sábado, 27 de abril de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso



TROPICÁLIA

As outras faixas desse disco, que eu levava em frente com idéias entusiasmadas e resultados depressivos, eram todas de composições novas. Uma delas tinha me levado ao auge da excitação no momento em que a concebi. Pensando num velho samba de Noel Rosa chamado "Coisas nossas", que enumerava cenas, personagens típicos e características culturais da vida brasileira, e os emoldurava com o refrão "O samba, a prontidão e outras bossas/ São nossas coisas/ São coisas nossas" (depois de abrir magnificamente com a linha "Queria ser pandeiro pra sentir o dia inteiro a sua mão na minha pele a batucar"), imaginei uma canção que tivesse temática e estrutura semelhantes, só que, como no caso de "Alegria, alegria" em relação a "Clever boy samba", não ficasse no tom simplesmente satírico e valesse por um retrato em movimento do Brasil de então.
Com a mente numa velocidade estonteante, lembrei que Carmen Miranda rima com "A banda" (e eu já vinha fazia muito tempo pensando em bradar o nome ou brandir a imagem de Carmen Miranda), e imaginei colocar lado a lado imagens, ideias e entidades reveladoras da tragicomédia Brasil, da aventura a um tempo frustra e reluzente de ser brasileiro. A palavra bossa, que já estava no samba de Noel (anos 30), se impunha, naturalmente (era claro para mim que ela estaria, como em "Coisas nossas", no refrão da nova música), e sua rima com palhoça punha, mais do que a bossa nova, a TV do Fino da Bossa de Elis em confronto com uma população que mal deixava de ser rural. O Carnaval, o próprio movimento tropicalista (que então ainda não tinha esse ou qualquer outro nome,) a miséria e a opressão, a Jovem Guarda de Roberto Carlos, tudo teria lugar ali - as palavras encontravam rimas: as idéias, contrastes e analogias; as imagens, espelhos, lentes e ângulos insuspeitados. Mas eu não queria que a nova canção fosse, como "Coisas nossas", um mero inventário. Era preciso que um daqueles elementos - ou um outro em que não tinha ainda pensado - impusesse uma estrutura ao texto a ser cantado, de modo a manter um alto nível de tensão entre as abordagens que se sucederiam numa lista monstruosa. A ideia de Brasília fez meu coração disparar por provar-se imediatamente eficaz nesse sentido. Brasília, a capital monumento o sonho mágico transformado em experimento moderno e, quase desde o princípio, o centro do poder abominável dos ditadores militares. Decidi-me: Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo. Bem, pelo menos era assim que eu sentia as coisas no paroxismo da inspiração. A canção real que consegui fazer me entusiasma muito menos do que a imagem difusa que eu fazia dela quando ela era apenas uma possibilidade. Mas ela exerceu forte impacto no ambiente de música popular e em muitas cabeças interessantes do Brasil - e rendeu estudos acadêmicos em que foi chamada repetidas vezes de "alegórica". E conheceu considerável sucesso popular.
O arranjo dessa canção ficou a cargo de Júlio Medaglia. Eu tinha distribuído o repertório do disco entre os três maestros da "música nova" de São Paulo que se aproximaram de nós: Medaglia, Damiano Cozzela e Sandino Hohagen. Rogério Duprat - na verdade o mais interessante deles - chegara um pouco depois e, a partir de "Domingo no parque", tinha ficado mais ligado a Gil. No dia da gravação da base orquestral dessa música que, apesar de ser para mim a mais representativa, era a única que não tinha título, o baterista Dirceu, que nada sabia sobre o que tratava a letra que só seria gravada depois, ao ouvir a introdução em que sons percussivos, cantos de pássaros e intervenções do naipe de metais se superpunham, lembrou-se da carta de Pero Vaz de Caminha descrevendo a pasisagem brasileira no momento do descobrimento. A gravação que foi aproveitada contém o discurso que Dirceu improvisou de pura gozação, sem imaginar que já se estava gravando, e muito menos quão adequada era sua falação ao tema tratado na letra. "Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu uma carta ao rei: tudo o que nela se planta, tudo cresce e floresce, e", numa referência ao técnico de som Rogério Caos que comandava a mesa de gravação. "o Gaos da época gravou!", ouve- se Dirceu dizer antes que eu entre com os primeiros versos instauradores do panorama em que se desenrolará a construção da visão algo cubista:

Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o Carnaval
Eu inauguro o monumento no planalto central do país.

