DOMINGO NO PARQ UE
Para entender a pertinência de observações como as feitas acima, é preciso ter em mente a atmosfera em que se davam esses embates de canções no Brasil dos anos 60. O golpe militar, levado a cabo em nome da guerra ao comunismo internacional, tinha posto um oficial da chamada linha "americana" no poder: o marechal Castelo Branco. Isso quer dizer que ele, diferentemente dos chamados "prussianos" (que seriam nacionalistas estatizantes), queria limpar o Brasil do esquerdismo e da corrupção para poder entregá-lo às modernidades do livre mercado. Quase todos desconhecíamos essas nuances então - e ainda que tivéssemos ouvido falar delas, em nada isso nos teria mudado, pois apenas víamos no golpe a decisão de sustar o processo de superação das horríveis desigualdades sociais brasileiras e, ao mesmo tempo, de manter a dominação norte-americana no hemisfério. As pretensões de uma arte política, esboçadas em 63 pelos Centros Populares de Cultura da UNE, difundiram-se por toda a produção artística convencional e, apesar da repressão nas universidades e da censura na imprensa, o mundo dos espetáculos viu-se sob a hegemonia da esquerda. Num ambiente estudantil altamente politizado, a música popular funcionava como arena de decisões importantes para a cultura brasileira e para a própria soberania nacional - e a imprensa cobria condizentemente. Os festivais eram o ponto de interseção entre o mundo estudantil e a ampla massa de telespectadores. Esta, naturalmente, era maior do que a de compradores de discos. Mas em todos os níveis tinha-se a ilusão, mais ou menos consciente, de que ali se decidiam os problemas de afirmação nacional, de justiça social e de avanço na modernização. As questões de mercado, muitas vezes as únicas decisivas, não pareciam igualmente nobres para entrar nas discussões acaloradas. Claro que as meninas gritavam lindo! quando Chico entrava no palco (e, embora com muito menor razão, passaram a gritar também para mim), mas as conversas e as hostilidades entre os grupos eram motivadas pela posição política de um autor, por sua fidelidade às características nacionais, por seu arrojo harmônico ou rítmico. Era um luxo que fosse assim. Com todas as tolices que esse quadro comportava, vivia-se um período excepcionalmente estimulante para os compositores, cantores e músicos. E um ponto central era genuíno: o reconhecimento da força da música popular entre nós. Tudo era exacerbado pela instintiva repulsa à ditadura militar, o que unia uma aparente totalidade da classe artística em torno do objetivo comum de lhe fazer oposição. Esse clima que exercia estímulo igualmente forte sobre cineastas, diretores de teatro, poetas e artistas plásticos - justificou um rótulo jocoso que, provavelmente criado por mentes da direita com intuito desabonador, não foi tomado sempre como pejorativo por parte daqueles em quem ele era aplicado: "esquerda festiva", uma expressão de gênese e gosto aparentados com os de "radical chic" mas menos mordaz e antipática do que esta (menos inteligente, porém anônima, mais popular e, de todo modo, mais generosa, além de muito anterior), é, de fato, um epíteto que nos sentiríamos felizes em poder aplicar literalmente, por exemplo, ao socialismo cubano. Infelizmente a dura realidade nunca nos autorizou a fazê-lo. (Na verdade, muitas vezes, nos anos 70, quando a prefeitura de Roma, nas mãos do ainda existente Partido Comunista Italiano, promovia shows de música brasileira e de Patti Smith, pensei em como a expressão "esquerda festiva" era adequada PCI - e em quão positiva ela era.) Naturalmente as várias tendências da esquerda se acusavam mutuamente de "festivas" - isto é, irresponsáveis, exibicionistas -, mas a conotação agradável da palavra nunca se perdia de todo. Sobretudo no meio artístico - festivo por definição - o xingamento expunha todas as suas nuances. Mas o mero fato de que mesmo ali ele fosse usado denota o grau de tensão sob que se trabalhava.
A TV Record tinha se especializado em música como nenhuma emissora de TV em qualquer lugar do mundo jamais o fez, que eu saiba, até o advento da MTV. Eram programas de auditório com audiências mais ou menos segmentadas. Com o Fino da Bossa se iniciara a onda. O jovem Guarda, correndo em outra faixa, crescia sem parecer, a princípio, ser uma verdadeira ameaça. O sucesso de "A banda" justificou o lançamento de um programa com Chico e Nara, uma espécie de réplica cool ao par Elis Regina-Jair Rodrigues do Fino. (Jair Rodrigues, um negro paulista de voz aguda e grande musicalidade mas sem cacoetes jazzísticos, dividia a liderança do programa com Elis, e o fazia com brilho em pot-pourris de
sambas cantados em dueto com muito balanço, mas ficava a impressão de que a responsabilidade final era de Elis, de cuja figura emanava uma autoridade que ele não parecia querer nem precisar disputar.)
