segunda-feira, 19 de novembro de 2018

MEMÓRIA MUSICAL BRASILEIRA

Por Luiz Américo Lisboa Junior

Elizete Cardoso
Canção do Amor Demais - 1958


    
Em "Carta ao Tom 74", música composta com Toquinho, Vinicius de Moraes se expressa com uma certa melancolia ao relembrar um momento marcante de sua vida, os ensaios de gravação do LP Canção do Amor Demais: "Rua Nascimento Silva 107, voce ensinando pra Elizete as canções de Canção do Amor Demais/Lembra que tempo feliz ai, que saudade/Ipanema era só felicidade/era como se o amor morresse em paz". Gravado em janeiro de 1958 este disco traria pela primeira vez reunidas músicas de Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes. As canções eram totalmente desconhecidas do público e seus autores ainda estavam iniciando uma trajetória de sucesso. Tom Jobim em que pese ter feito em 1954 a Sinfonia do Rio de Janeiro com Billy Blanco e as canções da peça Orfeu da Conceição em 1956 não era ainda uma grande atração no meio artístico e Vinicius era um conceituado poeta, diplomata e que vinha aproximando-se da música popular. Para completar as duvidas com relação ao êxito do disco, ressalte-se o fato dele ter sido gravado pela etiqueta Festa do jornalista Irineu Garcia, que vinha há algum tempo produzindo LPs com poetas brasileiros recitando seus poemas, ou seja, para um público muito segmentado, além do que o disco teria uma tiragem de apenas 2.000 exemplares. A expectativa de seu sucesso estava então focada em sua intérprete, Elizete Cardoso, uma cantora em plena ascensão que já vinha de êxitos anteriores e tinha um público consumidor crescente.

Contratada pela Odeon, Irineu Garcia teve que superar os entraves de ordem comercial com a gravadora de Elizete conseguindo seu empréstimo para a realização do disco com a condição de que o fato fosse registrado na capa do LP. Superado esse problema inicial, os ensaios começaram então na casa de Tom Jobim na Rua Nascimento Silva 107, em Ipanema, endereço que ficou famoso por ter sido o embrião da Bossa Nova. O disco foi programado para conter 13 músicas e após a finalização dos ensaios, era a hora de escolher os músicos que iriam participar das sessões de gravação. Foi então escalada uma orquestra com sete violinos, duas violas, dois violoncelos, dois trombones, uma flauta e uma trompa, no entanto nem todos tocariam ao mesmo tempo, pois a intenção de Tom Jobim autor dos arranjos era dar uma conotação de orquestra de câmera, algo bem simples e sofisticado, muito característico, aliás, em inúmeras gravações daquele período.

Mas o que fez Canção do Amor Demais ser um disco revolucionário foi o fato de conter entre os seus músicos um jovem e desconhecido violonista baiano de apenas 31 anos que iria participar de duas faixas, "Chega de saudade" e "Outra vez", seu nome, João Gilberto, que apesar de não ter seu nome juntamente com os outros músicos participantes creditados na capa do disco, era figura conhecida apenas entre um seleto time de artistas. Seu temperamento irrequieto, que seria sua marca registrada, já ficava implícito nas exigências que fez durante as gravações ao propor mudanças ao estilo interpretativo de Elizete Cardoso, sugerindo que ela cantasse em um tom mais intimista, o que ela recusou por não se adaptar à sua batida de violão.

Considerado realmente como o marco inicial da Bossa Nova por conter canções de Tom Jobim e Vinícius de Moraes que marcariam definitivamente o movimento, o disco tornou-se histórico na música popular brasileira por ter revelado pela primeira vez uma batida de violão que iria mudar os rumos de nossa canção, era a estréia tímida de João Gilberto e seu estilo que daria vida a Bossa Nova. A contra-capa vinha assinada por Vinicius de Moraes na qual ele se derrete em elogios a sua amizade com Irineu Garcia, Elizete Cardoso e a parceria com Tom Jobim, assim expressa: "(...) Nem com este LP queremos provar nada, senão mostrar uma etapa de nosso caminho de amigos e parceiros no divertidíssimo labor de fazer sambas e canções, que são brasileiros, mas sem nacionalismos exaltados e dar alimento aos que gostam de cantar, que é coisa que ajuda a viver".

Depois desse disco, bem...todos sabem o que aconteceu na música popular brasileira, ela nunca foi a mesma e tornou-se universalmente admirada, estava, portanto, ali surgindo um movimento que iria mudar os padrões estéticos e artísticos não de nossa canção, mas que também iria influenciar muitos outros povos sendo até hoje admirada e aplaudida em todos os cantos do mundo onde haja a mistura exata de boa música, poesia, balanço, combinadas com o talento inigualável de nossos artistas. Que seja infinita enquanto dure, e la se vão 46 anos de história.




Músicas:
01- Chega de saudade
(Tom Jobim/Vinícius de Moraes)
02- Serenata do adeus
(Vinícius de Moraes)
03- As praias desertas
(Tom Jobim)
04- Caminho de pedra
(Tom Jobim/Vinícius de Moraes)
05- Luciana
(Tom Jobim/Vinícius de Moraes)
06- Janelas abertas
(Tom Jobim/Vinícius de Moraes)
07- Eu não existo sem você
(Tom Jobim/Vinícius de Moraes)
08- Outra vez
(Tom Jobim)
09- Medo de amar
(Vinícius de Moraes)
10- Estrada branca
(Tom Jobim/Vinícius de Moraes)
11- Vida bela
(Tom Jobim/Vinícius de Moraes)
12- Modinha
(Tom Jobim/Vinícius de Moraes)
13- Canção do amor demais
(Tom Jobim/Vinícius de Moraes)



Ficha Técnica
Elizete Cardoso – Vocal
Antonio Carlos Jobim – Arranjos, regência e piano
João Gilberto – Violão
Irany Pinto – Violino e arregimentador
Nicolino Cópia (Copinha) – Flauta
Gaúcho e Maciel – Trombones
Herbert – Trompa
Vidal – Contrabaixo
Juquinha – Bateria
Sete violinos, duas violas e dois cellos não identificados
João Gilberto, Antonio Carlos Jobim e Walter Santos – Coro em "Chega de Saudade"

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