Este ano é repleto de datas redondas na biografia deste artista gaúcho. Em 2014 , além do seu centenário, completa-se quatro décadas que Lupi nos deixou. Desse modo, nada mais conveniente que homenageá-lo neste mês que completa-se quatro décadas de sua partida com esta entrevista publicada na edição N.I 225 do Pasquim, de outubro de 1973.
O Pasquim Entrevista Lupicínio Rodrigues - A dor de cotovelo é um barato!
Saímos com Lupicínio Rodrigues do Teatro Opinião, depois de sua apresentação diante de um delirante auditório de jovens, que nunca tinha visto o grande compositor cara a cara. Júlia Steinbruck nos convidou para fazermos a entrevista na casa dela, e fomos para lá, num grupo de umas 20 pessoas. Pelos cantos do salão, vários grupos tocavam violão e batucavam. Gilson Menezes, do "Estado de São Paulo", também participou da entrevista. A uma certa altura, apareceu Sérgio Bittencourt, com a maior cara de pau, e disse: "Vocês deixam eu perguntar uma coisa pro Lupicínio?" Que fazer? Não se podia engrossar na casa da dona Júlia. É claro que a entrevista teve várias pausas - para beber, para ouvir o maior cantor brasileiro - Jamelão -, para tirar fotografias, para ouvir mil caras tocando violão, e para beber de novo.
Lá pelas 4h5min. da manhã, Lupicínio resolveu tomar umas cervejas no Grego, do seu amigo Scoulis. E lá fomos, já meio elaudicantes, mas decididos: Lupi, Gessé - seu acompanhante - Jamelão, Aibino Pinheiro e seu fiel Douglas, uma negra linda - Zélia - e eu. Às 9h30min. da manhã, na calçada do seu restaurante, Scoulis nos brindou - e aos passantes que olhavam perplexos aquele bando de boêmios, que terminavam a noitada àquela hora de uma terça-feira - com alguns passos de dança, enquanto, para nosso pasmo e encantamento Lupicínio cantava em grego. - (Jaguar).
O PASQUIM - É verdade que você é o primeiro de 21 filhos?
LUPICINIO RODRIGUES - Nilo, eu sou o quarto de 21 filhos. Primeiro minha mãe teve três filhas mulheres, e o meu pai havia prometido que, se o quarto nascesse mulher, ele iria enforcar. Por felicidade, nasci eu, e ele não me enforcou. Por ser o primeiro filho homem, me criei como a criança mais mimada da família.
O PASQUIM - Você é um dos maiores compositores populares brasileiros. Mas sempre viveu no Rio Grande do Sul?
LUPICINIO - Graças a meu bom Deus sempre vivi no Rio Grande do Sul. Tive a felicidade de ficar conhecido universalmente, e agradeço isso aos marinheiros que visitavam a minha terra naquela época, quando não havia transporte para lá, a não ser o marítimo. Os marinheiros chegavam em Porto Alegre, aprendiam minhas músicas e saíam a divulgar pelo Brasil.
O PASQUIM - Aqui ao lado está o melhor intérprete do Lupicínio, aquele intérprete que mais se identifica com o Lupicínio, e que trouxe para o Rio de Janeiro o samba gaúcho. O nome dele é José Bispo, o Jamelão. Quem também está aqui do nosso lado é Júlia Steinbruck, ex-deputada federal, e mulher interessada em música popular brasileira. Mas quem leva o papo agora com Lupicínio Rodrigues é o nosso amigo Jamelão.
JAMELÃO - Para eu fazer perguntas ao Lupicínio é uma questão de rotina porque eu estou sempre em contato com ele. Eu perguntaria: como vai o Batelão, Lupicínio?
LUPICINIO - O Batelão continua sendo a melhor casa de samba do Rio Grande do Sul. E com muitas saudades tua, que fizeste aquela temporada no Batelão, deixando aquela saudade; e esperando que voltes para lá pra ver se terminas, Jamelão. Desaparecestes de uma hora pra outra, não te despediste de ninguém.
O PASQUIM - Explica para o carioca o que é o Batelão. É um bar de tua propriedade há quantos anos?
LUPICINIO - O Batelão é bem um bar, é um restaurante que tem música. A turma vai lá pra jantar, e jantam cantando samba. É quase o tipo do Teatro Opinião; só que como restaurante, a luz tem que ser mais clara e o samba começa às oito horas da noite e vai até as seis horas da manhã. O Jamelão nos deu a honra de sua presença nesta temporada que esteve em Porto Alegre com o Sargentelli.
