Prestes a completar 75 anos, Lia de Itamaracá atende a convites de vários Estados para levar adiante seu legado na cultura popular, mas se queixa da falta de apoio e reconhecimento em sua terra natal
Por Mariana Mesquita e Juliano Muta
Lia vestida de amarelo, com o figurino do novo show, na praia de Jaguaribe: sua presença de 1,80 metros magnetiza o olharFoto: Arthur de Souza/Arquivo Folha
O sol brilha quando chegamos à Ilha de Itamaracá e rebate na roupa amarela de Lia, que aguardava nossa equipe como que vestida para um show. Séria, tímida, Maria Madalena Correia do Nascimento faz cara feia quando o fotógrafo, em tom de brincadeira, pergunta o motivo de não estar trajando azul - cor que virou marca registrada e a transformou quase que numa representação da orixá Iemanjá. "Esse é o figurino novo do meu espetáculo, tem algum problema?", fulmina a deusa, magnânima.
Minutos depois, andando pela areia da praia do Jaguaribe com o viralata Mike, recebendo o carinho de turistas e moradores da ilha e contando piadas para o mesmo fotógrafo, Lia sorri e se transforma numa aparição dourada, quente, vibrante. Mais de um metro e oitenta de presença que impacta e de quem é difícil desviar o olhar.
Prestes a completar 75 anos, Lia se tornou um Patrimônio Vivo de Pernambuco - primeiro, de fato; depois, de direito: recebeu otítulo do Governo de Pernambuco em 2005, sendo uma das primeiras a ser distinguidas com a honraria. A trajetória artística é longa, desde que a adolescente foi "descoberta", nos anos 1960, após presentear a cantora Teca Calazans com a mais célebre de suas cirandas. De lá para cá, enfrentou altos e baixos, e em 2018 vive um momento peculiar da carreira. Quase não vem se apresentando em Pernambuco, e se queixa da falta de apoio e reconhecimento. Fora daqui, sua estrela brilha.
Além de estar com um novo disco próprio já encaminhado, em 2019 ela terá um outro álbum gravado dentro do selo Natura Musical (selecionada em um concorridíssimo edital que recebeu 2.617 inscrições de todo o Brasil). Lia acaba de ser agraciada pelo Ministério da Cultura dentro do Prêmio Culturas Populares, na edição de 2018, que homenageia sua amiga Selma do Coco. "Ela concorreu com mestres da Cultura Popular de todo o País e teve nota máxima", comemora o produtor Beto Hees, parceiro de Lia há mais de duas décadas.
Beto se orgulha em enumerar a série de shows que a artista tem programados até janeiro. "Chamam em Natal, Curitiba, Florianópolis... E a gente vai. Mas a frequência maior é em São Paulo, para onde a gente tem viajado quase todo mês, já há dois ou três anos. Quando Lia não faz show solo, vai como convidada", relata.
Uma das últimas apresentações ocorreu justamente em São Paulo, no Sesc Pompeia, em comemoração ao Mês da Consciência Negra, e na companhia de Daúde e outros artistas locais. Lia homenageou outras mulheres negras como Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara e Dona Santa, foi destaque na imprensa local e arrebatou uma plateia lotada e emocionada diante da força de sua arte.
O próximo grande evento será em Olinda, no encerramento do festival Mimo, neste domingo (25). Em dezembro, mesmo com as dificuldades de logística que atrapalham o funcionamento de seu centro cultural, o Estrela de Lia, haverá ciranda na praia, no dia 23. E, no Carnaval, Lia será homenageada pelos dois maiores blocos pernambucanos: o Homem da Meia-Noite, de Olinda, e o Galo da Madrugada, do Recife.
"Acho que eles estão com fome de Lia... Já que não deixam a gente fazer cultura popular no espaço da gente, estamos atuando fora. Esse jejum fez bem para Pernambuco se ligar. Lia não é só de Itamaracá, é do mundo!", brinca Beto Hees.