Como o que viria a se chamar tropicalismo pretendia situar-se além da esquerda e mostrar-se despudoradamente festivo, nós nos sentíamos imunes a julgamentos desse tipo. Parti para a aventura de "Alegria, alegria" como para a conquista da liberdade. Depois do fato consumado, eu sentia a euforia de quem quebrou corajosamente amarras inaceitáveis. Gil, ao contrário, considerando que, se se dava tamanho peso ao que se passava em música popular, e se nós estávamos tomando atitudes drásticas em relação a ela, algo pesado deveria nos acontecer em conseqüência - um cálculo que eu, em minha excitação, evitei -, entrou em pânico. Na noite de apresentação de "Domingo no parque", ele se escondeu sob os cobertores, no quarto do hotel (nós estávamos morando provisoriamente no Hotel Danúbio, em São Paulo), tremendo com o que parecia ser uma febre repentina, e se recusou a ir para o teatro. Ele tinha se separado de Belina, sua primeira mulher, uma baiana com quem já tinha duas filhas, e iniciava um romance com Nana Caymmi, filha de Dorival. Nana, que tinha cantado "Bom dia", do próprio Gil, no mesmo festival, para os apupos da platéia, esforçava-se para convencê -lo a ir enfrentar o seu destino. Guilherme Araújo também intercedeu. O espetáculo já ia a meio, quando Paulinho Machado de Carvalho, diretor-geral (e filho do dono) da TV Record, foi até o Hotel Danúbio e, finalmente, conseguiu arrancá-lo da cama. A apresentação de Gil foi deslumbrante. Os Mutantes pareciam uma aparição vinda do futuro. A fricção entre o tema afro-baiano e o som deles era instigante - Beatles + berimbau ou Beatles x berimbau -, e a belíssima orquestração de Rogério Duprat dava a tudo aquilo um ar imponente e respeitável que trazia a platéia para anos-luz de distância do momento em que, apenas um dia antes, esboçou vaiar "Alegria, alegria". E o próprio Gil, alegre e extrovertido como sempre. não demonstrava em nada o medo de que fora possuído havia poucos minutos.
Muito pouco ele se dispôs a falar sobre isso nos dias e meses subsequentes. Mas, com toda a insegurança íntima de um homem que mudava de vida, saia de um casamento e sabia-se responsável por uma espécie de revolução, Gil deixou escapar, breve e vagamente, o sentido de uma angústia que um ano depois, quando conseqüências terríveis se presentificaram, ele soube ou pôde articular melhor: "Eu sentia que nós estávamos mexendo em coisas perigosas".
Suponho que as gravações do meu primeiro LP individual começaram por "Alegria, alegria", que precisava estar pronta para sair em compacto simples imediatamente depois da apresentação na TV, como era de praxe com todas as músicas dos festivais. Não sei se a feitura de alguma outra faixa se iniciou antes da apresentação da canção. Mas é certo que, não muito tempo depois daquele festival de 67, eu já estava no estúdio, acompanhado do produtor Manuel Barembein (um judeu paulista narigudíssimo que era produtor contratado da Philips e que comprara nossa briga com carinho e determinação), gravando as novas composições que, na euforia em que me encontrava, surgiam aos borbotões em minha cabeça. "Paisagem útil", é claro, seria incluída no novo disco como a irmã mais velha da nova família de canções. "Onde andarás", um bolero meio samba-canção que eu tinha feito ainda no Rio sobre letra de Ferreira Gullar a pedido de Bethânia, por funcionar como veículo para a exposição de paródias de estilos sentimentais considerados cafonas (e para exemplo de como, mesmo parodiando-os, podia-se amá-los e enobrecê-los, à maneira da própria Bethânia), também entraria. Eu tinha decidido inserir, entre tantas faixas de aspecto comercial-experimental (ou vanguarda-iê-iê-iê), uma interpretação cem por cento pura de uma música de Dorival Caymmi, meu compositor favorito, e "Dora" tinha sido a escolhida porque, mantendo o contraste desejado, esse samba-canção de tom algo épico e distanciado ("os clarins da banda militar,
tocam para anunciar/ sua Dora agora vai passar/ venham ver o que é bom") sub-repticiamente confirmava as escolhas estéticas do disco. Lembro que Zé Agrippino, ao me ouvir dizer que queria gravar "Dora" de Caymmi, resmungou: "Não! Nesses casos tem de ser radical". Mas eu não me deixei abalar. Convidei Dori para que gravássemos só nós dois, minha voz e o violão dele. Dori, meu amado arranjador de "Domingo", era filho do autor da canção e, sobretudo, o melhor violão de bossa nova na linha de João Gilberto fora o próprio João Gilberto. Mas Dori, que veio do Rio para São Paulo para gravar, criou muitas dificuldades no estúdio, aumentando minha timidez a um ponto extremo. Várias vezes começamos e ele interrompeu dizendo não lembrar-se da harmonia, ou não saber qual a melhor harmonização, perguntando-me insistentemente, num tom que me pareceu intimidantemente irônico, se eu não sabia que acorde utilizar em tal ou qual passagem. Eu me senti assustado, despreparado para enfrentar a canção, numa palavra: desautorizado. Dori saiu do estúdio sem que gravássemos sequer uma versão inteira, mesmo ruim, da canção, dizendo "não dá, não dá", sem deixar claro se a deficiência era só minha, só dele, ou dos dois. Com tristeza e vergonha, desisti de incluir Caymmi no disco de lançamento do movimento tropicalista.