O PASQUIM - Você talvez seja um compositor conhecido no Brasil inteiro, que conseguiu fazer sucesso com a idade mínima. Aos 12 anos já fazia composição para os blocos carnavalescos de sua cidade. Como é que foi essa iniciação musical no Rio Grande do Sul? Você nasceu em 16 de setembro de 1914.
LUPICINIO - O que acontece é que na época em que eu comecei a fazer música no Rio Grande do Sul, começava a rádio no Brasil. Eu nunca fíz música com a finalidade de ganhar dinheiro. Eu nunca pensei que eu pudesse gravar uma música.
O PASQUIM - Mas aos 12 anos?
LUPICINIO - Eu fazia de brinquedo, como faço até hoje. Não faço música pra ganhar dinheiro nem música para gravar.
O PASQUIM - Você vive de música ou tem outra atividade da qual você vive?
LUPICINIO - Eu sou o procurador do Serviço de Defesa do Direito Autoral. Sou representante da SBACEM, sou funcionário público. Tem uma porção de outras coisas.
O PASQUIM - E cozinheiro também.
LUPICINIO - Sou cozinheiro. Tenho um restaurante, e tem o bar. Eu faço música pra divertir, não faço profissão da música.
O PASQUIM - Qual é a sua especialidade em matéria de culinária? Qual é a sua grande atração, o carro-chefe?
LUPICINIO - Comida popular. Essa comida de todo dia. Porque eu não sou cozinheiro de dizer que eu faço comidas difíceis, grandes pratos. Mas essa comida popular, essa comida de todo dia, eu acho que faço bem. Eu acho que cozinho melhor do que componho, do que canto.
O PASQUIM - Você se sente bem tendo como troféu de honra - a coisa que representa mais a sua música popular - a dor de cotovelo? Para fazer tantas músicas de dor de cotovelo, você teve quantas mulheres quis?
LUPICINIO - Meu camarada, eu realmente tive muitas namoradas na minha vida. Umas me fizeram bem, outras me fizeram mal. As que me fizeram mal foram as que mais dinheiro me deram, porque as que me fizeram bem eu esqueci.
O PASQUIM - Lupicínio tem mil histórias para contar. Por exemplo "Vingança". É uma música que em 52 dominou o Brasil inteiro. Jornais publicavam e ressaltavam o que houve na época por causa daquela música. Houve tentativas de suicídios, etc. A quem dedicou "Vingança". Que mulher é essa, onde ela esteve, onde ela está?
LUPICINIO - A mulher que me inspirou "Vingança" viveu comigo seis anos. E depois terminou namorando um garoto que era meu empregado.
O PASQUIM - Que idade ele tinha?
LUPICINIO - 16, 17 anos.
O PASQUIM - Foi passado pra trás por um garoto de 17 anos.
LUPICINIO - Não foi bem assim. É que eu tinha viajado, ela mandou chamar o garoto. Disse que queria falar com ele. Ela mandou um bilhete. O garoto com medo de mim, quando eu cheguei, me entregou o bilhete. Disse: "Olha a Dona Carioca me mandou esse bilhete. Eu não sabia o que ela queria comigo. Não fui." (Risos) Entregou a mulher. Aí eu não disse nada. Fiquei quietinho, inventei outra viagem, peguei minha mala, e fui embora.
O PASQUIM - Endoidou.
LUPICINIO - Era época do carnaval, ela endoidou. Botou um “Dominó". "Dominó” é aquela fantasia preta, que cobre tudo. No carnaval, feito louca foi me procurar. Uma certa madrugada, ela, num fogo danado - parece que deu fome - entrou num bar onde a gente costumava comer. Foi obrigada a tirar o "Dominó” pra comer, e o pessoal a reconheceu. Perguntaram - "Ué, Carioca, que você está fazendo aqui a essa hora? Cadê o Lupi?" Ela sozinha.
O PASQUIM - Carioca por que? Ela é carioca?
LUPICINIO - É sim. Ela é viva, mora aqui. Ai ela começou a chorar. Eu estava num restaurante do outro lado. Uns amigos chegaram e me disseram: encontramos a Carioca vestida de "Dominó”, num fogo tremendo. Começou a chorar e perguntar por ti. O que que houve, vocês estão brigados?" Aí foi que eu fiz o "Vingança". Na mesma hora comecei, saiu (canta) "Gostei tanto, tanto, quando me contaram ... "
O PASQUIM - Foi uma ruptura pra valer.
