quarta-feira, 17 de abril de 2019

A MÍNIMA VOZ: MODOS DE SUBJETIVAÇÃO DO FEMININO NA CANÇÃO - PARTE 01

Por Pedro de Souza/UFSC-CNPq RESUMO


RESUMO

O objetivo deste artigo é saber de que maneira as cantoras contemporâneas, historicamente localizáveis a partir da década de 1980, podem buscar na voz o ponto enunciativo de subjetivação. Trata-se de focalizar o momento em que, na história da música popular brasileira, as maneiras de colocar a voz no canto feminino não mais obedecem ao regime de discurso que, na época de ouro do rádio, determinava a colocação de um drama na voz como parte das condições de produção do sujeito que canta. No campo da escola francesa de Análise de discurso, o presente trabalho insere-se em uma pesquisa mais ampla que investiga processos de constituição do sujeito mediante enunciações cantadas. O ponto de referência do processo discursivo a ser rastreado na análise é a história das cantoras do rádio em relação às cantoras contemporâneas. Nesta relação, focalizo certo modo de subjetivação do feminino operado na relação entre voz cantada e ato enunciativo.

PALAVRAS-CHAVE: voz, enunciação, MPB, discurso.



INTRODUÇÃO: POR UMA GENEALOGIA DA VOZ CANTANTE

Em pesquisa em andamento, investigo a constituição do sujeito mediante enunciações cantadas. Tenho recorrido ao que se pode definir como as propriedades materiais da voz sobre a qual incide certa discursividade. O ponto de partida está demarcado na história das cantoras do rádio, em que focalizo certo modo de subjetivação operado na relação entre voz e ato enunciativo (MOREL,1995)
Para este artigo, desenvolvo uma análise com objetivo de saber de que maneira, sem perder o referencial das cantoras tradicionais, as cantoras contemporâneas, historicamente localizáveis a partir da década de 1980, podem fazer da voz o espaço enunciativo de subjetivação. Trata-se de focalizar o momento em que, na história da música popular brasileira, as maneiras de colocar a voz no canto feminino não mais obedecem ao regime de discurso em que a instalação de um drama na voz é parte das condições de produção sinalizando a posição do sujeito que canta.
Na passagem dos anos de 1980 para a década de 1990, vê-se, no campo da música popular brasileira, circularem falares que problematizam a emissão vocal diminuta comum à maioria das cantoras surgidas neste período. É como se a ausência de intensidade e de extensão vocal correspondesse à falta de um drama na voz, tal como se podia escutar em Dalva de Oliveira, Ângela Maria ou Maysa.
Pelo menos é o que se atesta em comentários dispersos na mídia e na internet a respeito do suave estilo de cantar empregado pelas novas cantoras populares. “Acho que o tempo das grandes cantoras de vozes firmes e melodiosas já passou. Hoje só nos resta essas sopradoras de microfones”, diz um internauta ao descobrir no youtube a postagem de uma canção na voz de Marta Mendonça, uma das estrelas do rádio dos anos 60. Apreciações desse tipo conduzem diretamente ao tempo em que o canto feminino em ondas radiofônicas conectava-se diretamente com a forma de a mulher subjetivar-se alinhando-se à ordem discursiva da música popular brasileira, fora da qual uma cantora jamais poderia fazer ouvir a própria voz. E que, na era do rádio, a voz da cantora tinha que soar de modo a colocar em cena a mulher perante o drama de submeter-se.
Aqui se trata da forma histórica em que a voz é dispositivo integrante do exercício de uma subjetividade que não se efetiva a não ser pelo mandato que precede a existência do sujeito que canta. Isso me conduz a afirmar que a postura vocal percebida nas cantoras do rádio correspondia a uma espécie de incorporação de uma ordem discursiva. Rimar amor e dor em vozes intensamente melodiosas compunha um modo de enunciação no feminino em que, contraditoriamente à ordem do masculino, cedia-se espaço para deixar dizer a mulher. Daí que seu canto, mesmo em zonas de tessituras médias, como o de uma Maysa Matarazzo, tinha de ser arrebatador a fim de exercer o poder de dirigir sua voz tanto aos vetores da opressão quanto aos ouvidos escondidos de toda mulher que não devia ousar referir-se a si publicamente. Aparece, nesta maneira de contar a história da presença feminina na arte do canto, uma espécie de salvo conduto à mulher que insistia em ser artista. 
A propósito disso, suponho que, ainda que de modo involuntário, as cantoras populares de genuína tradição radiofônica cumpriram em seu ofício uma missão perante outras mulheres que não se mostravam em esfera pública. O regime enunciativo propunha a eclosão do drama em cena, no qual a mulher subjetivava-se, nos tons da imprecação, da queixa ou da confissão (FOUCAULT, 1983), diante do coro dominante de vozes, cuja propriedade era a de fazer calar a voz feminina. Para cada tom, é preciso salientar, uma forma prescrita de sujeito.
A questão é focalizar no aqui e agora da música popular brasileira uma importante mutação no que diz respeito ao modo como a voz é fator de formação da cantora. Acontece que, no cenário atual, o regime de postura vocal no canto feminino não mais se conforma à mesma maneira de instalar um drama na voz. É que, veremos depois, são outras as condições de produção do sujeito que canta. A partir do que se discute sobre o justo ou injusto espaço dado à figura feminina na música popular, levanto a questão seguinte: como deve a cantora agir pela voz para ocupar o lugar do sujeito cantante segundo as esferas discursivas intrínsecas e extrínsecas relativamente à formação da música popular brasileira?
O essencial da análise que pretendo desenvolver reside na relação entre a existência dessas mulheres como cantora e certa forma de subjetividade atuada na relação entre enunciação e voz. Eis aqui um fenômeno de subjetivação que é preciso toma-lo em sua historicidade. Nesse sentido, a emblemática história das cantoras do rádio interessa não pelas razões biográficas que explicam seu aparecimento e consagração como artista. No que pretendo desenvolver analiticamente em seguida, interessa abordar a história das cantoras como modo de assinalar uma presença singular, a do feminino como voz na canção popular. Para tanto é preciso abrir e embaralhar o espectro histórico a fim de esmiuçá-lo em sua genealogia. Dito de outro modo, não se pode analisar o que se passa com o canto feminino no presente sem relação com o que do passado é parte de sua variação.
Não vou, entretanto, partir dos detalhes que dão forma à história da música popular e, nela, ao acontecimento discursivo da presença das cantoras. Não obstante, tais fatos historiográficos devem ser considerados como necessários pontos de referência. Estes concernem à canção popular a ser abordada como prática indissociável do processo de subjetivação articulado a certa ordem de discurso. Trata-se delimitar, no caso, o regime que dispõe e prescreve sobre a presença da mulher na esfera pública e privada. Torna-se então imperativo reafirmar que não é tanto o fenômeno cultural da música popular que aqui se pretende remontar, seja em que campo de conhecimento ela se defina. O que interessa é seu acontecer como o singular modus operandi de subjetividade, notadamente a feminina. Este processo só se pode tocar pelo discurso, ou seja, pelas falas que ao mesmo tempo referem e produzem o acontecer do canto. 
Assim deter-se sobre a presença da mulher na música popular entendida como prática cultural que diz sobre o estrato histórico em que aparece, é buscar atingir o making off discursivo que a constitui como efeito de subjetividade aplicável ao modo enunciativo de colocar a voz no feminino. Refiro-me ao feminino estritamente como maneira de enunciar que tanto pode se realizar na voz do homem ou da mulher. O que está em causa é forma do feminino que se efetiva enquanto ato vocal de enunciação. Por isso, propositalmente, para os objetivos desta análise, não vou me apoiar em enunciados garantidos por seu estatuto em alguma região de saber (história da música, teoria musical, antropologia da música etc.). Tampouco, vou me preocupar com a exaustividade que legitima a verdade do que se quer atestar, nem em termos estatísticos, nem em termos das ocorrências linguísticas que justifiquem o recorte de um conjunto de fragmentos de fala e não de outro. A única atenção a ser seguida na colheita dos fragmentos de fala sobre o quais textualmente trabalhar a análise é a constância do referencial temático que os mesmos fragmentos instituem mediante as condições de produção em que são proferidos.
Nesta direção, por conta e risco da análise almejada, devo recortar daqui e dali falas que tematizam espontaneamente a presença da mulher na música popular, seja como objeto temático, seja como voz atuante nas canções. Aí já se mostra, de princípio, que nenhuma lógica de conteúdo é requerida para sustentar a análise, apenas o eco, obviamente não causal, entre a fala que agora acontece e as que outrora reconheciam na voz de uma mulher a constituição da cantora se fazendo no instante em que se apropria das palavras e dos traços melódicos de uma canção.  



REFERÊNCIAS
FOUCAULT, M. O Governo de Si e dos Outros .Curso no Collège de France (1982- 1983).Tradução Eduardo Brandão. São Paulo, Editor Martins Fontes, 2010
HOLANDA, C. À flor da pele. Direção: Roberto de Oliveira, Manaus, DVD, EMI Music Brasil Ltda., 2005.
MARTINS, S.. O poder do sussurro. Revista Veja, São Paulo, Edição 2128 / 2 de setembro de 2009. Música, p. 134-135.
MOREL, M. Valeur énoncitive dês variations de hauteur en français. Journal of French. Language Studies. Sept. 1995. Vol5, no. 2. Cambridge university press, pp. 189-202 
ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2001. SOUZA, Pedro de. Sonoridades vocais: narrar a voz no campo da canção popular Revista outra travessia, Jun. 2011 [S.l.], n. 11, p. 99-114

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