"Do Fundo escuro do coração solar do hemisfério sul, de dentro da mistura de raças que não assegura nem degradação nem utopia genética, das entranhas imundas (e, no entanto, saneadoras) da internacionalizante indústria do entretenimento, da ilha Brasil pairando eternamente a meio milímetro do chão real da América, do centro do nevoeiro da língua portuguesa, saem estas palavras que, embora se saibam de fato despretensiosas, são de testemunho e interrogação sobre o sentido das relações entre os grupos humanos, os indivíduos e as formas artísticas, e também das transações comerciais e das forças políticas,
em suma, sobre o gosto da vida neste final de século."
"A palavra poeta encerrava tal grandeza como nenhuma outra poderia, e, mesmo que um tanto secretamente, eu a acolhi em meu coração e procurei aplicá-la ao que eu fazia e faria -- embora não fosse poesia." Nesta Verdade tropical, o centro da atenção de Caetano Veloso é o tropicalismo - seus pontos de partida afetivos e intelectuais; seus protagonistas; o modo como foi percebido por uma geração que cantava música popular apaixonadamente, como quem toma partido; as visões do Brasil delineadas a partir dele; as formas que encontrou de se desdobrar ao longo do tempo.
Mas Caetano fala diretamente de si mesmo, transformando a relação com a música num roteiro de sua vida pessoal. Assim, no capitulo "Narciso em férias", ele relembra os dois meses em que ficou preso, na passagem de 68 para 69.
Conta, por exemplo, como teve a chance de evitar a prisão de Gilberto Gil e não soube fazê-lo; descreve seu sono irremediável e o modo como vivenciou o erotismo naquele confinamento entre homens; explica as tais fotografias da Terra que viu numa revista de variedades; narra sem pressa uma situação que hoje lhe inspira "um misto de humor e nojo": no pátio do quartel dos pára-quedistas, sob "um sol brutal, com um cano de metralhadora ás costas, eu cantava suavemente Para o oficial de dia".
Caetano estende uma linha cronológica a partir da infância e da adolescência em Santo Amaro, e, embora se concentrando no período que vai até meados da década de 70, chega até o momento em que terminou de escrever este livro, em julho de 97. De um extremo ao outro os temas se multiplicam: as relações familiares; a ditadura, o exílio em Londres; leituras decisivas e preferências literárias; o sexo, a experiência com as drogas: Gil, Bethânia e Gal; João Gilberto e a bossa nova: rock'n'roll e samba; Chico Buarque; Glauber, Cinema Novo e amor ao cinema; projetos estéticos das décadas de 60 e 70; os festivais e os programas de auditório, a velha Record; o teatro de Zé Celso e o de Boal; o diálogo com os concretistas; a contracultura de Zé Agrippino; Beatles e Mutantes; Rio, São Paulo e Salvador, etc.
Sem ser uma autobiografia, Verdade tropical é Caetano Veloso por ele mesmo.
Pode ser a MPB por ela mesma ou nossos trópicos por um tropicalista, por um brasileiro músico, por um compositor brasileiro que aqui faz do tempo a torre mais alta do seu observatório.
É a primeira vez que ele usa longamente a escrita. De muitas maneiras, entretanto, conhecemos de perto o autor de Verdade tropical: suas canções misturam-se ás nossas experiências, traduzem nossa vontade de amor e de protesto, sugerem o tom e o pulso de certas danças ocultas dentro de nós. Neste livro está intacta sua capacidade de nos provocar, de nos pôr em movimento com seu ouvido inquieto, com a vitalidade de sua imaginação reflexiva, com uma forma própria de falar a língua portuguesa.
Caetano Veloso nasceu em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, em 1942.
Cantor e compositor, publicou o livro Alegria, alegria e dirigiu o filme O cinema falado (1986).
AGRADECIMENTOS
Cristiana Lavigne leu o a amontoado de escritos que crescia na mesma medida em que ia se tornando intratável, e, apontando elos e sugerindo cortes, me deu de volta a esperança de fazer dele um livro.
Rubem Fonseca (que, num diálogo telefônico internacional com Cristiana Lavigne, ajudou a resolver um problema de informática) leu o material já organizado e, entre comentários muito encorajadores (também ao telefone), aconselhou (na verdade impôs) três cortes curtos e precisos como as frases que o fizeram famoso. Duas dessas ordens foram imediatamente seguidas à risca, e uma delas - depois de muita hesitação - apenas em parte.
Mais longe e mais perto, Luís Tenório de Oliveira Lima me deu de presente, no meio dos anos 70, um livro de Unamuno em que li as mais comoventes observações jamais feitas por um estrangeiro sobre a língua portuguesa, o que mudou minha relação com as palavras.
Finalmente, ainda mais longe mas muitíssimo mais perto, Rodrigo Velloso me fez, no final dos anos 50, uma assinatura da revista Senhor, e assim tomei contato com os textos de Clarice Lispector, cuja obra Rodrigo passou a comprar sistematicamente para mim, como também a de João Guimarães Rosa e a de João Cabral de Melo Neto. Isso me levou a amar os livros com uma profundeza que supera a falta de intimidade que ainda hoje tenho com eles.
Obrigado,
C.V.
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