LUPICINIO - Eu sou muito amigo dos pais de santo, os batuqueiros lá de Porto Alegre. Em cada lugar que chegava ela botava fotografia minha, cabritas, aquele negócio todo pra fazer as pazes. Aí eu fiz (canta): "Nunca, nem que o mundo caia sobre mim/Nem se Deus mandar ...”
O PASQUIM - O que essa mulher contribuiu para a música popular brasileira não foi normal.
O PASQUIM - Tem bom samba lá no Rio Grande do Sul, tirando Lupicínio Rodrigues? O pessoal lá é bom de samba? Tem bons batuqueiros e escola de samba?
LUPICINIO - Lá tem bom sambista.
O PASQUIM - E tem escola de samba lá?
LUPICINIO - Tem boas escolas de samba.
O PASQUIM - Tem gente fazendo cara de quem está duvidando.
LUPICINIO - O Benedito Lacerda foi ao Rio Grande do Sul e voltou de lá admirado. Como o Rio Grande do Sul, sendo tão longe do Rio de Janeiro...
O PASQUIM - E tão perto da Argentina, do Uruguai...
LUPICINIO - ...os nossos ritmistas, os nosso violonistas tocavam tão bem o samba como no Rio de Janeiro. Naquele tempo nós chamávamos os paulistas de quadrados. O samba de São Paulo é de há muito pouco tempo.
O PASQUIM - Você não é um fenômeno isolado, embora tenha se destacado.
LUPICINIO - Os melhores ritmistas que teve aqui no Rio de Janeiro, anos atrás, eram gaúchos. Por exemplo, o violinista que ensinou os cariocas a fazer esse samba que hoje dizem que é bossa-nova, era gaúcho. Chamava-se Neorestes. O pandeirista que ensinou os cariocas a bater pandeiro era gaúcho.
O PASQUIM - É? Quem era?
LUPICINIO - Darci do Pandeiro. Outro violonista: Gorgulho, que também era gaúcho.
O PASQUIM - Lupicínio --, na música popular brasileira, qual a diferença que você vê entre as suas músicas e as músicas de Teixeirinha, sendo vocês dois da mesma região do Brasil?
LUPISINIO - A diferença que existe é que eu faço música popular, o Teixeirinha faz música regional. O Teixeirinha não é folclorista, não é o folclore gaúcho. O Teixeirinha é o regionalista, como o de qualquer estado do Brasil. A música do Teixeirinha é tão regionalista quanto a música mineira, a música nortista. Não é o nosso cancioneiro gaúcho. E adoro a guariânia, adoro tango e adoro bolero. Eu acho qualquer dessas músicas maravilhosas. Como adoro qualquer música popular bem feita.
O PASQUIM - Como é que você consegue isolar essa influencia do seu trabalho?
LUPICINIO - Eu acho o ritmo brasileiro o melhor ritmo do mundo, no meu gênero.
O PASQUIM - Quando você começou a se formar como compositor, quais eram os compositores brasileiros, ou a escola brasileira, que você mais gostava?
LUPICINIO - Eu não comecei fazendo música, eu comecei a cantar. Quando comecei, foi como cantor. O cantor que eu imitava era Mário Reis.
LUPICINIO - Em 1930.
O PASQUIM - Mas você tinha 16 anos. Você não ouvia Mário Reis com 16 anos.
LUPICINIO - Claro. Era a dupla mais famosa do Brasil: Francisco Alves e Mário Reis.
O PASQUIM - Qual o cantor que melhor interpreta o que você deseja dizer nas suas músicas? Aquele que quando você ouve fica emocionando.
LUPICINIO - O cantor que eu admiro, que eu gosto que intérprete as minhas músicas, é o Jamelão. Porque ele tem uma preocupação de cantar as músicas como eu faço. Não é por ele estar presente. A gente faz uma música e o cantor vai cantar. Ele acha que tem que fazer uma coisa diferente, mudar a melodia, ele acha que a letra tem que ser como ele quer. O Jamelão é autêntico. Ele procura aprender a música como a gente ensina pra ele a cantar a música como a gente faz.
O PASQUIM - Jamelão, como você conheceu Lupicínio Rodrigues?
JAMELÃO - Eu conheci Lupicínio Rodrigues através de minha vida de crooner. Eu cantava em dancing e sempre gostei do repertório do Lupiscíno. Nas minhas andanças para lá e para cá, fui conhecê-lo em Porto Alegre.
O PASQUIM - Mais ou menos que ano Jamelão?
