sábado, 6 de abril de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


ALEGRIA, ALEGRIA

Quando Domingo, o disco que gravei com Gal, foi lançado já estávamos em 67. Muitos dos nossos colegas cariocas reagiram a ele com muito maior entusiasmo do eu esperaria. Lembro de rostos enternecidos e comentários que pareciam carícias sinceras. A atitude de joão-gilbertianismo radical, combinada com uma originalidade que muitas vezes provinha mais de nossas limitações do que de nossa inventividade, comovia bons músicos algo cansados dos tiques jazzísticos frequentes em seu ambiente. Uma gota de sabor regional (verdadeiro ou falso completava o encanto desse disco modesto. Eu ficara especialmente bem impressionado com os arranjos de Dori Caymmi, que também assinava a produção. Francis Hime e Roberto Menescal, os outros dois arranjadores envolvidos, sem dúvida confirmaram sua capacidade técnica e sua imaginação, mas para mim foi Dori quem tornou possível que Domingo fosse o primeiro produto do grupo baiano que ostentava liberdade em relação aos vícios musicais da época. Eu tinha finalmente algumas soluções parciais para os problemas que eu tentara discutir com Boal e não tivera coragem sequer de abordar com o maestro Cipó, quando da gravação do primeiro LP de Bethânia.
A gravadora encarregou-se da programação visual. Gal e eu fomos levados para o Outeiro da Glória, perto do centro do Rio, para sermos fotografados em frente à igrejinha antiga, para que parecesse que estávamos na Bahia. Eram fotos em preto e branco, e a que foi escolhida é simpaticamente inconclusiva e despretensiosa. Mas um desenhista do departamento de arte da companhia cercou-a daquelas letras que parecem estar se derretendo, e de motivos decorativos igualmente em liquefação - tão característicos da arte gráfica mais vulgar dos anos 60 -, em tons de azul e rosa fortes, e eu fiquei deprimido. O texto que eu escrevi para a contracapa era bom. Sincero e claro, ele rendia homenagens íntimas, trazia muito de Santo Amaro e de Salvador em duas ou três linhas, e, sobretudo, dava conta da defasagem entre o que o disco continha e meus interesses de então: anunciava uma virada para o "futuro" em que eu estava engajado. quase enunciava o tropicalismo.
Mostrei a Zé Agrippino e a Rogério, em meu apartamento do Solar da Fossa, o primeiro exemplar do disco. Ansioso pela reação de ambos a meu texto – uma vez que eu não tinha vitrola para ouvirmos as canções -, já estava me preparando para pedir desculpas pela ilustração quando Agrippino, depois de parecer ter lido umas dez palavras da contracapa, virou-se para mim e disse: "Gostei muito da capa com esses desenhos e letras coloridas". Surpreendi-me, mas tive coragem de dizer que discordava. Ele fez uma cara desalentada, como se tivesse que voltar sempre muito atrás no seu caminho por causa da lentidão dos outros. Rogério, que trabalhava profissionalmente como programador visual de uma editora de livros e era um eloqüente teórico do desenho industrial, pôs-se no meio com observações técnicas muito específicas que serviam mais para desautorizar minha estranheza diante da opinião de Agrippino do que para esclarecer o sentido desta. No entanto, ele dizia claramente desaprovar a capa quase tanto quanto eu. Na noite em que minha canção "Um dia" foi apresentada no festival da TV Record de 66 - por Maria Odete, a mesma cantora que "defendera" "Boa palavra" no da Excelsior, uma moça de voz potente e ouvido preciso, e que,
sendo-me uma total desconhecida, fora escolhida pelos organizadores -, Guilherme Araújo me emprestara um terno seu para que eu estivesse bem vestido, pois os compositores concorrentes eram eventualmente flagrados pelas câmeras, sentados na plateia.
