas entusiastas: "macacas de auditório". A expressão pegou com uma rapidez fulminante. Como havia um grande número de negras e mulatas entre as fãs - onde quer que se reúna gente pobre no Brasil o percentual de pretos e escuros sobe - e é conhecida a aproximação que se tenta fazer entre o negro e o macaco, a piada trazia implícita uma conotação racista. No entanto, já em 67, ouvi muitas senhoras e garotas distintas da burguesia paulistana "branca" confessarem - com orgulho - que eram minhas "macacas". A palavra macaca tinha substituído a palavra fã, como veio a ser substituída, nos anos 70, pela palavra tiete(de origem obscura: aparentemente nasceu de uma brincadeira do grupo vocal feminino As Frenéticas, a partir da palavra tia). A bossa nova situa-se cronologicamente entre o período em que a expressão "macacas de auditório" foi lançada (e também aquela marchinha) e o surgimento do tropicalismo. Opondo-se à vulgaridade comercial de grande parte do olimpo da Rádio Nacional, havia todo um esforço de criar e consumir uma música respeitável. A bossa nova foi a culminância desse esforço – mas foi também a superação da ansiedade que o exigia: ela realizava uma estilização mais exigente e, ao mesmo tempo, valorizava o passado, conscientizando-nos da grandeza da nossa tradição. O tropicalismo procurava ouvir a bossa nova com os ouvidos de quem tinha frequentado os programas de auditório entre as macacas. Ou melhor: com a capacidade de reconhecer em João Gilberto um ouvido que dava conta da realidade delas. As sutilezas da questão social (e racial) brasileira - tão bem ilustrada pela história das fãs iletradas que foram chamadas de macacas e viram o apelido que ganharam ser assumido com carinho pelas elites da década seguinte -, essas sutilezas foram entendidas pelo gênio de João Gilberto. E é isso que reconheço quando, no lindo texto de Tom Jobim para a contracapa do
primeiro lp de João, se lê: "Ele não subestima a sensibilidade popular".
Não se trata aqui do populismo, substituidor da aventura estética pela adulação dos desvalidos e barateador das linguagens, mas da coragem de enfrentar a complexidade da dança das formas na história da sociedade. Este livro, por exemplo, eu creio que o escrevi por causa de Nova Iorque. É uma cidade curiosa. Muitos residentes dizem que ela não tem nada a ver com os Estados Unidos, que é uma cidade do mundo, mais distante das cidades americanas típicas do que de outra grande cidade de qualquer lugar. Mas o fato é que todos sabem que só os Estados Unidos produziriam uma cidade como ela. No inicio dos anos 80 fui pela primeira vez a Nova Iorque. Senti-me surpreendentemente à vontade, como nunca tinha me sentido na Inglaterra ou mesmo na Europa continental, ainda que itálica ou ibérica. Logo entendi por quê: estava - como no Rio ou em São Paulo, em Salvador ou em Santo Amaro - em território americano. É complexamente estimulante, para quem se sabe, enquanto ocidental, profundamente sul-europeu católico, sentir-se à vontade na capital saxã do Império Mundial. Uma palavra indígena nomeia a ilha em que se erguem os desfiladeiros de arranha-céus, os quais não transcendem a vulgaridade apenas por se apresentar - como notou Lévi-Strauss - antes como acidentes geográficos do que como arquitetura, mas também por elevar-se à condição de obras humanas atemporais: ao vê-los, vivenciamos ao mesmo tempo a força de sua lenda, como se eles já tivessem sido destruídos há muitos séculos. A palavra Manhattan, que encontrei no espantoso "Inferno de Wall Street", do poeta romântico brasileiro Sousa Andrade, tomada, por força da métrica e da rima, pelo que ela soaria se a lêssemos à portuguesa - Manhatã-, volta, com essa aparência de palavra tupi, à minha mente sempre que ando por esses desfiladeiros pontilhados de portais dourados. Manhatã, Manhatã, cantarolo com carinho e sorrio em face do entendimento imediato que posso ter da aventura norte-americana, de sua realidade fatalmente mestiça. (Não, não menos do que no Brasil: ao contrário desses brasilianistas que querem nos mostrar que o Brasil cultiva um racismo hipócrita e portanto mais nocivo do que o racismo aberto e um dia institucionalizado que os Estados Unidos experimentaram, eu - além de preferir que um racista seja, no mínimo, constrangido a fingir que não o é - penso que a confusão racial brasileira revela uma miscigenação profunda que ocorre inevitavelmente também entre os norteamericanos a despeito de eles fingirem - com suas leis racistas e com suas leis de compensação antiracista - que ela ali não se dá.) A cidade de Nova Iorque, sendo a capital do mundo e, ao mesmo tempo, sendo-me assim tão necessariamente íntima, convenceu-me da existência do mundo exterior (até a minha geração, os brasileiros, moradores de um litoral afastado das fronteiras de um país gigante, não pensavam nos estrangeiros como uma realidade concreta) e me desinibiu para trocar algumas palavras com os habitantes desse mundo. Ela me dá também uma espécie de intimidade com a História- , a monumentalidade aliada à sem-cerimônia produzem naturalidade em face do tempo e da minha capacidade de fazer marcas no tempo. Nova Iorque é o esplendor do Império Americano e também a seta com que ele aponta para um futuro que só o reafirmará superando-o.
Quando, pouco depois da primeira visita, fui ali a trabalho, encontrei à minha espera no aeroporto jfk um americano óbvio a quem tentei dirigir-me falando inglês mas logo ele me respondeu em português perfeitamente pernambucano: era Arto Lindsay, guitarrista atonal e figura histórica na cena musical do Sul da ilha de Manhattan. Ele tinha passado parte da infância e da adolescência no Nordeste brasileiro e a música dos tropicalistas tinha sido muito importante em sua formação. Declarou-se star struck em minha presença - e eu considerei isso um modo de ele, embora sinceramente emocionado por travar conhecimento
com alguém que o impressionara na adolescência, demonstrar (não sem uma ponta de humor) carinho independente por um artista do mundo subdesenvolvido.
Nasceu uma amizade. O show - no Public Theater - foi um desastre para mim. Eu vinha de volta de uma turnê européia que se estendera até Israel e imaginava que em Nova Iorque (para onde Guilherme me levava obedecendo a um seu antigo desejo) trabalharíamos em condições técnicas tão boas quanto as daqueles lugares - ou pelo menos quanto as brasileiras.
Os americanos são muito afáveis. Mas descobri que, pelo menos em Nova Iorque, se você não é uma estrela em nível norte-americano, você não tem muitas chances de contar sequer com equipamentos razoáveis de luz e som. Nada comparável ao que lhe oferecem em Paris, Bruxelas ou Buenos Aires. Carinho não faltava: soube depois que Peter Schere, o parceiro de Arto no grupo Ambitious Lovers, é que operara o som. As negociações de Guilherme se deram através de Fabiano Canosa, amigo brasileiro, então programador do cineclube do Public. E Nancy Weiss, responsável pelo evento, foi dulcíssima. Mas o show, que fora programado para as dez horas, só começou depois da meia-noite porque havia uma apresentação de Orgasmo Adulto escapes from the Zoo que se prolongou indefinidamente. Lembro revoltado que Tomjobim - que estava na cidade e quis ir me ver - esperou duas horas pelo início do espetáculo. (Logo ele que costumava dizer que cobraria 1 milhão de dólares para fazer um show e 2 milhões para assistir a um!) Tínhamos lançado o disco Uns e viajávamos com o show correspondente. Eu sempre excursionava com o mesmíssimo show que fazia no Brasil. Entramos no palco do Public Theater para apresentar nosso subpop através de amplificadores pífios sob poucas lâmpadas. O Uns que mostramos ali era para nós um centésimo daquilo que sabíamos que ele era - e nunca achamos, embora o amássemos, que ele fosse muito grande coisa. Mas parece que se está acostumado a isso em Nova Iorque, pois embora o público tivesse me parecido frio durante a apresentação - e eu tivesse chorado de vergonha nos dias que se seguiram -, lemos elogios nos jornais e eu fui procurado por Bob Hurvitz, do selo Nonesuch, que se dizia encantado com o que vira e ouvira. Hurvitz foi quem, mais tarde, me fez gravar um disco em duas tardes - um disco que saiu bonito - e, depois ainda, animou-nos, a mim e aos Ambitious Lovers Arto e Peter, a fazer o álbum Estrangeiro. Isso me pôs em contato com instrumentistas, escritores, gente do mundo das artes de Nova Iorque.