JAMELÃO - Cinqüenta e pouco. Foi com a orquestra do Severino Araújo. A primeira vez que eu fui ao Sul com orquestra foi com Severino Araújo. Nós tínhamos vindo de uma excursão à Europa, e então eu o conheci. E através disso tive oportunidade de gravar "Ela disse-me assim".
O PASQUIM - Você tem ideia do ano?
JAMELÃO - "Ela disse-me assim" foi gravada mais ou menos em 55.
O PASQUIM - Lupicínio, você não teria outra história tão peculiar ligada a uma música que tenha composto? Uma música que também parecesse uma experiência tua. mas que fosse uma história engraçada, interessante, de alguma mulher. Eu nunca vi um homem com tanta mulher. É incrível! E a Iná?
LUPICINIO - A Iná foi a primeira mulher que eu tive. E a primeira desilusão.
O PASQUIM - Quantos anos você tinha?
LUPICÍNIO - 17 anos.
O PASQUIM - Terá sido ela a inspiradora de "Nervos de Aço"?
LUPICINIO - Foi a Iná.
O PASQUIM - Você fez "Nervos de Aço" com quantos anos de idade?
LUPICINIO - "Nervos de Aço" eu fiz com 22 anos.
O PASQUIM - Lupi, aqui no Rio você freqüenta muito um lugar. Até hoje a gente não sabe porque. Um bar na Barata Ribeiro chamado "Grego". E sempre que a gente se vê, você está acompanhado de mulata. Você tem algum preconceito de cor, ou realmente é do nosso time e gosta de mulata?
LUPICINIO - Pelo contrário, dificilmente estou acompanhado de mulata. Não sei porque, eu não dou sorte com mulata. A única mulata que eu tive na minha vida foi justamente a Iná. A Iná de muitas músicas.
O PASQUIM - Diz umas aí.
LUPICINIO - "Zé Ponte", "Xote da Felicidade". E tantas outras músicas. Mas depois de Iná, eu só tive problemas com louras.
O PASQUIM - É interessante que se situe a sua primeira vinda ao Rio de Janeiro. Porque foi muito engraçado. O Lupicínio foi parar na Lapa, onde foi fazer amizade com uma barra pesadíssíma. Conheceu Kid Pepe, conheceu Germano Augusto, conheceu muitas figuras, e foi um grande jogador na Lapa. Não conheceu madame Satã. Como é que você chegou e entrosou?
LUPICINIO - Eu sou aposentado por amor.
O PASQUIM - Explica isso, rapaz.
LUPICINIO - Eu ganhava naquela época, na Faculdade de Direito, duzentos cruzeiros por mês. Eu era bedel na Faculdade de Direito.
O PASQUIM - Era inspetor. Inspetor de alunos.
LUPICINIO - Ganhava 200 cruzeiros por mes. Eu vi que, ou eu ia pedir pra fazer as pazes com a Iná, ou eu ia morrer.
O PASQUIM - Em que ano isso?
LUPICINIO - 1939. Eu era muito amigo do Tatuzinho, que foi esposo legítimo da Elizete Cardoso, pai do Paulinho.
O PASQUIM - Paulinho Valdez.
LUPICINIO - Então o Tatuzinho diz assim: "Vão s'imbora pro Rio".
O PASQUIM - A primeira vez?
LUPICINIO - Da primeira vez, 1939, na época da guerra. Comprei uma passagem. Custou 170 mil réis e sobrou 30 mil réis pra viajar. Terceira classe de navio. Aí embarquei, na terceira classe. No caminho, o Tatuzinho tocando violão e eu cantando, já me deram logo um camarote. Vim cantando no navio.
O PASQUIM - Você chegou como? Você ficou onde? Num hotel, numa pensão?
LUPICINIO - Pensão ali por perto, na Lapa. De uma baiana.
O PASQUIM - Você chegou com conhecidos ou foi se tornando...
LUPICINIO - Aí aconteceu uma das coisas mais importantes. Esse meu amigo era gaúcho, o Bom Mulato -- vocês devem conhecer, porque esse camarada é do Jockey. Ele entrou no Café Nice e me meteu na pior. Tava sentado ali Ari Barroso, Haroldo Lobo, Nássara, e tudo quanto era grande compositor. Francisco Alves, toda a máfia sentada no Café Nice, às seis horas da tarde. Ele chegou comigo pela mão e gritou dentro do Café Nice: "Chegou o meu cavalo aqui". Os caras ficaram tudo me olhando, né, que negrinho pequenininho, tudo me olhando assim. Eu cheguei e disse: "Olha, esse cara tá brincando". o Haroldo Lobo me olhando, o Nássara me olhando, o Chico me olhando.