A canção, longa, depois de passar pela imagem de uma "criança sorridente, feia e morta" que "estende a mão" de sobre os joelhos do "monumento", por uma "piscina com água azul de Amaralina" e pelos "cinco mil alto-falantes" que "emitem acordes dissonantes" (sempre entrecortada por um refrão musicalmente fixo mas de letra variável, dando vivas a pares de rima primária e contiguidade desconcertante, como "Viva a bossa sa-sa/ Viva a palhoçaça-ça-ça-ça"/ "Viva Maria iá-iá/ Viva a Bahia iá-iá-iá-iá" "Viva Iracema ma-ma/ Viva Ipanema ma-ma-ma-ma"), termina por arrematar o grito de Roberto Carlos "que tudo o mais vã pro inferno" com um "Viva a Banda da- da/ Carmen Miranda da-da da-da!". Claro que a frase mais famosa do Rei Roberto, seguida da Banda de Chico e do nome de Carmen Miranda (cuja última sílaba repetida evocava o movimento dadá e, para mim, misturava seu nome ao de Dadá, a famosa companheira do cangaceiro Corisco, estes dois últimos personagens reais e figuras centrais de Deus e o Diabo na Terra do Sol), dava, de forma elíptica mas imediatamente perceptível por qualquer brasileiro que ouvisse canções (nunca foram poucos), uma reestudada geral na tradição e no significado da música popular brasileira. Mas cada refrão tinha sua constelação de sugestões ou referências. Além da "bossa" noelina e nova e elisreginianamente televisiva colada à "palhoça", temos o nome do filme Viva Maria, de Louis Malle (Brigitte Bardot era uma presença feminina muito mais constante em minha mente do que a de Marilyn, como já disse), um filme sobre mulheres e revolucionários na América Latina, seguido de "iá-iá", que é o modo como os negros da Bahia (que é a palavra que se segue no refrão) sempre chamaram suas patroas ou donas, assim como toda mulher que lhes fosse superior, uma vez que iá é "mãe" em ioruba: depois o par "Iracema" (um anagrama de América, nome da índia que é a personagem central e titulo do belo romance oitocentista de José de Alencar e "Ipanema" (palavra tupi que quer dizer "água ruim", nome tornado mundialmente famoso por causa da "Garota de Ipanema", de Jobim e Vinicius de Moraes) aproxima as duas praias, uma do Rio e a outra do Ceará, e as duas figuras femininas, uma do século XIX, outra do século XX, uma índia, outra
branca, uma dando nome a uma praia (a praia de Iracema, em Fortaleza, foi assim batizada em homenagem à personagem de Alencar, outra tomando de uma praia seu nome (a garota de Jobim e Moraes é uma homenagem deles a Ipanema). "Viva a mata ta-ta/ Viva a mulata ta-ta-ta-ta" é o mesmo polissêmico dos refrões, mas a polissemia dos outros não é o que justifica sua existência e posicionamento no corpo da canção. Observá-la é apenas um ato de curioso detalhismo a que me dou o direito, por entender que pode ser agradável para quem me leia descobrir algumas das causas das emoções ou sensações que a canção porventura tenha desencadeado. A "mata" e a "mulata", de qualquer modo, são duas entidades múltiplas e, posto que óbvias, misteriosas.
Seria necessária muita paciência (sobretudo do leitor) para estender esse tipo de mirada às estrofes, mais longas e não menos cheias de sugestões. Basta que se diga por agora que essa canção sem nome justificou para mim a existência do disco, do movimento e de minha considerável dedicação à profissão que ainda me parecia provisória: era o mais perto que eu pudera chegar do que me foi sugerido por Terra em transe.
Num almoço na casa de não sei quem em São Paulo ao qual suponho que Mário Schemberg compareceu, me pediram que cantasse algumas das músicas que eu estava gravando. Luis Carlos Barreto, um fotógrafo jornalístico que tinha se tornado produtor de cinema depois de magníficos trabalhos como diretor de fotografia (devem-se a ele as imagens da obra-prima Vidas secas e do próprio Terra em transe), impressionou-se com essa canção (o que é perfeitamente coerente) e, ao ser informado de que ela não tinha título, sugeriu "Tropicália", por causa, dizia ele, das afinidades com o trabalho de mesmo nome apresentado por um artista plástico carioca, uma instalação (na época ainda não se usava o termo, mas é o que era) que consistia num labirinto ou mero caracol de paredes de madeira, com areia no chão para ser pisada sem sapatos, um caminho enroscado, ladeado de plantas tropicais, indo dar, ao fim, num aparelho de televisão ligado, exibindo a programação normal. O nome do artista era Hélio Oiticica, e era a primeira vez que eu o ouvia. Eu naturalmente disse que não, que não poria o nome da obra de outra pessoa na minha música, que essa pessoa poderia não gostar. O que eu não disse, é que esse nome de "Tropicália" não me agradara muito, embora a descrição que ele dera da instalação me atraísse.
