Somando-se, enfim, à crescente disputa entre bairros e à violenta repressão policial, havia o problema de que o funk, com raras exceções, não rendia cachês aos MCs. O dinheiro estava nas casas de shows, mas os funkeiros, estigmatizados pela imagem violenta dos bailes de corredor, não conseguiam entrar no circuito.
Naquela primeira metade dos anos 2000, as casas noturnas populares e os programas de entretenimento locais na hora do almoço eram dominados pelas bandas do chamado “brega pop”, isto é, músicas lentas românticas que promoviam uma articulação de sonoridades da cena local (Reginaldo Rossi, Labaredas, Chama do Brega, Conde Só Brega e toda a estética “dos teclados”), com a do Ceará (o forró eletrônico de Aviões do Forró, Saia Rodada, Cavaleiros do Forró) e a do Pará (com influências do tecnobrega e do calypso, notáveis em músicas de bandas como Vício Louco, Ritmo Quente, Pank Brega; e vale lembrar que nesta época a banda Calypso fixou residência na capital pernambucana devido à posição estratégica da cidade no centro do Nordeste).
É consenso entre os músicos do movimento bregafunk que Leozinho foi o primeiro MC a quebrar a barreira e penetrar o mercado brega, entre 2008 ou 2009 — nem o próprio cantor sabe dizer o ano ao certo. “Eu tinha que gravar um brega pra poder fazer os shows. Aí gravei ‘Dois Corações’, com o DJ Serginho. Até então era o brega mesmo, lento e romântico. A música estourou porque era a novidade de ter um MC cantando brega”, explica ele.
O sucesso de “Dois Corações” ditou tendência: a partir daí todos os MCs do funk, que previam o fim inevitável dos bailes de corredor, enxergaram na estética “maloqueiro apaixonado” ou “cafuçu-sentimental” uma possibilidade de se manter na ativa e atingir um público mais amplo. Sheldon, Tocha, Dadá Boladão... Todos os MCs veteranos do bregafunk passaram por esse estágio. Troia até fez dupla com a cantora Anny Love, aproximando-se ainda mais da formação das bandas. Só que Leozinho e Serginho aproveitaram o embalo para propor uma nova levada. Em vez de tentar imitar a sonoridade das bandas românticas, os dois deram uma nova cara tanto ao funk quanto ao brega na música “DNA”. “Foi quando a gente começou a fazer o beat. Já tinha uma batida do bregafunk. Até então nóis não tinha dado o nome, mas já tinha essa batida”, afirma Leozinho.
Devido à falta de registros, fica difícil atestar se “DNA” é de fato a música pioneira ou fundadora do bregafunk. De todo modo, o importante é que a investida de Leozinho no brega abriu um trilha que motivou outros MCs descontentes com a falta de perspectiva do funk. “O brega foi o que tirou a gente de todo tipo de má influência, botou a gente no topo, onde a gente precisava ficar”, reconhece Shevchenko, que veio formar uma dupla de bregafunk com Elloco.
Sob influência de Leozinho, o MC Cego formou uma dupla com o MC Metal, também visando o brega como uma forma de transformar o hobby de cantar em profissão e tirar uma grana. Metal tinha um programa de brega na rádio comunitária Impacto, no Morro da Conceição, e foi o responsável por descolar o contato de Kleber Love, músico e empresário da Banda Lapada, então um sucesso na cidade. Esse contato facilitou a vida da dupla, que passou a fazer participações nos shows da banda e pouco depois teve a sorte de contar com o valioso feat da vocalista Mary Campbell, a Beyoncé de Recife, na música “Melô do Amigo Safado”. Combinando a instrumentação do brega (baixo, guitarra, bateria) com viradas de tamborzão e ritmo mais acelerado, a música foi outro marco fundamental dos primórdios do bregafunk, abrindo as portas para os MCs.
“De repente a gente ganhou o mercado como não ganhamos antes, cantando funk. O funk não tinha o mercado aberto pra poder entrar e dar continuidade com os hits que a gente soltava. Era como se não fosse pra frente”, contextualiza Cego. “Já com o brega, com composição nossa, o negócio era mais abrangente, caímos na graça do povo. Tinha mais expansão para poder ganhar dinheiro”.
Ainda que tenha incorporado uma série de elementos do brega, o bregafunk foi lentamente demarcando uma ruptura com o romantismo idealizado das canções de brega. Inicialmente, insistindo na temática da “guerra dos sexos”, uma “disputa sadia” nas palavras de Leozinho, e futuramente abraçando a putaria. MC Elloco compara: “Reginaldo Rossi foi a sofrência de um cara que gostava de uma mulher e ficava só insistindo naquela mulher, ficava cantando aquela voz de ‘tô sofrendo’. O bregafunk é o contrário, é como fosse a revolta do homem. O cara vai pra putaria ou vai pra outra mulher, é o passinho, ele tá na doidera e não quer nem saber. É mais pra cima, dançante, passinho”.
Além do brega pop, na virada da década de 1990 para os anos 2000 o Recife também teve a febre do pagode. No livro “Ninguém é Perfeito e a Vida é Assim — A Música Brega em Pernambuco”, o professor Thiago Soares faz aborda o fenômeno das casas de entretenimento popular que tomaram conta não apenas do Recife, mas sobretudo da Região Metropolitana, que inclui os municípios de Olinda, Paulista, Cabo de Santa Agostinho, Jaboatão dos Guararapes, Paulista, Camaragibe e Abreu e Lima.
“Na noite recifense nos anos 1990, assistíamos à presença maciça das pagoderias, casas dedicadas a grupos de pagode tanto locais quanto nacionais, que funcionavam como espaço de lazer tanto na periferia da cidade, quanto nas áreas centrais e nos bairros mais nobres da Zona Sul”, escreve o pesquisador, que aponta a importância destes lugares na construção de um espaço comum, de trocas e negociações entre o brega e pagode. “O brega foi ocupando as espacialidades, primeiramente da periferia, migrando, em seguida, para a Zona Sul do Recife”, aponta.
O declínio da onda do pagode no Recife ocorreu justamente no momento em que o bregafunk passou a despontar. Não por acaso, casas que eram redutos do pagode — como o Pagode da Pressão, em Beberibe; Espaço Aberto, na Imbiribeira; Bate Papo, no Arruda — atualmente recebem quase que exclusivamente shows de brega.
Um dos maiores produtores do bregafunk, Dany Bala tem uma visão prática sobre a queda do pagode e ascensão: enquanto no primeiro a dança era mais separada, no outro havia mais permissividade e um clima mais aberto à sarrada. Oriundo de uma família de pagodeiros, o MC Tocha atribuí a decadência do pagode à falta de inovação — enquanto os MCs procuram sempre se reiventar. “Acho que o pagode aqui deixou de ser original pra ser o que todo pagodeiro costuma fazer, que é cantar música do outro. Então tão tocando 10 bandas, as 10 cantam a mesma música e acho que foi perdendo a graça. A gente não. Cego entra e faz o show dele, Troia entra e faz o show dele… O pagode teve vários grupos fortes, como Negrisamba, Bloco do Samba e teve um momento que os caras não criaram mais. Um acostumou o outro, que acostumou o outro, que acostumou o outro e foram deixando de lançar novidade pro pessoal. Caiu na mesmice”, ressalta.
O quadro geral, portanto, era este: de um lado, o funk revelava-se economicamente inviável, envolto em um ambiente de mortes e violência, reprimido pelo Estado e sem chances de expansão comercial. Do outro, o pagode estagnava no esgotamento criativo. Aproximar-se do brega era quase uma necessidade para os MCs continuarem na ativa. Olhando em retrospecto, dá para perceber o marasmo que, historicamente, costuma anteceder novos movimentos culturais. Diante de um beco sem saída, cercados por um panorama cultural de terra arrasada, os jovens funkeiros da periferia de Pernambuco incorporaram o brega por uma tática de sobrevivência. Mas o fizeram com uma atitude inventiva, transformando a música ao seu redor e criando um ritmo próprio, só deles — uma inquietação imaginativa que não está tão distante assim do que ocorreu em paralelo com o Mangue Beat; o MC Pato Problema observa: “Chico Science veio quebrando todos os paradigmas de música e deu essa liberdade pra gente. Somos filhos do mangue”.
Após as experiências iniciais entre 2008 e 2009, o bregafunk foi definindo-se melhor enquanto ritmo um pouco mais tarde, cerca de três anos depois. Quando pergunto a Elloco em que momento ele percebeu que havia algo novo acontecendo, uma nova música que não era simplesmente o funk, ele recorre à gravação do seu DVD com Shevchenko, no fim de 2013, no Clube Português.
“Eu lembro uma vez que eu e Shev foi lá pra ver o show de Fernando Mendes, que a gente gostava. E aí a gente até pensou: ‘imagina estar lá no palco um dia! Quando a gente viu aquela estrutura [da gravação do DVD] que montamos com os nossos parceiros, entramos e vimos a galera cantando, a gente viu que uma música mudou a nossa vida, do que a gente cantava pro que a gente canta hoje. Mulheres, crianças, todo mundo enaltecendo você, botando você pra cima. Foi uma sensação muito boa pra quem cantava baile funk de galera pra cantar um show, levar e ser porta voz”, conclui.
Fonte: Vice
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