Por Leonardo Davino*
terça-feira, 7 de julho de 2020
LENDO A CANÇÃO
Mulheres de Atenas
Composta em 1976 para a trilha da peça Mulheres de Atenas, de Augusto Boal (adaptação do texto Lisístrata, de Aristófanes), esta canção tematiza o papel da mulher na sociedade. Porém, reduzi-la a essa leitura é arbitrário e limitador, pois é a estrutura da canção que a torna bela.
Composta de cinco estrofes (de nove versos cada) "Mulheres de Atenas", de Chico Buarque e Augusto Boal, do disco Meus caros amigos (1976), especialmente no refrão, remete-nos à estrutura usadas nas cantigas medievais: o paralelismo, com ligeiras alterações.
As estrofes tem esquema fixo: o primeiro verso rima com o segundo, o quinto o oitavo e o nono; o terceiro rima com o quarto; o sexto com o sétimo. A métrica também merece destaque: os dois primeiros versos de cada estrofe tem 14 sílabas poéticas; o terceiro, o quarto, o sexto e o sétimo tem oito; o quinto e o oitavo têm quatro e o nono tem duas. Tudo feito para indiciar a mirada perfeita sugerida pelo sujeito que fala na canção.
A forma elaborada se estende ao conteúdo, senão vejamos a sutileza com que o ciclo de vida da mulher é apresentado: vivem, sofrem, despem-se, geram, temem, secam. Eis a cronologia da função da mulher ateniense recuperada e cantada pelo sujeito. Sereia, este sujeito canta as mulheres de lá a fim de dar exemplos às mulheres de cá, àquelas para quem ele dirige seu canto.
Composta em período político complicado do Brasil, "Mulheres de Atenas" (ao fazer uso das figuras míticas de Penélope, aquela que anos a fio esperou por seu Ulisses, e Helena, cuja beleza e rapto disparou a Guerra de Tróia) sugere, ironicamente (basta prestar atenção aos epítetos e adjetivos dados aos maridos a cada nova estrofe), à mulher de agora a compreender a retomada urgente da posição feminina na sociedade.
***
Mulheres de Atenas
(Chico Buarque / Augusto Boal)
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem por seus maridos, poder e força de Atenas
Quando eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar violentos
Carícias plenas
Obscenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem por seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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