Como eu tinha encontrado o teatro lotado, juntei-me aos espectadores que se sentaram no chão do corredor atapetado entre as fileiras de poltronas. Não sei se isso influiu na reação dos telespectadores à minha aparição fugaz. O fato é que até hoje ouço nas ruas, por parte de desconhecidos, a descrição vívida da lembrança do momento em que me viram de paletó, sentado no chão, ouvindo a música e recebendo a notícia do prêmio de melhor letra. Poder-se-ia dizer que, tendo eu me tornado muito famoso nos anos subsequentes, essas pessoas comprazem-se em reviver comigo o instante dessa primeira aparição como se fosse uma reminiscência íntima compartilhada. Mas o curioso é que no dia seguinte à apresentação do programa já me abordavam nas ruas para comentar a cena - e no mesmo tom. Para mim, o que ressaltou naquele primeiro momento foi o poder da televisão. Alguns segundos no ar e de repente milhares de pessoas têm uma definição afetiva a seu respeito.
A TV Record tinha uma tradição de programas musicais de boa qualidade. Elisete Cardoso e Ciro Monteiro, os grandes veteranos, eram seus contratados desde os anos 50. Roberto Carlos e a Jovem Guarda apareceram como uma diversão despretensiosa para adolescentes nas tardes de domingo. O Fino de Elis, até então campeão de popularidade, começava a perder terreno nas pesquisas de audiência para a turma do iê-iê-iê. Isso - a guerra iê-iê-iê versus MPB - era um velho tema de discussão nas reuniões do Teatro Jovem, nos restaurantes boêmios e nos pátios das universidades. Mas agora invadira as salas da diretoria da TV Record.
Elis, que tinha ido passar férias na Europa, assustara-se, ao voltar, com a queda de popularidade de seu programa em horário nobre e a ascensão do competidor das tardes de domingo. Paulinho Machado de Carvalho, dono e diretor-geral da emissora, convocou uma reunião com todos os mais importantes representantes da ala MPB para encontrar uma solução em conjunto. Além de Elis, foram chamados Wilson Simonal, Nara Leão, Jair  Rodrigues, Geraldo Vandré e Gil. 
Vandré, um paraibano bonito e carismático, tinha sido parceiro de Carlos Lyra e, no festival do ano anterior, dividira com Chico o primeiro lugar, contrapondo a "A banda" sua potente "Disparada". Esta bela canção, magistralmente interpretada por Jair Rodrigues (com a presença marcante de Airto Moreira na percussão, tocando uma caveira de burro que nós não sabíamos que já tinha sido um truque de grupo cubano em filme de Hollywood, era uma moda caipira modernizada e politizada com mestria composicional que lhe dava uma dimensão épica. A retórica revolucionária aqui encontrava seu tom adequado. É curioso pensar que "A banda" de Chico e a "Disparada" de Vandré empataram nesse concurso, quando se tem em mente que aquela canção de Chico, que o fez definitivamente popular, está muito aquém de sua grandeza como poeta e músico, enquanto a "Disparada" é muito superior ao que Vandré fez antes ou depois. Gil ainda não tinha em seu currículo um feito semelhante ao de Vandré, mas Elis tinha gravado com sucesso uma canção sua e ele próprio era figura freqüente em seu programa, com talento exuberante o suficiente para que se tivesse certeza de seu grande futuro. Ao receber o convite para participar do encontro marcado por Paulinho Machado de Carvalho, Gil lhe pediu permissão para levar-me. Paulinho acedeu, com a ressalva de que eu não teria direito a falar. Eu iria como mero ouvinte, na condição de conselheiro de Gil.
Elis, acompanhada de seu marido Ronaldo Bôscoli, o grande letrista e agitador da bossa nova, já então produtor de TV, era, naturalmente, o centro das atenções. Todos falaram com entusiasmo sobre a necessidade de defender nossas características culturais. Geraldo Vandré chegou a ficar com os olhos cheios d'água, tomado pela própria eloquência. Gil corroborou as heróicas intenções, somando a elas alguma reflexão sobre os novos meios de comunicação de massa, restos quase irreconhecíveis dos seus discursos na casa de Sérgio Ricardo.