O PASQUIM - Que ano é isso?
LUPICINIO - 1939. Aí foi que eu conheci o Chico. Eu já tinha uma porção de músicas gravadas, mas ninguém me conhecia.
O PASQUIM - Quem é que tinha gravado as suas músicas dessa época?
LUPICINIO - O Ciro Monteiro, uma porção de gente tinha gravado.
O PASQUIM - Seu grande sucesso gravado foi em 37, com Ciro Monteiro.
LUPICINIO - Eu sentei na mesa, pedi um cafezinho. Todo mundo cantando, era mais ou menos época do carnaval. Naquele tempo os caras botavam um níquel no bolso pra bater, outros batiam na caixa de fósforo, outros na parede, e eu tô escutando. Diz um pra mim: "Ô gaúcho, canta um negócio teu aí". Eu digo: "Eu não sei cantar essas músicas que vocês estão [ cantando." E ele: "Não, canta qualquer coisa aí". Aí eu (canta): "Você sabe o que é ter um amor, meu senhor Ter loucura por uma mulher..."
O PASQUIM - Ô rapaz!
LUPICINIO - Aí o Chico começou, psft, psft, assim cuspindo: "Canta outra aí". E eu mandei: "Quem há de dizer / que quem vocês estão vendo / naquela mesa a beber". Aí o Chico, psft, psft: "Isso é teu moleque? Isso é teu?" (risos). Eu sei que quando eu cantei a quarta música, o Chico me chamou lá pro canto, psft: "isso tudo... não dá para... Isso é teu?" "Aí ele me botou num Buick vermelho que tinha e me levou pro Turf, um clube de...
O PASQUIM - ...corrida de cavalo.
LUPICINIO - Não, o Turf era um clube de pif que tinha aqui no Flamengo. "Pft, cê não dá isso pra ninguém. Não dá isso pra ninguém. Vou gravar tudo". Aí eu fiz amizade com o Chico.
O PASQUIM - Você acha o Chico um bom intérprete seu?
LUPICINIO - Ah, o Chico foi um bom intérprete. Foi sim.
O PASQUIM - Ele não dá uma interpretação a você que não é exatamente a interpretação dele é um pouco "grandiloqüente" para a tua música. Não é não?
LUPICINIO - A voz do Chico era aquela. A voz do Chico era empostada. Ele não podia diminuir o tom.
O PASQUIM - Lupicínio, em 52, tinha uma dificuldade de comunicação muito grande. Temos a impressão que a grande dimensão nacional de tua música foi Linda Batista gravando "Vingança". Você acha que "Vingança. Você acha que “Vingança” foi a música que te projetou nacionalmente de forma definitiva?
LUPICINIO - Uma das coisas interessantes: a Linda não aprendeu "Vingança" comigo.
O PASQUIM - Não foi não?
LUPICINIO - Eu ensinei a "Vingança" para o Herivelto Martins. A primeira gravacão de “Vingança” foi feita pelo Trio de Ouro. Mas quem ia gravar mesmo -- e a Linda aprendeu com ele -- foi o Jorge Goulart. Ele cantava no Vogue, junto com Linda, Jorge Goulart, Linda e Nora Ney. Jorge Goulart aprendeu a música comigo no Rio Grande do Sul, chegou no Vogue e começou a cantar. A Linda aprendeu e quando o Jorge Goulart se descuidou, ela chegou e gravou. Quando o Jorge Goulart viu, a música já estava gravada.
O Pasquim - Pelo que está dizendo, você nunca fez caitituagem em sua vida?
LUPICINIO – Nunca, nunca, nunca. A minha primeira música foi gravada sem eu saber. Me procuravam pra dizer que a minha música havia sido gravada. Nunca tive a mínima entenção de ser artista, compositor, nunca.
O PASQUIM – Você é uma prova de que uma pessoa isolada feito você, que não estava no local adequado para fazer música popular no estilo que você faz, pode aparecer, como você, afinal de contas, apareceu no Brasil inteiro. Você acha que o que eles chamam a "máquina" não é tão esmagadora quanto dizem?
LUPICINIO - A "máquina”é esmagadora. Pelo seguinte: ela evita, proíbe que apareçam os valores.
O PASQUIM - Mas você apareceu, de qualquer maneira.
LUPICINIO - Mas quando eu apareci não existia a "máquina".
O PASQUIM - O que você ensinou de mais importante, o que você transmitiu de mais importante?
