terça-feira, 14 de outubro de 2014

ANOS DEPOIS, OS NERVOS PERMANECEM DE AÇO

Com letras universais, que dão voz aos corações partidos, a obra de Lupicínio Rodrigues segue atual


Por Juarez Fonseca



Lupicínio Rodrigues compôs perto de 300 músicas, das quais umas 150 foram gravadas. Mas as que grudaram na história da música brasileira não passam de 20. E são tão definitivas que acabaram de certa forma embaçando o conhecimento natural das demais. O país inteiro conhece Vingança, Felicidade,Cadeira Vazia, Esses Moços (Pobres Moços), Ela Disse-me Assim, Volta, Nervos de Aço, Se Acaso Você Chegasse, Loucura, Um Favor, Quem Há de Dizer,Castigo, Nunca, Maria Rosa, gravadas pelas vozes de Francisco Alves a Caetano Veloso, Dalva de Oliveira a Elis Regina, Luiz Gonzaga aos Almôndegas, Elza Soares a Arrigo Barnabé, Ciro Monteiro a Arnaldo Antunes.

Já maravilhas como Torre de Babel, Cevando o Amargo, Exemplo, Se É Verdade,Foi Assim, Dona Divergência, Judiaria, Paciência, Minha Ignorância,Homenagem e Sozinha têm alguma popularidade mais ou menos restrita ao Rio Grande do Sul e entre lupicinianos Brasil afora. Nada de estranho nisso, pois outros gigantes, como Noel Rosa e Caymmi, também situam-se nas primeiras páginas da MPB com uns 20 clássicos indiscutíveis.

Os "20" de Lupicínio, quase todos dos anos 1930 a 1950, atestam a atemporalidade dos gênios. A história de nossa música cultua várias lendas, mas a verdade é que boa parte de suas obras, pelo menos em termos poéticos, não passa hoje de documentos do passado, registros em linguagem empolada, como, por exemplo, com todo respeito: "Teu sorriso é um lindo albor/ Uma existência, um céu/ Tens na boca embelecida/ Pérolas de luz/ Rubra ilusão do astral/ Perolário a iluminar/ Um eclipse de sol com luar", diz a letra da famosa valsa Mimi, escrita por Uriel Lourival em 1933 e gravada por vários cantores até os anos 1950.

Já as letras de Lupicínio têm uma atualidade poética surpreendente. É de 1950 a primeira gravação de Cadeira Vazia, por Francisco Alves: "Entra, meu amor, fica à vontade/ E diz com sinceridade o que desejas de mim/ Entra, podes entrar, a casa é tua/ Já te cansaste de viver na rua/ E os teus sonhos chegaram ao fim". Em 1974, Elis mostrou que Cadeira Vazia estava nova. E assim continua, como Volta, sucesso de Linda Batista em 1957, e sucesso com Gal Costa em 1973: "Quantas noites não durmo/ A rolar-me na cama/ A sentir tantas coisas/ Que a gente não pode explicar quando ama".


Lupi transpôs temas do tango para o samba

Lupi praticava um português enxuto, substantivo, e este é um dos segredos de sua atualidade. A temática era aquela que a imaginação e a vida dos homens tornaram mitologia: o drama da paixão, do coração partido, que leva a pessoa a cometer loucuras. Tema dos tangos e boleros, influências na Porto Alegre da época, mas transposto para o âmbito do samba e do samba-canção, predominante na música brasileira. Canções que narram amores felizes são em geral individuais, correm o risco de tornarem-se piegas. Canções de amor dilacerado são profundas, têm eco em cada esquina, em cada bar, em cada quarto.

Lupicínio dizia que suas letras reproduziam experiências vividas por ele ou seus amigos. Dizia ainda, quase cinicamente, que as mulheres boazinhas não lhe deram dinheiro; só as que o traíram: "Meu primeiro automóvel foi comprado com o dinheiro de um samba feito para uma mulher que me machucou", escreveu em uma das crônicas publicadas em 1963 no jornal Última Hora, de Porto Alegre.

Hoje, em um tribunal feminista, seria condenado por machismo. Teve muitas mulheres e ao mesmo tempo apenas uma. Sobre as muitas, escreveu: "As boêmias são mulheres que gostam da noite e sabem que é na noite que se faz música, que se diz poesia com mais sentimento e onde, enfim, o amor é mais amor". Sobre a única: "As esposas devem se sentir felizes quando seus maridos voltam de suas noitadas, porque sua volta é a maior prova de amor que um homem pode dar". A seu modo, conjugava os fatores centrais da relação humana: o amor, pacífico, seguro; e a paixão, arrebatadora, inconstante, dramática, fator direto do impulso criador.

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