Paulinho Machado de Carvalho, depois de ouvir todos, concordar com as indignações e alistar-se no exército de salvação da identidade nacional, propôs que, em vez de se tentar revitalizar o Fino da Bossa, se criasse um novo programa, desta vez democratizando as lideranças, distribuindo entre as estrelas crescentes as responsabilidades. Quatro núcleos se criaram: um de Elis, um de Simonal, um de Vandré e um de Gil. Cada um deles apresentaria um programa por mês, no horário e dia do Fino, um para cada semana. O nome geral desse programa, inspirado numa tentativa política de velhos lideres civis (muitos deles antigos inimigos de retomar o poder das mãos dos militares, seria Frente Ampla da Música Popular Brasileira. Nara, que ficara calada até então, dirigiu-se direta e exclusivamente a Paulinho Machado de Carvalho, com muita calma dizendo: "Paulinho, eu sou contratada da sua emissora, continuarei cumprindo meus deveres profissionais. Se me escalarem para um programa, eu vou chegar na hora marcada. Só quero lhe pedir que, se for possível, você diga a seus produtores que não me escalem num mesmo programa com Elis Regina, pois ela declarou numa entrevista à revista Manchete que eu não sou cantora e que eu faço sucesso desrespeitando as forças armadas. Aqui está a minha carteira da Ordem dos Músicos, onde eu sou classificada como cantora". Apenas Bôscoli tentou, sem sucesso, interromper, pondo uma certa doçura na voz, a fala límpida e desmistificadora de Nara. A reunião se desfez burocraticamente.
Esse enfrentamento de Elis por Nara expunha uma velha tensão entre as duas grandes figuras de mulher. Elis possuía um talento musical - e uma voz - com que Nara nem poderia sonhar. Mas ela ascendera da condição de cantora comercial sem sucesso para a de representante do sucesso comercial da responsabilidade estética e política via televisão, o que a deixava numa insegurança que chegava ao paroxismo quando confrontada com a trajetória de Nara: fundadora da bossa nova, aristocraticamente tranquila em suas posições políticas e ambições intelectuais, sem precisar provar nada ou exibir talentos excepcionais, Nara parecia conceder em aparecer na televisão. Isso instigara as declarações infelizes feitas por Elis à revista Manchete, e que só agora encontravam resposta.
Por outro lado, nada poderia ter sido dito naquela reunião absurda que pudesse melhor revelar o que realmente estava se passando do que o discurso que a indignação provocada em Nara por essas declarações a levara a proferir com tanta simplicidade. Nada poderia ter sido mais profundamente político do que esse desabafo, que era na verdade o contrário de um desaforo de diva enciumada. O que ficou patente para todos foi, não que Nara tivesse exibido mesquinha competitividade de estrela perante Elis, mas que ela opusera uma análise realista dos motivos e conseqüências da reunião aos arroubos de auto-engano a que todos tinham se rendido.
O programa, não obstante, foi ao ar. Na noite do primeiro, creio que a cargo de Simonal, preparou-se uma passeata, em mais uma macaqueação da militância política. Era a Frente Ampla da MPB Contra o iê-iê-iê, com faixas e cartazes pelas ruas de São Paulo. Eu conversara com Gil sobre a reunião. Naturalmente, o episódio de Nara versus Elis tomou conta do assunto durante a conversa. Não tanto pelo seu sabor (irresistível de fofoca, mas pelo seu potencial crítico da conjuntura. Ficou claro entre nós que todo aquele folclore nacionalista era um misto de solução conciliatória para o problema de Elis dentro da emissora e saída comercial para os seus donos.
Que Gil aproveitasse a oportunidade para lançar as bases da grande virada que tramávamos. Mas nunca considerei aceitável que ele participasse, ao lado de Elis, Simonal, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré e outros (dizem que Chico chegou a se aproximar por alguns minutos dessa ridícula e perigosa jogada de marketing. Nara e eu assistimos, assombrados, de uma janela do Hotel Danúbio, à passagem da sinistra procissão. Lembro que ela comentou: "Isso mete ate medo. Parece uma passeata do Partido Integralista" (a versão brasileira do nazi-fascismo, um movimento católico-patriótico-nacionalista de extrema direita nos anos 30 do qual alguns antigos expoentes inclusive apoiavam o governo militar.