LUPICINIO - Olha, eu vou dizer uma porção de frases e coisas que eu fiz. Por exemplo: "É melhor brigar junto do que chorar separado". Tem outra que diz assim: "Ela nasceu com o destino da lua / pra todos que andam na rua / não vai viver só pra mim".
O PASQUIM - É lindo. É uma grande frase.
LUPICINIO - Tem uma outra que diz assim:
que efiz ~: "Vocês Maria de agora/ amem somente uma vez/ para que mais tarde esta capa/ não sirva em vocês”.
O PASQUIM - Ele está dizendo os versos importantes da vida dele.
LUPICINIO - Tem outro que diz assim, desses pobres moços: "Se eles julgam que o futuro / só ao amor dessa vida conduz / saibam que deixam o céu por ser escuro / e vão ao inferno à procura da luz". E assim tem uma porção de coisas.
O PASQUIM - Aquela que fala da Dona Tristeza e da Dona Alegria?
LUPICINIO - Eu gravei, mas o Jamelão não gravou.
O PASQUIM - Como é o nome dessa música?
LUPICINIO - "Rosário de Esperança". Eu vou só dizer os versos, cantar não dá.
O PASQUIM - Pode ser cantado. Depois nós escrevemos os versos, cantar não dá.
LUPICINIO - (canta) "Eu fui convidado por alguns amigos / pra ir a uma festa / beber e cantar / Peguei a viola afinei a garganta / e até pus a manta / pra me agasalhar / E fiz um convite pra Dona Alegria / melhor companhia / pra festa não há / Mas eu não sabia / digo com franqueza / que a Dona Tristeza / morava por lá. Cheguei satisfeito / alegria no peito / sorriso na boca/ viola no lado / Mas vi com surpresa / na primeira mesa / sentada com outro / a mulher que eu amei / Voltei desolado tristonho, magoado / viola do lado não bebi nem cantei".
O PASQUIM - Você tem alguma música que o tema não seja mulher?
LUPICINIO - Se tenho não me lembro no momento.
O PASQUIM - E o seu processo de criação para a música. Você medita sobre o tema, ou o negócio vai fluindo?
LUPICINIO - Medito sempre sobre o tema.
O PASQUIM - Mas de estalo, de vez em quando, sai um. Como aquela da vingança.
LUPICINIO - Todos são um tema real, coisas que acontecem na hora.
JAMELÃO – Ô Lupi, ultimamente, aqui no Rio, surgiu uma certa controvérsia a respeito de uma música da sua autoria. Essa música, inclusive no programa do Flávio Cavalcanti, foi mostrada como sempre deturpando um pouco a melodia. Mas, de qualquer forma, é uma promoção. E essa música passou a ser comentada por aqui com o nome de "Bicho do Pé". O título dessa música não é "Bicho de Pé", é "Sozinha". Eu gravei essa música, é uma das músicas mais solicitadas nos "shows" em que eu me apresento. Como foi que você teve a inspiração para fazer essa música? Qual foi o motivo, a coisa que gerou?
LUPICINIO - Jamelão, você sabe que eu servi em Santa Maria, né? E o princípio de minha vida artística foi lá em Santa Maria. E lá eu conheci essas histórias. Lá eu fiz "Zé Ponte", fiz aquela (canta): "Felicidade foi-se embora / e a saudade no meu peito..."
O PASQUIM - Essa música é sua?Não é folclore?
LUPICINIO - "Felicidade" é. (Canta): "A minha casa fíca lá detrás do mundo / mas eu vou em um segundo / quando começo a cantar". "O pensamento parece uma coisa à-toa / como é que a gente voa / quando começa a cantar".
O PASQUIM - Que maravilha.
LUPICINIO - Aquela outra: "No meu casebre tem um pé mamoeiro / onde eu passo o dia inteiro / campeando a minha mágoa".
O PASQUIM - Nesse tempo todo de sucesso aqui no Rio, você nunca foi tentado a se estabelecer aqui?
LUPICINIO - Eu gosto muito do Rio Grande do Sul.
O PASQUIM - As tuas raizes estão lá, e tal.
O PASQUIM - Lupi, e os convites que você teve para ficar em São Paulo?
LUPICINIO - Eu tive diversos convites. Até me deram um bar uma vez. Uma moça lá que eu namorei, até um bar me deu de presente. "Fica aqui que eu te dou o bar".
O PASQUIM - O homem é bom de bico. Até ganha bar. Quando foi isso?
LUPICINIO - 1968, mais ou menos.