Creio que foi em 86 que lancei, numa tumultuada sessão no festival de cinema do Rio, o filme O cinema falado-o primeiro e, até agora, único longa-metragem que dirigi. Para esse mesmo festival, David By rne trouxera seu True stories. Assim, foi por causa do cinema que se deu esse encontro tão cheio de consequências sutilmente decisivas para mim e para nossa música. David tinha chegado ao Brasil com certa antecedência, acompanhado de sua mulher Bonnie, e os dois tinham ido por conta própria à Bahia antes de desembarcar no Rio de Janeiro. Eles chegaram de lá entusiasmados com o que ouviam no rádio. Pelas descrições que me davam, não me era possível decidir se eles tinham ouvido forró ou a nova música de Carnaval de Salvador que os jornalistas apelidaram (algo maldosamente, mas com involuntária graça) de "axé music". Possivelmente eles tinham ouvido ambos os gêneros e algo mais. O que me fascinava era o crescente interesse de David num tipo de produção musical que jamais atraíra (ou atrairia) os músicos do jazz-fusion ou do rock sofisticado que nos visitavam. O resultado - que eu já adivinhava - foi que em breve ele estaria às voltas com a produção dos tropicalistas. A primeira coletânea que ele lançou de pop brasileiro enfatizava a liberdade e a inventividade dos sons de nossas gravações dos anos 70 - e isso era como uma notícia diferente sobre o Brasil. E, embora ele me tenha mostrado uma fita com suas escolhas e me pedido opinião, eu me neguei a dar palpite pois acreditava que a pureza de sua primeira impressão é que daria caráter ao disco. A única observação que não pude reprimir foi a de que a ausência de Paulinho da Viola me parecia inexplicável e inaceitável. Mas David não mexeu nisso. Algo mais importante, no entanto, estava por acontecer. É que David, tendo comprado uma quantidade de discos de e sobre samba, levou no bolo um álbum de tom Zé - Estudando o samba - que o surpreendeu e apaixonou. A apresentação que ele fez de tom Zé, primeiro numa coletânea lindamente editada, depois numa produção com inéditos, foi a confirmação e o aprofundamento da originalidade e pertinência de sua visão de nossa música moderna. tom Zé estava esquecido no Brasil. E os discos de caráter experimental dos anos 70 eram em geral considerados datados e fora de moda. A atenção de By rne mexeu com a imprensa brasileira, com a vida de tom Zé, conosco. E abriu uma nova faixa de diálogo internacional para a nossa música.