A necessidade de compensação por esse papelão exacerbou a minha verve rebelde. Achei que, na noite de Gil, o programa deveria se transformar num escândalo antinacionalista e anti-MPB. Como as primeiras idéias pró-iê-iê-iê tinham partido de Bethânia, e ela era a figura mais forte de nos quatro, propus que ela, contrariando todas as expectativas aparecesse no programa de minissaia, portando uma guitarra elétrica de madeira maciça à moda roqueira, e cantasse "Querem acabar comigo", a excelente canção de afirmação pessoal de Roberto Carlos de que ela tanto gostava. Para enriquecer conceitualmente essa pretendida apresentação, escrevi um texto sobre Roberto Carlos que Bethânia diria antes de
cantar. O texto tinha uma empostação literária que fazia dele um veículo para Bethânia cujos shows eram entremeados de falas poéticas ditas com muita verdade e inteligência, o que já era marca do seu estilo cênico Não apenas Gil, Nana, Torquato e eu estávamos hospedados no Hotel Danúbio para trabalhar na elaboração do programa de Gil. Geraldo Vandré e Lennie Dale, o bailarino americano que ensinara Elis a dançar no Beco das Garrafas, tinham também se mudado para lá. Lennie estava colaborando com Vandré - com quem mantinha estreita amizade - na feitura do programa deste último. De algum modo, o texto que eu escrevera para Bethânia dizer caíra nas mãos de Vandré. Era uma consideração da força mitológica da figura de Roberto Carlos, de sua significação como vislumbre do inconsciente nacional, de como ele era, comoventemente, "a cara do Brasil" de então. Quando Beta, depois de dizer isso, cantasse "Querem acabar comigo", ficaria claro com o que queriam acabar - e quem queria. Vandré se enfureceu. Surgiu na porta do quarto de Gil, onde estávamos trabalhando, e, quase chorando, com os pêlos dos braços arrepiados, gritava que nós não podíamos fazer aquilo, que seria um ato de agressão a tudo o que tínhamos de melhor, que minhas observações sobre Roberto Carlos talvez fizessem sentido num ensaio sociológico mas não num programa em que a música brasileira tinha de se afirmar contra o que Roberto Carlos representava. Tentei argumentar. Mas ele estava demasiadamente emocionado e disse que faria tudo para impedir que aquilo acontecesse. Ele ameaçava interromper o numero de Bethânia, de criar um caso. Gil tentava contemporizar. Suas explicações não demoviam Vandré de sua decisão. Percebemos que a situação era arriscada. Bethânia, um tanto surpreendentemente, topara o lance. Mas ela não tinha ideia da fúria que agora se manifestava em Vandré e poderia depois manifestar- se em muitos mais. Nos não a exporíamos a esse risco sem lhe contar o que estava se passando - e ela, se avisada, talvez desistisse. A conversa com Vandré não chegou a um termo propriamente. Ele, à medida que nós nos mostrávamos mais e mais conciliadores, passou do tom revoltado para o tom lamentoso de quem implora. Era pelo bem do Brasil. Eu vi a coisa se esgarçando.
Mas não tendi a radicalizar minha posição. Afinal, Gil tinha um programa por fazer, e eu não acharia saudável pôr toda a turma no fogo (Bethânia principalmente) só porque queria estar certo de que não engolira um sapo. Mantivemos algo do planejado. Não lembro claramente, mias acho que Bethânia foi de minissaia - discreta -, embora sem guitarra e, definitivamente, sem dizer o texto sobre Roberto Carlos, cuja canção nem sei se foi cantada. O que obscurece a lembrança - e desestimula o impulso de ir conferir com Gil ou Beta - é a considerável obscuridade que caiu então e para sempre sobre essa série de programas. Sem se tornar uma marca definida, Frente Ampla da Música Popular Brasileira, com esse título quilométrico e sem uma estrela central, tampouco se tornou um acontecimento cultural interessante para os estudantes que discutiam o assunto. Tenho uma lembrança vaga do que aconteceu no palco do Teatro Paramount naquele mês. Nem sei se vi os quatro programas. Nada lembro do de Elis. O de Simonal foi leve e suingado e bastante vazio. O de Gil foi bastante confuso. Lembro de Torquato (que escreveu o roteiro conosco) na coxia um pouco irritado com as improvisações vocais demasiado longas de Gil. O público não sabia o que ouvir, o que esperar, não entendia nada. O programa de que mais gostei, afinal, foi o de Vandré. Ele ensaiara um número com Lennie Dale, fortemente teatralizado, quase dançado, para sua bela canção "Cipó de aroreira", que resultou muito louco, com Lennie de roupa preta colante estalando um chicote com que terminava por laçar Vandré como se fosse um número apache ou tangueiro, ou uma cena de Rodolfo Valentino. A letra da canção era política, mas essa encenação dava- lhe uma conotação quase erótica que me agradava e que hoje seria tomada por uma exibição sadomasoquista. Não estou dizendo isso para mostrar que eles estavam sendo divertidos involuntariamente embora isso fosse verdade numa certa medida. Não era a impressão que eles me davam, no entanto.
Tampouco quero insinuar que houvesse um caso de amor entre os dois artistas. Na verdade, nada indicava que assim fosse. Mas havia um certo humor alimentado por eles mesmos a esse respeito (Lennie era gay, mas Vandré, não) e esse humor entrava (conscientemente, imagino) na atmosfera do número. Outro momento inesquecível dessa mesma noite mostra bem a dimensão dos equívocos dessa "frente ampla". Vandré convidara Clementina de Jesus, a velha cantora negra lançada aos sessenta anos de idade no Rio por Hermínio Bello de Carvalho e o pessoal do Teatro Jovem no show Rosa de Ouro. Conhecedora de velhos lundus e sambas arcaicos, com uma voz grave e líquida e uma figura de mascara africana, essa mulher era um tesouro que ficara escondido numa vida de empregada doméstica e seu descobrimento, a essa altura um fato longamente festejado no Rio, era profundamente significativo para a história da música brasileira. Foi o convite menos óbvio e o mais inteligente de quantos se fizeram para essa série de programas. Pois bem, o público do Teatro Paramount, jovem e paulista, embora majoritariamente estudantil e nacionalista de esquerda, não tinha ideia de quem fosse Clementina, nem mesmo estava preparado para ouvir o samba em estado tão cru e tão autêntico. Ao vê-la surgir no palco, murmurou assustado e, ao ouvi-la cantar, vaiou, sendo que de alguns jovens presentes (de ambos os sexos) ouvi gritos de "fora, macaco!". Eu próprio, entre revoltado e amedrontado, levantei- me e gritei para os que puderam e quiseram me ouvir: "Paulistas imbecis, vocês não sabem nada. Racistas filhos da puta! Respeitem Clementina!", e sai do teatro. O curioso é que, nos anos 70, quando o mito de Clementina já tinha atingido São Paulo (em 67 ela era um mito nacional, mas São Paulo, com suas grandes massas de cidade industrial, sempre teve uma vida à parte) ela, um pouco esquecida no Rio, e com o samba em baixa no mercado nacional, encontrou por alguns anos refúgio em grandes casas noturnas paulistanas especializadas em samba (sambão, como lá se gostava de dizer), casas que foram precursoras do renascimento comercial do samba sob o nome de partido alto (uma variedade mais antiga, semelhante ao samba-de-roda da Bahia e, depois, "pagode" (uma designação genérica de festa ou bagunça, gíria freqüente entre gente do morro). A reação que eu tive aquela noite no Teatro Paramount foi violenta mas quase imperceptível. Eu já era conhecido por causa do Esta Noite se Improvisa e da fugaz aparição na platéia do festival na apresentação de "Um dia", mas não o suficiente para, com minha atitude, fazer calar uma turba barulhenta e desorientada.