O PASQUIM - E você não quis o bar?
LUPICINIO - Eu fazia um show no "Chicote" e tinha a moça do bar que ia me buscar todo o dia. "Se tu quiser ficar aqui e morar em São Paulo tu fica com o bar pra ti". Mas nem ganhando um bar de presente eu não quis ficar.
O PASQUIM - É verdade que você fez o hino do Internacional?
LUPICINIO - Não! Eu fiz o hino do Grêmio.. Sou do contra (canta): "Até a pé nos iremos / para o que der e vier Mas o certo é que nós estaremos com o Grêmio onde o Grêmio estiver".
O PASQUIM - Você sendo de tradição tão popular de comportamento, o Internacional é um clube muito mais ligado a sua família. Dos 21 irmãos, quantos eram Grêmio?
LUPICINIO - Lá é a metade por metade. Metade é gremista, metade é colorado. (Todos riem)
LUPICINIO - Tem um voto de Minerva. São 4 e 15. São quatro horas da madrugada e nós estamos aqui numa roda maravilhosa tocando músicas, e não pensamos parar ainda. Nós vamos continuar lá no "Grego", porque tem uma porção de amigos nos esperando lá para festejar um aniversário que começou ontem. Aniversário do meu amigo Albino Pinheiro.
(Corte. O local agora é o Restaurante El Grego. Muita movimentação e vozes falando ao mesmo tempo. Ritmo da entrevista: devagar, ou seja, ritmo de porre e madrugada. Fundo musical: Roberto Carlos.)
O PASQUIM - Nós saímos da casa da Júlia e chegamos no "Grego". É um lugar do Rio de Janeiro que não e muito conhecido da boemia. Eu queria, Lupicínio, que você falasse da relação entre o "Grego" e a sua boemia, pra você gostar tanto desse lugar.
LUPICINIO - O lugar onde sempre encontro tranqUilidade é o "Grego". É o centro dos gaúchos. Aqui se reúnem, pelo menos se reunia antigamente, todo o mundo, toda a gauchada. Quando eu quero encontrar os meus patrícios eu venho aqui no "Grego”.
(Jamelão, nesse momento, tenta se despedir, porque diz que tem que acordar cedo. Lupicínio tenta prendê-lo à mesa. Não se sabe o que vai acontecer. São exatamente cinco e meia da manhã.)
O PASQUIM - Qual a mulher que no Rio de Janeiro te impressiona, e você gostaria de conhecer melhor?
LUPICINIO - Olha aqui, se eu pudesse, queria conhecer todas as mulheres do Rio de Janeiro.
O PASQUIM - Lupicínio, com 50 e poucos anos, você é o padrão do boêmio brasileiro. Um camarada que, com seu comportamento e atitude, reflete isso para toda uma nação. Né, pô?
LUPICINIO - Eu acho que cada pessoa deve viver como se sente bem. Eu hoje estive falando com um dos meus professores, Joubert de Carvalho. Foi quem me ensinou a fazer versos. (canta): "Maringá, Maringá / depois que tu partisses / tudo aqui ficou tão triste / que eu passei a imaginá". Eu nasci na época de "Maringá”, do (canta): "Adeus Guacira, meu pedacinho de serra". Nasci na época do, como é? "... pescando no rio de gereré". Como é? Eu canto todas essas canções. Eu tô meio embira, e não posso lembrar agora. E preciso que se saiba que já são seis horas da manhã e nós estamos no Grego. (Pensa um pouco, depois canta): "Não quero outra outra vida pescando no rio gereré / tenho peixe bom, tem siri patola de dá com pé / Quando no terreiro / faz noite de luar..." Isso é de Joubert de Carvalho. Essa gente que me ensinou a fazer versos.
(Enquanto todos prestam atenção em Lupicínio, Jamelão sai à francesa.)
O PASQUIM - Como é que você se coloca diante do atual panorama da música brasileira? Você está entrosado ou você está em cheque com as novas tendências? Você acha que está legal, ou você se sente uma figura meio deslocada?
LUPICINIO - Eu não tenho nada com o ambiente artístico brasileiro. Eu não sou músico, não sou compositor, não sou cantor, não sou nada. Eu sou boênio.
O PASQUIM - Mas você é um artista brasileiro. E você tem que se colocar nessa posição.
LUPICINIO - Eu sou boêmio. O meu negócio é estar assim como estou agora com o violão do lado, dentro de um bar, com vocês, e tomando as minhas biritas e cantando. Não faço comércio.
