O mais improvável encontro musical do ano reuniu a idiossincrática diva das divas, a baiana Maria Bethânia e o sambista carioca - malandro dos malandros - Zeca Pagodinho. Tudo começou em 2016, na gravação do CD/DVD “Quintal do Pagodinho”, em que a dupla dividiu “Sonho meu” (Dona Ivone Lara/ Délcio Carvalho), dueto reproduzido no novo encontro. A ideia de um trabalho conjunto ganhou forma e desembocou na turnê “De Santo Amaro a Xerém”, agora documentada em CD duplo e DVD pela Biscoito Fino. O registro é das apresentações dos dias 18 e 19 de maio, de 2018, no Citibank Hall, de São Paulo. Abre com “Amaro a Xerém”, onde o autor, o irmão da solista, Caetano Veloso, traça um elo entre a cidade baiana onde nasceu sua família e a que Zeca escolheu para sua sede rural: “No alto brilha um risco raro/ quepassa do mal ao bem/ por cima formando um aro/ por baixo um trilho de trem/ de Guadalupe ao Amparo/ de Xerém a Santo Amaro/ de Santo Amaro a Xerém”.
Plantada no Recôncavo Baiano, Santo Amaro da Purificação, na verdade, seria um possível berço do samba carioca. Não por acaso, foi Baiano (Manoel Pedro dos Santos, 1870-1944) quem registrou o inaugural “Pelo telefone”, em 1916, atribuído ao carioca Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos, 1890-1974), na certa, uma criação coletiva surgida na casa de Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida, 1854-1924), uma das baianas festeiras da Praça Onze, do início do século passado. A populosa linhagem baiana do samba, ainda deságua em outro santamarense ilustre, o imperiano Mano Decio da Viola (Décio Antonio Carlos, 1909-1984), habitual parceiro de Silas de Oliveira em sambas enredos. Há várias conexões entre essas latitudes no disco, como o mega sucesso de Zeca Pagodinho, de outro ás do Recôncavo, Roque Ferreira, nascido em Nazaré das Farinhas, “Samba pras moças” (com Grazielle). Ou as interpretações de Bethânia da chula/samba de roda “Iluminada”, da dupla autoral de Santo Amaro, Jorge Portugal e Roberto Mendes, e “De Santo Amaro a Xerém”, do paulista Leandro Fregonesi (“Entra na roda, meu bem/ dá o tom, violeiro/ eu aprendi na Bahia e no Rio de Janeiro”). A cantora ainda conecta “Pertinho de Salvador” (Fregonesi) e “Quixabeira” (Carlinhos Brown/ Afonso Machado/ Von der Weid), e mais “Adalgisa”, do baiano-mor Dorival Caymmi, com “Falsa baiana”, samba sincopado do mineiro da Mangueira, Geraldo Pereira. E Zeca recria outro êxito de cepa baiana, “Verdade”, do soteropolitano Nelson Rufino (com Carlinhos Santana).
Mas o show não é tese de mestrado a respeito das afinidades entre as músicas dos estados dos dois astros. E sim uma troca de passes entre dois grandes intérpretes, cada um em seu território e com banda própria. Depois de uma abertura dialogada, que inclui até uma acoplagem de “Você não entende nada” (Caetano) e “Cotidiano” (Chico Buarque), Zeca (“a mulher é assim, deixa o homem sozinho, coitado”, pilheria) sola o primeiro bloco, aberto pelo atemporal “A voz do morro” (Zé Kéti). E segue por seus sucessos como “Lama nas ruas” (parceria com Almir Guineto),“Não sou mais disso” (com Jorge Aragão), “Maneiras” (Sylvio da Silva), “Vai vadiar” e “Coração em desalinho” (ambas de Monarco e Ratinho). A mística “Ogum” (Marquinho PQD/ Claudemir) fornece o mote para a volta ao palco de Bethânia na “Oração de São Jorge”, de domínio público.
No bloco da cantora ela revive antigos clássicos como “O X do problema” (Noel Rosa), “Ronda” (Paulo Vanzolini), “Pano legal” (Billy Blanco), “Café soçaite” (Miguel Gustavo), “Negue” (Adelino Moreira/ Enzo Passos) e uma associação entre os farpados “Marginalia II” (Torquato Neto/ Gilberto Gil), da era tropicalista e o contemporâneo da cidade da bala perdida, “Estação derradeira” (Chico Buarque). Sempre esgrimindo bem humorados antagonismos, Zeca encadeia um pot-pourri de sambas de sua escola, a Portela, rebatida com temas mangueirenses por Bethânia. Instado pela parceira (“ele canta lindo!”) ao papel de crooner, que recusa entre ironias, ZP se aventura em duetos com MB pelo clássico romântico de Miguel Gustavo “E dai? (Proibição inútil e ilegal)”, sucesso de Isaura Garcia, de 1959. E mais, “Desde que o samba é samba” (Caetano), “Naquela mesa” (Sergio Bittencourt) e até mesmo (“olha o que ela me fez cantar!”) “Chão de estrelas” (Silvio Caldas/ Orestes Barbosa), onde as arestas não aparadas injetam vitalidade no velho hino seresteiro. O show fecha em apoteose (“essa mulher me emociona, rapaz!”) com a canção tema e mais “Deixa a vida me levar” (Serginho Meriti/ Eri do Cais) e o arrasta povo “O que é o que é” (Gonzaguinha), raro toque corriqueiro neste saboroso encontro de imprevistos.
Texto de Tárik de Souza
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