"Tropicália" parecia reduzir o que eu entendia de minha canção a uma reles localização geográfica. A palavra era pregnante, contudo, e nós não a esquecemos. Guilherme Araújo gostou. Manuel Barembein, a quem eu cai na asneira de contar a sugestão feita por Barreto, agarrou-se a esse nome e, para todos os efeitos, enquanto eu não encontrasse um nome melhor, a canção se chamava "Tropicália". Nas caixas de fitas, nas fichas de gravação, nas conversas, o nome Tropicália se impôs. O único outro titulo que me tinha ocorrido "Mistura fina" - era evidentemente insatisfatório. Tratava-se de uma conhecida marca de cigarro, O que estava de acordo com o método de referências publicitárias - e ainda não era uma expressão tão gasta quanto hoje -, mas a palavra mistura enfraquecia a canção. Como eu não achasse nunca um outro melhor e o disco já estivesse pronto, Tropicália ficou e oficializou-se. As outras canções do disco pareciam corolários dessa. "Superbacana", com uma lista de nomes de produtos industriais em que o prefixo super aparecia, e uma arenga a um tempo amarga e divertida por vivermos num pais periférico (além de um final semelhante ao de Panamérica, com a idéia de "explodir colorido, no sol, nos cinco sentidos"), foi gravada com o RC7, como antes eu sonhara para "Alegria, alegria". "Eles", uma profissão de fé adolescente, marcando nossa diferença geracional em relação aos "caretas", foi gravada com os Mutantes. "Maria", minha única parceria com Rogério Duarte, uma canção misteriosa e algo sombria sobre um filho imaginário, e "Clara", uma composição complexa no sistema dos acordes inteiros justapostos que Gil iniciara com "Bom dia", ficaram a cargo de Sandino Hohagen. "No dia que eu vim-me embora", uma das minhas raras parcerias com Gil, com os Beat Boy s. Acho que "Paisagem útil" e "Clarice" também foram orquestradas por Júlio Medaglia. O resultado geral me pareceu bem mais desigual do que Terra em transe. Eu não teria coragem de mostrá-lo a um estrangeiro como exemplo do nível a que tinha chegado a produção de música popular no Brasil. Para mim, soava amadorístico (ainda soa) e confuso, sujo. Mas Glauber gostou.
Num encontro na casa do arquiteto e letrista Marcos Vasconcellos, no Rio, ouvimos todo o álbum num gravador de rolo (o disco estava mixado, mas ainda não tinha sido prensado) e Glauber, coerentemente, exultou com "Tropicália". Ele claramente reconhecia as identificações com Terra em transe. Fez perguntas sobre dinheiro e relações profissionais que eu não sabia responder. As vezes me puxava para um canto e, olhando para os lados como se temesse ser ouvido, fazia essas perguntas em tom de segredo. Ele se mostrava muito espontâneo e queria sempre falar clesabusadamente. Seu jeito de falar tinha muito do de Rogério. Era uma marca da geração deles em Salvador, mas também era identificação pessoal e influência mútua entre os dois. Como já contei, eu o tinha visto algumas vezes e falado brevemente com ele. E o tinha ouvido falar longamente no Clube de Cinema da Bahia. Mas a oportunidade de uma verdadeira aproximação, propiciada por esse meu novo trabalho revelou sua capacidade de seduzir, o tom comicamente conspiratório com que ele demonstrava intimidade, e seu sorriso de criança. O sorriso de Glauber desarmava porque, espremendo os olhos de ordinário esbugalhados e com o branco à mostra por sob a íris, desfazia a atmosfera expressionista do seu olhar incisivo e triste, trazendo um abandono contagiante, um jato de pureza intacta a desintegrar inesperadamente a teia de esperteza e fúria que sua presença tecia o tempo todo. Seu estilo pessoal podia ser descrito como um misto de Orson Welles e Marlon Brando que tivesse incorporado um jagunço visionário do sertão da Bahia. Mas era frágil. Desde essa primeira audição do meu disco, tivemos diversos encontros, e, até o fim, ele se mostrou interessado em minhas atividades. Mas o diálogo entre nos nunca foi fácil. Nem sequer chegou-se a estabelecer um verdadeiro diálogo. Eu o admirava havia muito tempo, e ele, impressionado com o que eu estava fazendo, esperava de mim uma descontração que seu próprio tom paternalizante impedia. Um fato notável, nessa noite, foi que Marcos Vasconcellos pediu a seu parceiro Pingarrilho, um bom compositor e violonista, que me mostrasse uma canção feita pelos dois, afirmando que eu a adoraria e quereria gravar porque estava totalmente dentro da temática moderna e futurística do meu novo repertório. Era um samba típico da segunda fase da bossa nova, "torto", como se dizia, um samba de músico, quase jazzístico, que Pingarrilho cantava com segurança e tocava com virtuosismo. Chamava-se "O astronauta". Possivelmente esse título tinha levado Marcos a crer no que me dizia. Mas a canção, embora deixasse evidentes os méritos musicais do seu parceiro, era rica exatamente naquilo que, no momento, não me interessava. E a letra pareceu-me de um lirismo atroz, falando de uma mulher "ela", que, tendo ido embora não se sabe para onde, talvez estivesse "em Marte" (dai o "astronauta" do titulo), mas talvez tivesse virado "um passarinho", ou "a estrelad'alva", ou ainda uma 'pipa de papel de seda", um "balãozinho". Elogiei a composição sem mencionar a letra e nada prometi quanto a gravá-la.





* A presente obra é disponibilizada por nossa equipe, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

0 comentários:

LinkWithin