segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A VIDA LOUCA DA MPB (ISMAEL CANAPPELE)*

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CARMEM MIRANDA



O palco do Cassino da Urca é o Olimpo da música brasileira. Elegantérrimo, atrai endinheirados, cantores, atores e esportistas do mundo todo. Com o compromisso de realizar duas apresentações por noite e de não repetir o figurino vez alguma ao mês, Carmen fecha um voluptuoso contrato. Seu salário mensal gira em torno de trinta contos de réis. Somem-se a isso a venda de discos, incontáveis shows e campanhas publicitárias, Carmen já movimenta uma fortuna impensável para uma garota de sua idade. A estreia no Cassino da Urca é arrebatadora. O lugar, que já era disputado, passa a atrair ainda mais personalidades, todas sedentas pela baixinha de gestos e olhos expressivos. Grandes nomes internacionais se comportam como verdadeiros fãs da portuguesa. Boquiabertos, fazem de tudo para desfrutar de sua companhia – nada pode dar mais status do que ter Carmen Miranda sentada em sua mesa após o show. Não são poucos os convites recebidos para brilhar nos Estados Unidos, mas ela esnoba todos. Carmen já não é mais a única estrela da família. Aurora, sua irmã mais nova, também faz sucesso, cantando no rádio e gravando discos. Apesar de a imprensa alimentar uma possível disputa, as duas se dão muito bem, a ponto de juntarem as fortunas para comprar uma mansão na Urca onde abrigam a enorme família. É para essa nova casa que, em outubro de 1938, Dorival Caymmi, então recém-chegado de Salvador, será levado. Em meio às filmagens de Banana da terra, os produtores enfrentam um impasse. Ary Barroso, compositor contratado para as canções da trilha, pede um valor alto demais pela cessão de na “Na Baixa do Sapateiro”. É quando alguém se lembra daquele jovem que já mostrava um samba dengoso nas rádios cariocas, “O que é que a baiana tem?”. Para a criação do figurino de baiana, Caymmi acompanha a cantora pelas lojas de Carnaval no centro do Rio. Carmen se sente livre para criar uma figura totalmente diferente. Torna-se carnavalesca. Autêntica, veste uma nova fantasia sem deixar de ser ela mesma. A baiana de Carmen não é um personagem, mas o aprimoramento da própria persona. Dorival Caymmi adora o clima e acompanha as filmagens de Banana da terra. Colado à câmera, o compositor ensina Carmen a ser baiana. É ele quem conduz a coreografia das mãos e as piscadelas, contribuindo para o nascimento de uma Carmen louca, colorida, brilhante, com ainda caras e bocas. Seus turbantes florescem, frutificam, explodem na tela. Nasce um ícone gay que será copiado, reverenciado e parodiado em todo o mundo. Terminado o filme, Carmen se apropria da figura da baiana e a incorpora a seus shows. Coberta de frutas de plástico, miçangas, babados e lantejoulas, ainda equilibrada sobre um enorme par de plataformas, chama a atenção de todos, especialmente dos estrangeiros, sedentos por algo típico ou exoticamente brasileiro. Carmen é um banquete. Em fevereiro de 1939, junto do lançamento de Banana da terra, Carmen completa 30 anos. Lee Shubert, um poderoso empresário norte-americano de teatro, assiste à eletrizante performance no Cassino da Urca. Apesar de não compreenderem as letras, o produtor e sua acompanhante, Sonja Henie, atriz de Hollywood e patinadora tricampeã olímpica, estão fascinados. À frente de uma gigantesca rede de teatros nos Estados Unidos e na Inglaterra, Shubert é um rato do showbiz, sabe tirar vantagem dos artistas que contrata e tem faro para o sucesso – faro que não irá falhar diante de Carmen. A notícia de que Carmen Miranda irá para os Estados Unidos gera comoção nacional. O Brasil teme perdê-la para sempre. Talvez antecipando inconscientemente a falta que a estrela fará, a despedida ganha ares trágicos, com a cidade aos prantos. A chegada de Carmen ao navio Uruguay é acompanhada por uma população ensandecida, que invade a Zona Portuária para se despedir. O futuro nos Estados Unidos é absolutamente incerto. Assim como no primeiro ano de vida, quando atravessou um oceano para chegar ao Brasil, mais uma vez ela partia rumo a mares desconhecidos. * * * Durante a viagem, Carmen presta atenção nas norte-americanas a bordo e nota que quase todas são loiras. Disposta a ser diferente, pinta os cabelos de preto e transforma-se, assim, numa autêntica morena carioca. Ou numa falsa baiana. Sabe que precisa se diferenciar quando chegar à Broadway. No desembarque nos Estados Unidos, a primeira surpresa: Manhattan a recebe com uma multidão de fotógrafos. Na entrevista coletiva, quando perguntada sobre as palavras que sabe falar em inglês, dispara certeira: “I say money, money, money, money!” A empatia é imediata. Já no porto de Nova York, assim que pisa em solo norte-americano, nasce