Por Luiz Américo Lisboa Junior
João Gilberto - Chega de Saudade (1959)
De tempos em tempos a humanidade vive momentos de grandes renovações, sejam elas no campo das artes ou no seu comportamento social e moral, provocando profundas transformações no curso do desenvolvimento humano. Algumas dessas mudanças às vezes surgem movidas por muita dor. É o caso, por exemplo, das guerras, que após um período de trevas, proporciona invariavelmente uma reflexão sobre a própria destruição que gerou e assim força aos homens a busca de sua renovação e a não repetição de erros tão graves. Outras aparecem para clarear horizontes e demonstrar a vontade do nosso espírito em caminhar rumo a um progresso sempre renovado que vai lhe descortinar horizontes, abrindo caminhos e proporcionando uma visão cada vez maior da necessidade humana em caminhar para o aprimoramento de suas necessidades evolutivas, tornando-se assim co-responsável pelo seu destino, escrevendo, portanto a sua história.
Em nosso país passamos por muitos desses momentos, e um deles surge durante a década de cinqüenta quando o Brasil se redescobre como uma nação pronta a atingir níveis de desenvolvimento que iriam lhe colocar na vanguarda de sua época e marcaria profundamente nossos destinos até hoje. Mesmo com a tragédia proporcionada com o suicídio do presidente Getúlio Vargas, a nação se renova e esse período vem acompanhado de uma auto estima como nunca havíamos experimentado antes. E no curso desse processo de afirmação nacional e patriotismo, vimos o nascimento com grande pujança de nosso parque industrial, a ascenção da classe média e seus sonhos de consumo, a televisão invadindo lares e mudando os hábitos cotidianos, o rádio em seu apogeu através dos programas de auditório, a imprensa livre, o cinema com as produções da Vera Cruz e da Atlântida, esta última fazendo da chanchada o retrato de um país livre e feliz, a democracia reafirmada como o processo político ideal e por fim para culminar esse momento tão especial: nada melhor do que ouvir a batida revolucionária de um violão vindo da Bahia e que iria ganhar o mundo. Estamos na Bossa Nova. Viva João Gilberto e todos seus companheiros que mudaram para sempre os rumos da música popular brasileira.
Um movimento musical sempre vem acompanhado de uma situação fértil de perspectivas de grandes mudanças, o Brasil vivia esse período quando Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Ronaldo Bóscoli, Carlos Lyra, Roberto Menescal e muitos outros verificaram que aquele era um momento especial, e estavam criando a trilha sonora perfeita que reproduzisse a ambiência da época. Faltava apenas o intérprete ideal. E ele surge na figura do violonista baiano João Gilberto que iria gravar um disco que representaria a síntese daquele estado de espírito que inebriava toda a nação.
As gravações do LP Chega de Saudade começaram em janeiro de 1959 e terminaram em 4 de fevereiro, a intenção era ampliar o sucesso obtido por João Gilberto em seus dois últimos discos, gravados no anterior na Odeon ainda em 78 rotações com as músicas, "Chega de saudade", de Tom Jobim e Vinicius de Moraes; "Bim bom", de João Gilberto; "Desafinado", de Tom Jobim e Newton Mendonça e "Ôba lá lá", também de João Gilberto. No LP seriam aproveitadas as gravações dos discos 78 rotações, faltando, portanto, gravar apenas mais oito canções que seriam "Lobo bobo", e "Saudade fez um samba", de Carlos Lyra e Ronaldo Bóscoli; "Brigas nunca mais", de Tom Jobim e Vinicius de Moraes; "Maria ninguém", de Carlos Lyra; "Rosa morena", de Dorival Caymmi; "Morena boca de ouro", de Ary Barroso; "Aos pés da cruz", de Marino Pinto e Zé Gonçalves e "É luxo so", de Ary Barroso e Luiz Peixoto. As gravações terminaram no dia 4 de fevereiro de 1959 e de saída o disco venderia 35 mil cópias, confirmando as expectativas de sucesso, apesar do ceticismo de alguns integrantes da gravadora.
Como o trabalho foi feito em duas etapas aproveitando-se gravações anteriormente lançadas e já conhecidas do público, vários foram os músicos que participaram das sessões de gravação, como por exemplo, Milton Banana, na bateria, Guarany, na caixeta, Juquinha, no triangulo, Rubens Bassini, nos bongôs e Copinha, na flauta, todos presentes na gravação da música "Chega de saudade". Durante a gravação de "Bim bom" além dos músicos citados ainda tínhamos a presença de tres integrantes do grupo Garotos da Lua, Milton, Acyr e Edgardo. Os arranjos são de Tom Jobim e João Gilberto, a direção artística de Aloysio de Oliveira e o diretor técnico de gravação era Z. J. Merky.
Um fato curioso diz respeito a capa do disco: quando o fotógrafo Chico Pereira ajustou as luzes e a câmara para tirar a foto de João Gilberto (que usava um suéter emprestado de Ronaldo Bóscoli) um dos spots de iluminação queimou deixando aparecer sua sombra em forma de machadinha apontada para a cabeça por detrás de João Gilberto. As fotos então deveriam ser refeitas, porém como o tempo de lançamento do disco já estava praticamente se esgotando, André Midami responsável pelas capas dos discos da Odeon resolveu que deveria sair como estava, e assim foi feito.
No texto da contra-capa Tom Jobim afirmava entre outras coisas que "João Gilberto é um baiano Bossa Nova de vinte e sete anos" (...) "Em pouquíssimo tempo influenciou toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores" e ainda que "quando João Gilberto se acompanha ao violão é ele, quando a orquestra o acompanha, a orquestra também é ele".
Assim, este disco surge com uma aura toda especial provocando um divisor de águas na nossa música popular que invade o mundo fazendo-o sentir o gosto do acarajé com a maresia de Ipanema. E assim se fez a história! Viva a Bossa Nova!
Músicas:
01 - Chega de saudade
(Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
02 - Lobo bobo
(Carlos Lyra e Ronaldo Boscoli)
03 - Brigas nunca mais
(Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
04 - Ôba-lá-lá
(João Gilberto)
05 - Saudade fez um samba
(Carlos Lyra e Ronaldo Boscoli)
06 - Maria ninguém
(Carlos Lyra)
07 - Desafinado
(Tom Jobim e Newton Mendonça)
08 - Rosa morena
(Dorival Caymmi)
09 - Morena boca de ouro
(Ary Barroso)
10 - Bim bom
(João Gilberto)
11 - Aos pés da cruz
(Marino Pinto e Zé Gonçalves)
12 - É luxo só
(Ary Barroso e Luiz Peixoto)
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