Por Marcus Preto
Na pele do futuro moram as cicatrizes desenhadas pelo tempo. Feridas que se fizeram e se curaram depois de uma vida de consagrações e quedas, voos e naufrágios, descobertas e desgastes, desencontros e retomadas. Em contato direto com essa pele, que fica mais velha ao mesmo tempo em que se renova, Gal Costa interpreta as canções do novo álbum, A Pele do Futuro, que chega agora em um lançamento da gravadora Biscoito Fino. A produção é de Pupillo e a direção artística, desse que vos escreve, Marcus Preto.
O nome do álbum foi pinçado de um verso da linda balada de Gilberto Gil, “Viagem Passageira”, composta especialmente para a voz de Gal. É canção da mesma linhagem filosófica que Gil explorou em clássicos absolutos como “Copo Vazio”, “Retiros Espirituais” e, mais recentemente, “Não Tenho Medo da Morte”. Para cantar algo assim tão profundo, não caberia recorrer a uma interpretação dramaticamente carregada. Optamos por buscar a voz absolutamente joãogilbertiana que Gal usava no começo da carreira, sobretudo no primeiro compacto, de 1965. Uma cantora em estado de meditação. Ela não gravava nada inédito de Gil em álbum próprio desde “O Sorriso do Gato de Alice” (1993).
Gal queria se experimentar dentro da estética da disco music desde quando traçávamos o que seria seu álbum anterior, “Estratosférica”, entre 2013 e 2014. Não conseguimos chegar em nada perto disso naquele momento, mas a ideia era boa demais para ser abandonada. O impulso do novo trabalho nos trouxe de volta esse foco. Procuramos, então, canções que pudessem se prestar à atmosfera disco entre as que chegavam. Pupillo, o gênio do ritmo, foi preciso ao apontar essa vocação em duas.
A primeira, “Sublime”, eu ouvi tocada pelo autor, Dani Black, em uma roda de violão na casa de Maria Gadú. Era um samba lento, algo como um Gilberto Gil cantado por João Gilberto. Fiquei fascinado com a beleza imediata daquela canção e, quando Dani confirmou que estava inédita, pedi para que ele guardasse para Gal. Quem ouve a versão original jamais imagina esse lugar disco music para ela. O arranjo do trio de sopros foi criado por Tiquinho. O de cordas, pelo jovem carioca Felipe Pacheco Ventura, da banda Baleia.
A segunda, “Cuidando de Longe”, estava entre as nada menos do que 15 demos que Marília Mendonça enviou via whatsapp quando já estávamos em estúdio gravando as bases. A ideia de procurar a diva do sertanejo foi da própria Gal, inspirada por Gloria Gaynor e pelo clássico “I Will Survive” que ela tanto adora. Gal queria uma canção que não fosse exatamente alegre, mas que tivesse uma mensagem de superação, de volta por cima, que seria potencializada pelo arranjo dançante. “Será que a Marília Mendonça não nos mandaria uma sofrência?”, ela me perguntou em meio a um voo São Paulo - Rio. A ideia me soou tão estimulante que fui atrás da compositora assim que desembarcamos no Santos Dumont. Quando as músicas chegaram, Gal pegou meu celular e clicou em um dos arquivos, aleatoriamente. Já era “Cuidando de Longe”. “É essa! Temos nosso ‘I Will Survive’!”, ela gritou. Gal chegou a colocar voz na música inteira, mas logo pensei na possibilidade de ter a própria Marília Mendonça dialogando com ela. Afinal, estamos falando de Gal: a cantora que, em 1973, fez a ponte entre música sertaneja e MPB quando lançou sua versão para “Índia”, sucesso da dupla Cascatinha e Inhana. Promover esse tipo de cruzamento sempre fez parte da personalidade tropicalista de Gal. Marília veio ao estúdio e gravou sua voz de primeira, em um take só. As duas cantoras ficaram amigas naquele instante. O trio de backing-vocalistas é formado por Céu, Filipe Catto e Maria Gadú.
Com esse mesmo foco na disco music e nas pistas de dança da virada dos anos 1970 aos 1980, Gal sugeriu que Guilherme Arantes fizesse uma canção na praia de Earth, Wind & Fire. Ligamos para o compositor. “Puro Sangue (Libelo do Perdão)” veio na medida tão exata que os dois choraram quando ele cantarolou a música ao telefone. Àquela altura, uma letra de Caetano Veloso chegou a ser pensada para essa melodia. Mas Caetano, lendo os esboços de Guilherme, entendeu que não era o caso: “Essa música está pronta e é linda. Não há nada que eu possa fazer aqui para deixá-la maior”. Na gravação, contamos com os teclados e sintetizadores arranjados e tocados pelo próprio Guilherme Arantes.
“Palavras no Corpo” nasceu em uma conversa de bar que tive com o poeta e artista plástico carioca Omar Salomão. Filho de Waly Salomão (1943- 2003), Omar comentava quão lindo era ouvir a versão “Fa-Tal” de “Sua Estupidez”(Roberto e Erasmo Carlos). “Ninguém diz ‘eu te amo’ como a Gal”, ele comentou. Achando aquilo bonito demais, pedi para que ele fizesse um poema com esse mote. Semanas depois, os versos chegaram em meu e-mail e foram encaminhados para ao cantor e compositor capixaba Silva, que fez a música. Recomendei apenas que ela fosse visceral e adotasse uma pegada soul à Amy Winehouse, de quem Gal é fã. Assim foi criado o primeiro single de A Pele do Futuro.