O PASQUIM - O que você acha de, digamos, Caetano Veloso?
LUPICINIO - Caetano Veloso? Ah, é ótimo compositor. Muito bom mesmo.
O PASQUIM - Você não se sente em choque com o que está se fazendo, porque tudo é música brasileira, né?
LUPICINIO - Olha, todo camarada que produz no Brasil, seja ele de que forma for, Caetano Veloso, Gil, Chico Buarque... Apesar de que Chico Buarque ainda é naquele estilo antigo, que eles chamam, como é?, os "quadrados”. Mas acho o Chico um poeta maravilhoso, conservador daquele ambiente. Mas todos os que produzem, os que cooperam na arte brasileira, todos são bons.
O PASQUIM - As vezes, um compositor novo fala assim: "Ah, você não conhece o Lupicínio direito. Ele faz lparte do SDDA". Você acredita que o direito autoral no Brasil, em relação ao compositor, é o que ele merece, ou não? Você homem ligado, quando um compositor novo ou velho reclama, qual é a tua posição?
LUPICINIO - Eu faço parte das duas classes. O que está acontecendo não é que as sociedades não paguem os compositores, não queiram pagar. O que acontece é que a influência da música estrangeira no Brasil é o maior... como se diz?... é o maior...
O PASQUIM - Câncer, hem? Câncer?
LUPICINIO É o câncer que prejudica o compositor brasileiro. Eu vou explicar as razões.
O PASQUIM - E a mecânica da coisa, Lupicínio?
LUPICINIO - Se as sociedades brasileiras de compositores tiverem que pagar o direito autoral certo, certo como é, o compositor brasileiro não recebe nada.
O PASQUIM - Explica pra nós.
LUPICINIO - É o seguinte. No Brasil toca 90% de música estrangeira. Se nós cobramos 90% de música estrangeigeira em cruzeiros, e pagamos pros estrangeiros em dólar, as sociedades de autores brasileiros têm que pagar aos estrangeiros mais do que eles cobram. O dólar custa seis cruzeiros: (N.R.: nos bons tempos!) o cruzeiro custa um. O dia em que as nossas autoridades fizerem tocar no Brasil 90% de música brasileira... porque ninguém teve o peito ainda de mandar tocar 90% de música brasileira.
O PASQUIM - Lupicínio, você é uma figura legendária aqui no Rio de Janeiro, uma figura quase mitológica. Você tem consciência disso?
LUPICINIO - (continuando, sem tomar conhecimento) -- Vocês que tem a imprensa na mão devem saber que podem ajudar. Não só os composítores, porque não é só os compositores que estão sofrendo. São os artistas em geral que estão sofrendo essa coisa. Você sabe que o Brasil deve ter uma média agora, de... vamos fazer uma base mínima ... tem dez milhões de artistas.
O PASQUIM - Quê que é isso, rapaz?
LUPICINIO - Fazendo uma base mínima de dez milhões de artistas, entre amadores e profissionais. A TV Globo e a TV Tupi, no Rio de Janeiro e São Paulo, não tem lugar para dois mil trabalharem. Tem?
O PASQUIM - É claro que não.
LUPICINIO - Não tem. E no entanto só existem três canais pra poder trabalhar. Quem não vem ao Rio e São Paulo não tem onde trabalhar.
O PASQUIM - Tá certo Lupi. O Lupi, voltando a esse papo de boemia: Em Porto Alegre, se você está sentado mima mesa, qualquer gaúcho pode sentar? E o cara quando senta, pode chegar assim "Ô Lupicínio", e vai lá e te abraça, e te pega com intimidade? E no Rio de Janeiro, quando está aqui no "Grego", onde nós estamos às seis e meia da manhã, e o cara chega e te reconhece? Como é que você recebe?
LUPICINIO - Em todo lugar que eu chego eu sou o mesmo Lupicínio. Todo mundo fala comigo, todo mundo bebe comigo, todo mundo convive comigo. Gente de toda a classe, de todas as categorias. Pra mim o mundo tem o mesmo tamanho e todos os homens [74][75] têm o mesmo valor. Só tem uma coisa que eu escolho: os meus amigos pra sair comigo. Na hora de sair, ou pra frequentar a minha casa, é outro negócio.
O PASQUIM - Mas o pessoal que chega na mesa?
LUPICINIO - Ah, bebe todo mundo comigo.
O PASQUIM - Essa pergunta é uma questão de tradição nossa. Qual é o teu nível de instrução? E até que nível você resolveu estudar com a vida que levava?
LUPICINIO - