segunda-feira, 12 de novembro de 2018

MEMÓRIA MUSICAL BRASILEIRA

Por Luiz Américo Lisboa Junior 


Caetano Veloso 1968 

As mudanças operadas na sociedade brasileira a partir da segunda metade dos anos sessenta foram muito profundas e assentaram as bases do pensamento e do sentimento nacional em relação ao conceito de pátria. Vivíamos um período onde a cada dia verificava-se uma crescente diminuição das liberdades individuais, fruto do progressivo fechamento do regime instaurado a partir de março de 1964, que entre outras coisas não admitia que sua autoridade fosse contestada. Acontece que o mundo respirava o ambiente da contestação, da renovação de valores, não se admitindo mais nenhum tipo de autoritarismo que viesse cercear as idéias e o ideal de liberdade que estava presente na mente e nos corações dos jovens, esses os protagonistas dessa mudança de mentalidade proposta. 

A cada dia acirravam-se os embates entre aqueles que almejavam um mundo livre, onde reinaria o “paz e amor” e os outros que desejavam sufocar essas tentativas de transformação em prol de um ideário baseado no conceito de esquerda/direita, comunismo/capitalismo, discursos esses que se enquadravam no esqueça ideológico da guerra fria. Se para alguns a América Latina tinha criado seus mitos nas figuras de Che Guevara e Fidel Castro, os americanos do norte haviam em nome dessa propalada escalada de contra ofensiva comunista resolvido enviar tropas ao Vietnã para intrometer-se numa situação política local transformando-a num sangrento embate onde os maiores perdedores, como sempre acontece, foram as populações civis e os soldados que para la iam como buchas de canhão para servirem a um ideal que nem eles mesmos sabiam qual era. O resultado foi a fragorosa derrota da superpotência, tendo que retirar suas tropas de forma humilhante, mas que infelizmente não foram suficientes para lhe servirem de lição. 

No centro das atenções mundiais estavam os artistas populares que buscavam através da arte serem os porta-vozes de uma geração que vivia em conflito ideológico, mas que no fundo sabiam o que desejavam, expressando-se de maneira livre e tornando-se os realizadores da trilha sonora de um dos períodos mais interessantes da nossa história contemporânea. 

Foi com esse sentimento e também buscando um retorno a nossas mais legitimas tradições, com um diálogo nativista, transgressor e revolucionário que um grupo de baianos a partir de 1967 se transformariam na consciência e na discussão do que é ser brasileiro, transgredindo regras de comportamento, impondo opiniões conflitantes/contraditórias, porém demonstrando que não estávamos fora do alcance dos acontecimentos mundiais, eles apenas precisariam ser recontextualizados com nosso ideário de pátria, nação, nacionalidade, modernidade e apontar os rumos que essa discussão iria provocar para o nosso desenvolvimento e amadurecimento futuros. 

Com esse clima surgem então Caetano Veloso e Gilberto Gil na ponta do processo e com eles e sua arte/manifesto algumas das mais interessantes mensagens musicais de período histórico recente. Depois de ter participado do Festival da Canção da TV Record e lançado um primeiro disco com Gal Costa, Caetano nos brinda com um LP que tem a sua visão pessoal e o seu posicionamento nesse ambiente de mutação constante. 

O disco que traz na capa seu nome e foi lançado em 1968, um ano emblemático para o nosso país, nos revela canções como Tropicália onde o discurso da modernidade transformadora/contestadora se insere com uma colagem critica do contexto nacional; Soy loco por ti América, numa mistura de rumba, cumbia e mambo, com parte da letra em espanhol é um libelo a favor da revolução comunista/socialista cubana e uma homenagem a Che Guevara recentemente assassinado; Superbacana com uma batida pop aproveita sem cerimônia inúmeros clichês da época numa interessante colagem literária, Alegria, alegria, com sua múltipla e fragmentária imagem de nossa sociedade inaugura uma nova linguagem urbana na musica brasileira tem o acompanhamento do grupo argentino Beat Boys que com suas guitarras elétricas provocou uma grande polemica alimentada por aqueles que defendiam um nacionalismo musical e não aceitavam a introdução de instrumentos típicos do Rock and Roll em nossa canção popular. 

Destaque ainda para Clarice que entrou de última hora por Caetano considerá-la muito tradicional e não se engajar no espírito do disco e acabou tornando-se num de seus destaques pela beleza da poesia e da melodia; Paisagem útil, Clara, Anunciação e Eles que demonstram em sua estrutura uma postura poética influenciada pela mensagem modernista e antropofágica de autores como Mario de Andrade e Oswaldo de Andrade, um retorno às nossas tradições interioranas com Ave Maria, uma autobiografia em No dia que eu vim-me embora e uma canção dor de cotovelo com Onde andarás, em que Caetano chega inclusive a imitar a impostação e a pronúncia vocal de Nelson Gonçalves. 

Com arranjos arrojados uma mistura de ritmos e gêneros musicais como samba canção, bolero, baião, pop/rock, beguim e bossa nova, além de uma capa colorida/tropicalista que demonstrava o visual estético do movimento cultural que ajudara a fundar esse disco de Caetano Veloso insere-se portanto como um dos trabalhos mais importantes de nossa moderna musica popular, um retrato poético/musical de uma época que mudou nossas vidas para sempre. Ouvi-lo é refletir sobre um tempo que fundamentou as bases do pensamento intelectual brasileiro recente e que nos influencia ate os dias de hoje. 



MÚSICAS: 
1) Tropicália (Caetano Veloso) 
2) Clarice (Caetano Veloso e Capinam) 
3) No dia que eu vim-me embora (Caetano Veloso e Gilberto Gil) 
4) Alegria, alegria (Caetano Veloso) 
5) Onde andarás (Caetano Veloso e Ferreira Gullar) 
6) Anunciação (Caetano Veloso e Rogério Duarte) 
7) Superbacana (Caetano Veloso) 
8) Paisagem útil (Caetano Veloso) 
9) Clara (Caetano Veloso) 
10) Soy loco por ti América (Gilberto Gil, Capinam e Torquato Neto) 
11) Ave Maria (Caetano Veloso) 
12) Eles (Caetano Veloso e Gilberto Gil) 

FICHA TÉCNICA: 
Direção de produção: Manuel Bereinben 
Arranjos: Julio Medaglia, Sandino Hohagen e Damiano Cozzela 
Leiaute da capa: Rogério Duarte 
Foto: David Drew Zingg 
Arte final: Liana e Paulo Tavares 
Participação especial de Gal Costa em Clara.

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