Ciranda continua sem funcionar
Nem tudo é brilho na vida de Lia de Itamaracá. Seu reconhecimento e a projeção nacional contrastam com o descaso que afirma estar recebendo dos governos locais. À reportagem da Folha de Pernambuco, Lia revelou que passou a evitar fazer shows pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) por conta dos atrasos no pagamentos de cachês. Além disso, o espaço que a artista mantém em Itamaracá, o Centro Cultural Estrela de Lia, nunca recebeu melhorias, mesmo contemplado desde 2016, com recursos do Fundo Estadual de Apoio ao Desenvolvimento Municipal.
O histórico de atrasos fez a artista decidir evitar propor shows ao Governo do Estado. "Há dois anos a gente não faz apresentações pelo Governo. Porque é aquela confusão para receber. Nos últimos tempos acentuou demais, não é mais três meses para receber, chega a um ano", denuncia Beto Hees, produtor de Lia.
De acordo com ele, o fato do grupo que acompanha a artista ser muito numeroso torna as apresentações inviáveis. Segundo Beto, até os cachês de apresentações de Lia nas escolas, contrapartida pelo título de Patrimônio Vivo, foram pagos com atraso, um deles inclusive levando quase um ano para ser efetuado. Hoje Lia não tem nenhum pagamento pendente.
Por meio de nota, a Fundarpe não comentou sobre os atrasos de cachês e se limitou a destacar a importância da artista para a cultura pernambucana. "Lia de Itamaracá é um Patrimônio Vivo de Pernambuco e uma artista e mulher de extrema importância para nossa arte e nossa cultura. Temos orgulho de Lia. Ela sempre fez parte e continuará participando e contribuindo para a difusão da nossa cultura", diz o texto.
Lia também raramente se apresenta em eventos da Prefeitura da Ilha de Itamaracá. Não por falta de interesse, mas de convites. Na abertura do verão do município, por exemplo, a principal atração foi Solange Mendonça, contratada por meio de inexigibilidade de licitação, conforme Portal da Transparência. Mas a mesma atenção não tem sido oferecida ao principal ícone da cultura de Itamaracá, que além de não figurar nas programações do município, sofre para manter seu espaço.
Desvalorizada, Lia evita shows pelo Governo do Estado e luta para manter seu espaço, o 'Estrela de Lia', que já tem recursos garantidos que ainda não foram liberados - Crédito: Arthur de Souza/Arquivo Folha
O espaço Estrela de Lia foi adquirido pela cantora em 2004 e recebeu uma emenda parlamentar, em 2016, no valor de R$ 249.999,74, através do Fundo Estadual de Apoio ao Desenvolvimento Municipal (FEM) para a reconstrução do espaço. O autor da emenda foi o então deputado estadual Guilherme Uchôa, falecido em 3 de julho deste ano.
A Secretaria de Planejamento e Gestão (Seplag), responsável pelos repasses de recursos, informou que a primeira parcela foi transferida no ato da adesão, no valor de R$ 74.999,92, em 17 de janeiro de 2018, e o município ainda não solicitou a segunda parcela.
Mesmo com os recursos assegurados e a primeira parcela constar como "paga" no Portal da Transparência do Estado, nenhuma obra foi executada no Estrela de Lia até o momento. A Prefeitura de Itamaracá informou que foi feita a licitação, contratada a empresa e dada a ordem de serviço. Depois aguardou-se que a empresa iniciasse as obras, visto que o prazo de execução para a parte licitada era de seis meses.
Após o trâmite legal de espera e não ocorrendo nenhum tipo de manifestação por parte da empresa, a Prefeitura, por meio da Secretaria de Infraestrutura, solicitou o distrato do contrato com a empresa de forma unilateral para chamar a segunda vencedora para realizar a obra.
O município aguarda o prazo legal para o novo processo licitatório, já iniciado pela Controladoria Municipal. A previsão é que o novo contrato seja assinado ainda em novembro.
Descontente com o tratamento recebido pelos entes governamentais e sem poder exercer as atividades do seu centro cultural, Lia de Itamaracá não escondeu sua tristeza. "Estou muito magoada, muito chocada. Espero, como esperei até hoje, com muita luta e muito aperreio e sem ter condições de nada, que alguém sinta [solidariedade pela] minha causa e faça alguma coisa. Se alguém tiver que fazer alguma coisa por mim, faça comigo viva, faça agora", desabafou.
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