a Carmen Miranda comediante, personagem que assumirá a partir de então. Seu musical de estreia na Broadway, Streets of Paris, é detonado pelos críticos, unânimes em apontar a única exceção: a participação deslumbrante da jovem brasileira. Na segunda semana em cartaz, o nome de Carmen, que estava listado em qualquer outro lugar no outdoor, passa a encabeçar o elenco. É quando nasce a alcunha por meio da qual será reconhecida mundialmente: The Brazilian Bombshell (A Granada Brasileira). Cantando e dançando de um jeito único, com roupas que nenhum ser humano em sã consciência teria coragem de usar, Carmen é um prato cheio. Figura que mistura fantasia com realidade, esse personagem que se confunde com a pessoa é a gênese de uma escola no showbiz que se mantém até nossos dias. Antes de Michael Jackson, Madonna e Elvis Presley, houve Carmen Miranda para ensinar como se faz. A imagem da cantora começa a pipocar nas capas das grandes publicações norte-americanas. Na indústria de celebridades, o óbvio vem à tona: Carmen e Aloy sio de Oliveira são um casal. Contudo, ser vista com um brasileiro pode fechar muitas portas. Para ser desejada, precisa ser acessível. Ter um namorado, justamente no momento em que começa a despertar a paixão de uma nação, é tudo de que não precisa. Antes de encerrar a temporada na Broadway, a 20th Century Fox oferece à cantora e ao Bando um contrato em Hollywood. Mas, em função do sucesso de Streets of Paris, Carmen não pode viajar a Los Angeles para filmar. Assim, no começo de 1940, o estúdio transfere a produção de Serenata tropical para Nova York. Os norte-americanos estão aos pés da Pequena Notável, e Hollywood não pode perder tempo. Todos querem faturar com a brasileira. Sua presença é sinônimo de money, money, money. Carmen trabalha exaustivamente, e Shubert fatura alto. * * * Paralelamente ao filme e à peça, Carmen e o Bando da Lua cumprem uma exaustiva temporada de duas apresentações por noite num sofisticado restaurante de Manhattan. Aos poucos, a euforia passa e o corpo da estrela começa a dar sinais de cansaço. A praia da Urca, a brisa quente do Rio, o papo entre amigos, a vida familiar, o clima descontraído de um país sem indústria cultural feroz – tudo isso ficou para trás. Carmen agora é uma máquina e, como tal, deve funcionar para produzir, mas precisa de energia para isso. O sucesso é tanto que até mesmo as vitrines da popular loja de departamentos Saks, na Quinta Avenida, exibem manequins vestidas como a it girl Carmen Miranda. Uma farta linha de bijuterias inspiradas em seus balangandãs invade as lojas de uma costa à outra do país. As garotas norteamericanas querem imitar a latina. Seus turbantes são objeto de desejo entre as modernas. Todas se equilibram sobre plataformas. Os produtos são até pirateados, atestando ainda mais seu sucesso. Carmen Miranda é garotapropaganda da Ford, da pasta dental Koly nos, de marcas de cerveja e até de um curso de inglês. Na Decca, uma das principais gravadoras da época, grava de uma só vez seis canções: “Mamãe eu quero”, “Bambu bambu”, “O que é que a baiana tem?”, “South american way ”, “Marchinha do grande galo” e “Touradas em Madri”. Estressada, perde peso e desmaia durante as filmagens de Serenata tropical. É quando aparece a fórmula mágica. Antes que sucumba ao cansaço e faça a engrenagem à sua volta perder dinheiro, é apresentada à benzedrina, droga bastante popular no meio artístico norte-americano. Carmen, que jamais tinha experimentado qualquer aditivo, turbina o organismo com doses cavalares de motivação. Está deslumbrada com os efeitos dos químicos. Sente nascer uma nova mulher, mais segura, focada e cheia de energia. Onipotente, é capaz de tudo. Não só ela, mas o Bando da Lua inteiro começa a usar as bolinhas mágicas. Doidões, cantam e dançam. Os norte-americanos deliram. Para contrabalançar os efeitos e conseguir apagar depois dos shows, usa os poderosos soníferos Nembutal e Seconal. Assim como o cantor Michael Jackson faria anos mais tarde, a estrela aspira a dormir. E a sonhar. Em junho de 1940, Carmen retorna ao Brasil para uma temporada de descanso. A chegada também causa enorme comoção. Uma multidão a espera no porto. Políticos, autoridades, amigos, familiares e jornalistas. Muitos jornalistas. Policiais tentam conter o tumulto, mas a então capital federal para. Flores são jogadas das janelas dos edifícios por onde passa o cortejo da estrela. Chegando em casa, na Urca, a polícia é obrigada a cercar a propriedade, para que a população não invada. Nos dias seguintes, Carmen Miranda recebe a visita de seus compositores e amigos. Precisa descansar, mas não consegue, a excitação é maior. Se trouxe a mágica benzedrina na bolsa? É possível que sim.





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