Até hoje não sei como interpretar a atitude de Dori. Eu sei que ele fazia parte de um grupo de músicos que consideravam o que eu e Gil fizemos como uma traição aos elegantes acordes dissonantes e ao cívico nacionalismo cultural. Mas nem por isso ele deixara de vir até São Paulo para gravar comigo. Talvez diante de minha insegurança ele tenha concluído que não valera a pena. Talvez ele tenha topado num primeiro momento mas tenha se arrependido na última hora, temendo participar aa traição envolvendo uma obra-prima de seu velho pai. Talvez ele, por um lado, estivesse sinceramente se sentindo ele próprio despreparado para gravar satisfatoriamente aquela canção, e, por outro, percebesse que a minha pretensão de que a mera idéia de gravar "Dora" e de chamar Dori para fazê-lo ("sampleá-lo") já representava uma solução musical em si, era realmente uma traição numa certa medida. Manuel Barembein tentou criar um clima que facilitasse as coisas, mas em vão: aquela sessão de gravação fora trezentos por cento frustrada.
Não tanto assim para o próprio Barembein, que queria que eu incluísse "Clarice", uma canção nada tropicalista que eu tinha feito com Capinan um ano antes e que ele adorava. Como ele entendia a inclusão de "Dora" como uma mera pausa para relaxamento, uma faixa para o disco "respirar", sentiu-se à vontade para sugerir a substituição. A princípio teimei em não aceitar. Mas depois, deprimido pelo episódio com Dori e enternecido com Barembein, que me pedia em tom de súplica que gravasse "Clarice" "só para ele", cedi. (Meses depois, quando o disco já estava na rua e as discussões sobre ele explodiam, Gianfrancesco Guarnieri, o grande autor e ator do Teatro de Arena, numa mesa do Patachou, o restaurante da rua Augusta que frequentávamos, me disse bêbado que, apesar de ter ficado muito triste por eu ter me submetido ao comercialismo das multinacionais do
disco, continuava me amando porque vira que eu guardava um ponto puro em minha alma, e que isso aparecia na redentora faixa "Clarice" do meu novo disco; mal sabia ele que essa tinha sido a única concessão que eu fizera à PolyGram.) De qualquer forma, fosse nas minhas relações com os maestros, com o produtor ou com os instrumentistas, para minha funda decepção - pois eu imaginara, em minhas noites de insônia, um controle dos meios que faria de meu disco um produto internacionalmente inatacável -, eu me mostrava extraordinariamente tímido.
Minhas ambições eram muito maiores do que minha capacidade de concentração e de liderança - e eu via surgir um aleijão. Várias vezes, conversando com Gil sobre como o acaso, as pequenas peculiaridades psicológicas e vários outros imponderáveis (além, é claro, da evidente pobreza técnica e material em que vivemos no Brasil) se interpunham entre o que sonhávamos e o que podíamos fazer, ouvi dele que "o espírito do subdesenvolvimento" assombrava os estúdios de gravação. Os Mutantes pareciam em larga medida imunes a esses eflúvios, e assim também - mas por outras razões - Rogério Duprat.
Tínhamos ainda (temos ainda hoje) como limite e horizonte os discos de João Gilberto arranjados por Jobim. Elis e Roberto Carlos apresentavam exemplos opostos de profissionalismo - e os resultados obtidos por ele nos interessavam mais do que os atingidos por ela - mas complementarmente insatisfatórios. O próprio Gil, com seu ouvido incrível e sua habilidade como violonista, seu senso rítmico destruidor, era uma promessa constante de superação das deficiências do ambiente. A colaboração entre ele, Duprat e os Mutantes, de que tivéramos uma amostra em "Domingo no parque", quando se espalhasse pelas faixas do LP que em breve fariam juntos, compensaria - eu pensava - minhas próprias frustrações. A medida que eu ia tocando para a frente as gravações do meu disco com todas as suas falhas, pensei muitas vezes em como talvez fosse o caso de Gil e eu unirmos as forças na criação de um produto forte. Nos anos 70 escrevi do exílio para O Pasquim, comentando o lançamento do primeiro disco do grupo Novos Baianos: "O disco, como de hábito não é bom. Mas em compensação é ótimo. Foi assim com os discos tropicalistas dos velhos baianos. O do Gil com Duprat e os Mutantes, vá lá. Mas o meu...".
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