Por Ricardo Moreira
1968
Ao que parece, 1968 – ano em que foi produzido e lançado Tropicália ou Panis Et Circencis - só vai acabar mesmo se confirmadas as antevisões catastróficas do cinema e do calendário Maia para 2012. Mas o que pode ter havido de tão instigante e definitivo nesse ano para que ele fosse considerado “o ano que não terminou”, como garantem o livro de Zuenir Ventura e outras centenas de olhares históricos, sociológicos e filosóficos mundo afora? Um simples passeio online faz com que se entenda que, na verdade, a exuberante qualidade dos fatos ocorridos e sua capacidade de influenciar mudanças no mundo moderno, é que fizeram com que essa história não tivesse final.
No Brasil, quase quatro anos após o Golpe Militar, 1968 estreava Roda Viva – peça escrita por Chico Buarque sob direção de José Celso Martinez que na segunda metade do ano teria seu elenco espancando pelo Comando de Caça aos Comunistas – o CCC. A luta armada contra a ditadura militar era anunciada por Carlos Marighella enquanto março chorava morte de Edson Luís de Lima Souto - o primeiro estudante assassinado pela ditadura militar. A “Passeata dos 100 mil”, na Cinelândia – Rio de Janeiro, agrupava artistas, padres, intelectuais e mães em protesto que provocou a proibição de manifestações públicas pelo Presidente Costa e Silva. Grevistas fizeram refém a diretoria de uma siderúrgica em Contagem e o Brasil contabilizava mais de 15 mil operários de braços cruzados por salário no esteio do nascimento do ABCdário dos movimentos sindicais. A panela de pressão do conservadorismo chiava alto asfixiando a explosão da necessidade de expressão de um novo tempo individual e coletivo no Brasil e fora dele.
Nos Estados Unidos, a opinião pública cansada de ver o negror dos bodybags repatriando seus filhos mortos na guerra no Vietnã, queria mudanças. Nixon venceu as eleições nesse mesmo ano em que Martin Luther King e Robert Kennedy tornaram-se mártires assassinados pelas balas da intolerância racial e da fúria reacionária do conservadorismo yankee. No esporte, os ativistas Panteras Negras subiam ao pódio olímpico mexicano de punhos cerrados e luvas também negras, representados pelos atletas Tommie Smith e John Carlos, numa atitude que repercutia a revolta étnica deflagrada nas ruas. Sincronizado à primeira missão tripulada - Apollo 7, Stanley Kubrick decolava no cinema com o state-of-the-art da ficção científica 2001 – Uma Odisséia no Espaço proporcionando uma viagem somente comparada às lisérgicas de paz e amor livre do musical Hair que estreava na Brodway no auge do sonho hippie.
Em Cuba a revolução de Fidel desapropriava bares e livrarias - os últimos estabelecimentos privados em operação. Nas ruas de Paris a revolta estudantil explodia inspirando Beatles e Rolling Stones nas faixas “Revolution” e “Street fighting man” de seus respectivos White Album e Beggar’s Banquet que lançados no mesmo ano, ajudavam a compor o mosaico da cultura pop que estourava como bola de chiclete na boca do mundo.
Subliminar ou diretamente conectados a tudo isso, Caetano Veloso e Gilberto Gil, futuros comandantes-em-chefe do Estado Maior Tropicalista, vinham tecendo intuitivamente sua bandeira desde o III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, em outubro de 1967, quando “Alegria Alegria” e “Domingo no Parque” encolerizaram a linha dura do movimento estudantil com um coquetel de elementos brazucas, atitudes rock’n’roll e guitarras elétricas dos argentinos Beat Boys e dos Mutantes. Para a elitista plateia de estudantes a afronta era uma espécie de “anti-Cristo”musical erguido em honra e glória do imperialismo americano e contra os fundamentos da pureza da MPB. Guitarra, never!
Encurralados por um lado pelo conservadorismo preconceituoso da elite intelectual estudantil e por outro pela adesão inconteste dos mais jovens ao som pipoca da Jovem Guarda de Roberto e do rock internacional, Caetano e Gil criaram a saída de emergência tropicalista e fugiram por ela levando consigo o que entendiam ser a nova e necessária identidade musical brasileira.
Mas “o avesso da Bossa Nova”, como Caetano definiu o movimento, acabou por fincar seu disco-manifesto somente em agosto daquele ano. Desnorteando os radares do “bom-gosto” vigente na música brasileira ao resgatar o bolero, poesia concreta, cafonices e tudo que pudesse rivalizar com o consenso musical da época, Tropicália Ou Panis Et Circencis destilava sua ironia já na capa ostentando uma foto da “tradicional família tropicalista” de Caetano e Gil, do compositor Tom Zé, dos letristas Torquato Neto e Capinan, do maestro e arranjador Rogério Duprat, do trio Mutantes e das cantoras Gal Costa e Nara Leão - ex-musa da Bossa. O disco, ferramenta de um movimento sem pretensões estéticas de se tornar um gênero musical, passaria a ser considerado o projeto coletivo mais importante da história fonográfica nacional.
De volta às nuvens de chumbo da repressão, o último mês de 1968 trouxe a resposta governamental ao discurso do Deputado Márcio Moreira Alves do MDB/RJ que em setembro atacava a prática da tortura pelo Exército. A espada covarde do Ato Institucional-5 (o AI-5) entrou então em cena decepando os direitos civis e dando poderes absolutos ao Governo. Por ter se recusado a desproteger o Deputado, o Congresso Nacional foi fechado e num golpe duro sobre música brasileira, os militares prendem Caetano Veloso e Gilberto Gil dois dias após o Natal de 68. A justificativa foi terem usado nos shows da Boate Sucata uma deturpação do Hino Nacional Brasileiro e a bandeira seja marginal, seja herói criada a partir da foto do corpo do bandido Cara de Cavalo por Helio Oiticica. O mesmo Oiticia que havia inspirado com sua obra “Tropicália”, o nome da canção homônima do LP Caetano Veloso do mesmo ano que, por sua vez, acabou por se tornar o título do histórico álbum coletivo. A contaminação do germe tropicalista inoculado pelo disco Tropicália Ou Panis Et Circencis persevera por 50 anos e faz dele, a exemplo dos acontecimentos desse emblemático 1968, ser dotado dessa estranha capacidade de não terminar.
O disco que não terminou.
O grupo entrou nos estúdios paulistanos da RGE em maio de 1968 e de lá só sairiam com as 12 faixas do disco gravadas. Caetano esteve à frente da seleção de repertório que adotava como conceito básico o desafio ao status quo musical brasileiro com canções inéditas, regravações e arranjos de vanguarda como os de “Alegria Alegria” e “Domingo no parque” – registros que no ano anterior lançaram as bases do Tropicalismo. Entre as eleitas havia inéditas de Caetano, de Gil, dos dois em parceria, de Tom Zé e letras dos poetas Capinan e Torquato Neto.
O acorde inaugural de um solitário órgão da faixa de abertura parece convocar para a Primeira Missa de um Redescobrimento do Brasil. Gil e Mutantes põem à mesa “Miserere nobis” - a miséria e a riqueza brasileiras destrinchadas pelos talheres vanguardistas dos arranjos de Rogério Duprat. Em seguida Caetano regrava a pérola da cafonice “Coração materno” de Vicente Celestino, travando um duelo épico com cordas cinematograficamente melodramáticas. Pano de fundo kitsch para que a canção descreva sem ruídos, seu curso de colisão contra o que era considerado “música de qualidade” naquele momento.
Na faixa que divide o título do álbum, “Panis et circencis”, a caixa registradora que martela todos os compassos costurada pelo trompete pennylane, a sonoplastia cinematográfica intermitente e o deboche gastronômico final com cordas de Strauss ao fundo, remetem diretamente a psicodelia Sgt. Peppers lançada no ano anterior pelos Beatles. Mas não se deixe enganar, o registro é um inventivo resultado da ingestão ruminante da cultura pop contemporânea praticada como vocação pelo movimento. Apesar da indigesta acidez de sua letra, com o tempo a canção se estabeleceu como uma das mais emblemáticas do álbum ganhando regravações importantes como as do Boca Livre(Boca Livre - 1983) e de Marisa Monte (Barulhinho Bom – 1996).
Ao aceitar interpretar o bolero-antítese-estética-da-bossa, “Lindonéia” de Caetano, a bandeirante Nara Leãoprovavelmente sabia apoiar uma “traição” ao gênero banquinho & violão. Despindo-se então de musa do estilo, Nara traveste a excentricidade da personagem num arranjo ironicamente passional em oposição radical à delicadeza do amor, do sorriso e da flor. Como uma pedra certeira na vidraça de um determinado apartamento da Rua Nascimento Silva, 107 onde há simétricos 10 anos atrás, a Bossa Nova surgia.
A pop-marcha-racho, “Parque Industrial”, tira um sarro coletivo da pilantragem de Simonal, da falácia do Brasil industrial/exportador e da sociedade de consumo onde sexo e violência também são produtos made in Brazil. Uma boa oportunidade de conferir a performance vocal única de Tom Zé no álbum.
Ponteado por uma elétrica guitarra-base sobre a vigorosa cama de metais escrita por Duprat - o arranjo do bumba-meu-boi futurista “Geléia geral”, chama atenção. A letra de Gil expõe raízes culturais brasileiras aos raios gama da TV e à aldeia global de Marshall McLuhan. É interessante observar a convergência de citações musicais que acontece ao fundo da declamação de Gil, onde até “All the way” de Frank Sinatra orbita.
Mesmo estando a bordo do disco-cabeça mais famoso lançado pela indústria, a deliciosa “Baby” foi um sucesso avassalador de rádio e TV entrando para o rol das canções mais populares da MPB. Vale notar a entrada temporã de Caetano entoando “Diana” (1957) de Paul Anka sem maiores preocupações autorais. Ali também havia uma ode intencional à Jovem Guarda na primeira ponte erguida entre a MPB e a música pop produzida no Brasil. Um sacrilégio vanguardista que chamaria atenção de Maria Bethânia que se proporia a partir dali a “ouvir aquela canção do Roberto” a ponto de gravar em 1993 o segundo mais importante song-book em homenagem ao Rei “As Canções que Você Fez Pra Mim” (o primeiro foi o da tropicalista Nara Leão "... E Que Tudo Mais Vá Pro Inferno” de 1978).
Também de 57 como “Diana”, é “Três caravelas (Las tres carabelas)” - versão de Braguinha e sucesso de Emilinha. Só faltava mesmo uma Rainha do Rádio e um mambo para acabar de descabelar o penteado dos “autênticos” da MPB. Novamente as grandes navegações e o colonialismo são postos em perspectiva histórica com o ano que teimava em não terminar.
A capoeira de pé-quebrado “Enquanto seu lobo não vem” dá uma rasteira subterrânea nas botas da censura ditatorial enquanto em “Mamãe coragem”, o poeta Torquato Neto avia uma carta à saudade materna através da voz de Gal Costa que monta, entre a doçura e o escárnio da interpretação, a personagem hippie típica que abandona a família.
Gilberto Gil, Mutantes, Caetano e Gal Costa cantam pra descer o pop-batuquejê concretista “Bat macumba”. O poema visual de Caetano e Gil ao omitir paulatinamente um pedaço do final de cada verso, vai desenhando aos poucos o que bem poderia ser uma visualização parcial da bandeira nacional. Um abuso que passou batido pelos censores.
Para encerrar apoteoticamente com os mesmos tiros de canhões que se podem notar na outra ponta da moldura “religiosa” iniciada por “Miserere nobis”, os idealizadores de Tropicália Ou Panis Et Circencis arrematam com uma regravação marcial do místico e cívico “Hino do Senhor do Bonfim”.
As doze peças do ambicioso projeto de Caetano e Gil projetado para retomar “a linha evolutiva da Música Brasileira”estavam movidas. Tropicália Ou Panis Et Circencis resetou a caretice paralisante na raiz e alterou geneticamente o DNA da MPB que a partir dali pode retomar sua vocação motriz e mutante.
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