Hyldon escreveu “Vida que Segue” em um final de semana, quando já estávamos em estúdio gravando as bases. Com muitos dos caminhos do álbum se enviesando para o território da black music (disco, soul, Amy etc.), tornou-se, se não fundamental, ao menos irresistível ter nele uma canção do mestre do samba soul, autor do clássico LP “Na Rua, na Chuva, na Fazenda” (1975). Hyldon nunca havia sido gravado por Gal e passou sábado e domingo lapidando a canção, que foi entregue na segunda-feira e gravada imediatamente.
O arranjo de “Mãe de Todas as Vozes” foi inspirado na fase “Fa-Tal”. Originalmente uma bossa nova, a música foi um presente de Nando Reis e estava no pré-repertório do show coletivo Trinca de Ases, de 2017, que unia Gil, Nando e Gal. Mas, como o show já tinha outras três canções inéditas, essa acabou não ficando no roteiro final daquele espetáculo. Comemorei o fato, pois teríamos algo novinho para começar a trabalhar no novo álbum de Gal. Finalmente gravada, “Mãe de Todas as Vozes” se transformou em um blues-rock que fortaleceu sua poesia. A cantora Céu faz o backing vocal.
“Abre-Alas do Verão” é a primeira das duas parcerias feitas até agora entre o mestre carioca Erasmo Carlos com o rapper paulista Emicida. A segunda, “Termos e Condições”, foi registrada pelos próprios autores do novo álbum de Erasmo, “...Amor É Isso” (2018). Erasmo está na história de Gal Costa desde o início, nos anos 1960. Vale lembrar que foi ele quem escreveu, junto com Roberto Carlos, a clássica “Meu Nome É Gal”, de 1969. Erasmo me mandou a melodia por WhatsApp, acompanhando-se ao violão. Enviei ao Emicida, que logo fez a letra, pensando no peso dos nosso tempos: “Moça, seja forte”.
Também foi em “O Sorriso do Gato de Alice” (1993) que Gal registrou pela última vez uma música nova de Djavan. Para A Pele do Futuro, o autor de vários hits da carreira da cantora a partir do final dos anos 1970 (“Azul”, “Açaí”, “Faltando um Pedaço”, “Nuvem Negra” etc.) enviou o samba “Dentro da Lei”, uma negociação de ex-casal que quer se reconciliar. Buscamos manter todas as divisões tão particulares de Djavan, compositor de identidade indelével que volta a um álbum de Gal depois de 25 anos.
“Realmente Lindo” foi escrita pelo jovem compositor paulista Tim Bernardes, um dos maiores artistas da geração 2010, líder da banda O Terno. Fã dos álbuns de Gal na fase 60/70, Tim fez um misturado entre Gilberto Gil e Jorge Ben nesse ijexá composto especialmente para a cantora. O arranjo contou com a participação especial do músico francês Hervé Salters, do projeto General Elektriks, tocando teclados e synths.
Composição de Adriana Calcanhotto, “Livre do Amor” estava com Gal desde os tempos de “Estratosférica”. Não entrou naquele álbum, mas nunca saiu das nossas conversas. Foi uma de nossas primeiras certezas quando começamos a montar o repertório de A Pele do Futuro. A gravação ganhou um belo solo de trompete de Paulinho Viveiro.
Também são de Viveiro os solos que costuram as três estrofes de “Cabelos e Unhas”, poema do jovem carioca Breno Góes musicado por Paulinho Moska. A canção segue o mesmo espírito filosófico de “Viagem Passageira”, concluindo que não há como ficarmos parados no mesmo lugar, viver é um estado de mudança eterna. Muito Gal.
“Minha Mãe” foi a última canção a entrar no disco. Quando todas as bases já estavam gravadas, Jorge Mautner enviou essa letra. Amigo próximo de dona Mariah, mãe de Gal, Jorge costura a imagem da figura materna à de Nossa Senhora de Aparecida. A relação com a religiosidade de dona Canô, mãe de Maria Bethânia, aconteceu de imediato. E “Minha Mãe” seria o veículo ideal para um novo dueto entre Gal e Bethânia. Encaminhei a letra de Jorge ao compositor mineiro César Lacerda, grande melodista e profundo conhecedor dos universos das duas cantoras. A gravação se deu como uma oração em duas vozes, as vozes do Brasil, acalentadas pela sanfona de Mestrinho.
Produtor musical do álbum, Pupillo gravou comigo as vozes e tocou todas as baterias e percussões. A banda base contou com Guilherme Monteiro nas guitarras e violões, Bruno Di Lullo nos baixos e Maurício Fleury nos teclados. Algumas faixas tiveram participações de outros jovens músicos: os guitarristas Pedro Baby e Guri Assis Brasil, o tecladista Carlos Trilha, o baixista Lucas Martins e mais Tiquinho e Hugo Hori, nos metais.
Gal completou 53 anos de carreira e, embora tenha seu espaço garantido entre os maiores nomes da história da cultura brasileira, nunca se aninhou no travesseiro das certezas conquistadas. Ao contrário, foi e voltou no tempo muitas vezes, vasculhando na própria história qual de suas cicatrizes poderia melhor contribuir à tradução daquele exato instante: o presente. Nesse disco, ela aprofundou essa investigação. Que vozes de sua voz precisariam ser acessadas, que outras teriam de ser criadas, inventadas, aprendidas. Filha e mãe de todas as vozes. A Pele do Futuroé, portanto, um álbum que em que se fazem presentes e atuantes as galcostas de todos os tempos. Tão variadas quanto exuberantes: fatais, legais, índias, tropicais, profanas, plurais, estratosféricas. De ontem, hoje e de além.
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