Tendo assumido a tarefa que Gil tão claramente delineara, decidi que no festival de 67 nós deflagraríamos a revolução. No meu apartamentinho do Solar da Fossa, comecei a compor uma canção que eu desejava que fosse fácil de apreender por parte dos espectadores do festival e, ao mesmo tempo, caracterizasse de modo inequívoco a nova atitude que queríamos inaugurar. "Paisagem útil" não me parecia preencher esses dois requisitos. Era bom que a nova canção fosse, como aquela, uma marcha de Carnaval transformada, mas não uma arrastada e errática marcharancho. Tinha que ser uma marchinha alegre, de algum modo contaminada pelo pop internacional, e trazendo na letra algum toque crítico-amoroso sobre o mundo onde esse pop se dava. Lembrei-me de uma canção que eu tinha feito dois anos antes na Bahia para um show que me tinham proposto fazer na Boate Anjo Azul, requintado antro de artistas e intelectuais de Salvador, e que era uma sátira sobre os jovens alienados da cidade, intitulada "Clever boy samba". O show' nunca aconteceu, mas a canção,
diferentemente das outras que eu fazia então, era cheia de referências a lugares badalados da cidade (um deles era a porta da loja O Adamastor, assim chamada não por causa do monstro do poema épico de Camões, mas por ser o nome do seu proprietário, seu Adamastor Rocha, pai de Glauber), a gírias da moda, a trechos de canções americanas e a estrelas do cinema europeu, no intuito claro de criar empatia fácil (mas, eu tinha certeza, surpreendente) com a plateia sofisticada do Anjo Azul. Rapidamente compreendi que, se o tom de mera sátira devia ser subvertido, o esquema de retrato, na primeira pessoa, de um jovem típico da época andando pelas ruas da cidade (o Rio, agora), com fortes sugestões visuais, criadas, se possível pela simples menção de nomes de produtos, personalidades lugares e funções - pois esse era o esquema de "Clever boy samba" -, devia ser mantido pois era o ideal para os novos propósitos. À medida que a canção avançava, eu percebia que, como no caso de "Paisagem útil", havia a distância necessária para a crítica - para mim, uma condição da liberdade -, mas havia a alegria imediata da fruição das coisas. Essa consciência da alegria assim situada me levou a eleger como titulo (sem, contudo, incluir na canção) o bordão "alegria, alegria!", que o animador de TV Chacrinha emprestara do bom cantor de samba-jazz em vias de aderir a um comercialismo vulgar (mas nem por isso menos delicioso) Wilson Simonal. Era um modo de deixar o ouvinte ao mesmo tempo perto e longe da visão de mundo do personagem que, na canção, diz "eu vou". Entre as imagens eleitas, a menção à Coca-Cola como que definia as feições da composição: inaugural e surgindo ali como que não-intencionalmente, a Coca-Cola fez com que se recebesse "Alegria, alegria" como um marco histórico instantâneo.
Chacrinha (Abelardo Barbosa) era um apresentador de rádio que passara com ganho para a televisão. Pernambucano com pesado sotaque, um homem de poucas letras, já na meia-idade então, ele comandava seu anárquico programa com um personalismo apaixonado e hipnótico. Agredindo com humor mas sem humilhar verdadeiramente os calouros pobres e ignorantes que eventualmente ele interrompia com uma buzina semelhante à de Harpo Marx - ele não apenas se punha, mas estava de fato, no mesmo nível dos candidatos, e, afora a buzina, nada tinha de semelhante ao angelical Harpo, sendo um mestiço barrigudo e de voz a um tempo rouca e estridente -, intrometendo-se nos números musicais de estrelas comerciais consagradas, atirando bacalhau na platéia, Chacrinha era um fenômeno de liberdade cênica - e de popularidade. Seu programa tinha enorme audiência e, como se fosse uma experiência dadá de massas, às vezes parecia perigoso por ser tão absurdo e tão energético. Era o programa que as empregadas domésticas não perdiam - e que atraiu a atenção exatamente de Edgar Morin, que veio ao Brasil para estudá-lo. (Três anos depois, no meu exílio londrino, encontrei Morin num jantar na casa da adida cultural da França, e ele, ao saber que eu era brasileiro, me perguntou imediatamente: "Como vai Chacrinha?".) "Alegria, alegria", seu bordão da temporada (ele lançou muitos que entraram na linguagem cotidiana), se tornou o título dessa minha canção projetada para ser um mero abre-alas mas que se tornou o sucesso mais amplo e mais perene entre todas as minhas composições. Isso dentro do território nacional, uma vez que os estrangeiros - mais próximos de mim neste caso - não lhe percebem tanta graça. Sendo que os brasileiros, que nunca a esqueceram, jamais se acostumaram com o titulo, referindo-se a ela na maioria das vezes, não pelo primeiro verso, nem pelo último, nem mesmo pelo quase-refrão "eu vou", mas pelo pregnante "sem lenço, sem documento", que surge duas vezes, e em posições assimétricas, na longa letra.






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