A mpb pós-bossa nova tinha chegado com presteza e intensidade ao mundo exterior na pessoa de Milton Nascimento. Jorge Ben (via Sérgio Mendes) e Gil também já tinham deixado sua marca. Edu, Elis, Dori Caymmi - além dos casos de emigração musical de Airto e Flora Purim - se tornaram figuras respeitadas. Egberto Gismonti e Hermeto Paschoal são mestres reconhecidos em toda parte. E Naná Vasconcelos leva gente de todas as nacionalidades a se sentir diante de um gênio. Depois disso, figuras como Djavan e Ivan Lins chamaram a atenção de colegas do primeiro time em escala mundial. Mas o que se instaurou a partir do momento em que David By rne abriu uma coletânea com Bethânia e Gal cantando "Sonho meu" de d. Ivone Lara e culminou com os discos de tom Zé é algo que diz mais de perto respeito às questões levantadas neste livro. Sempre que vou a Nova Iorque - o que acontece pouco - procuro-o e, embora nos vejamos sempre com brevidade, pois nunca me demoro na cidade, nossas conversas me dão estímulo e prazer.
Um dia chegou à casa noturna nova-iorquina Ballroom, onde eu fazia uma série de apresentações, um fax para mim remetido pelo New York Times. Queriam um artigo sobre Carmen Miranda. A idéia era ter um texto escrito por algum brasileiro ligado à música popular. Alguém na redação confirmou que o possível autor sugerido por um editor brasileiro e por um agente de escritores americano consultados pelo Arts&Leisure eu (que tinha sido, segundo soube depois, lembrado quando se constatou a inviabilidade da primeira escolha. Chico Buarque) - valeria de fato uma tentativa. Além do show no Ballroom. eu estava gravando o que faltava (e iniciando a mixagem) do álbum Circulado, de modo que não via como encontrar tempo e energia para escrever o tal ensaio. Mas terminei fazendo-o. Entre uma sessão e outra, nas próprias esperas de estúdio, sempre prolongadas, nas horas roubadas ao sono difícil, escrevi um texto sincero sobre Carmen. Nele eu punha a figura da pequenina cantora, que é a parte mais conhecida do Brasil no mundo, na perspectiva do movimento tropicalista - e este na perspectiva da mpb. Havia muitos nomes de colegas - muitos deles obscuros para um leitor norte-americano - e meu fraseado era demasiado barroco, de modo que tive muitas e longas conversas com a editora, negociando palavras, referências, ordem de parágrafos. O que me deu mais trabalho do que escrever propriamente, mas a mulher com quem eu falava (sempre pelo telefone) era tão interessante - soava tanto como o que gosto em senhoras refinadas de Nova Iorque - que isso foi também mais prazeroso do que a escrita. E o texto final saiu mais fiel ao meu primeiro impulso do que eu e essa editora teríamos acreditado ser possível.
Por causa do que se sugeria no artigo a respeito do tropicalismo - e por causa do tom com que isso era feito - um editor de Nova Iorque achou que ali se insinuava um livro. Escreveu-me nesse sentido. Fiquei surpreso e grato, mas respondi-lhe que não tinha intenção de escrever livros, e que já tinha recusado insistentes ofertas para fazer isso no Brasil. Mas topei encontrá-lo e terminei capitulando. A bem dizer, tomei a coisa como uma responsabilidade que eu não tinha o direito de evitar. Meu tradicional respeito pelo acaso que desenha o destino me fez aceitar a tarefa. Afinal, do nada saíra o convite para escrever para o NYT, e isso levara um editor nova-iorquino a me encomendar um livro. Talvez fosse uma oportunidade de valorizar e situar a experiência da música popular brasileira em termos mundiais. Quando me dei conta de que aceitara a tarefa, vi logo que, para mim intimamente, se tratava também de um pretexto para escrever e até para ler mais. Era um convite para eu realizar o sonho de me aproximar dos livros, diante dos quais sempre me senti intimidado. Comecei então, com um entusiasmo que agora já me foge, a compor este aqui, de cuja feitura não pensei nem uma vez em desistir desde que tomei a decisão de fazê-lo mas que nunca entendi a quem poderia interessar - nem mesmo se sua publicação poderia de fato se tornar útil para mim e para as coisas que me são caras. Sem decidir sobre nenhum desses itens, eu o completei e - como diria Gertrude Stein na pele de Alice B. Toklas - aqui está.
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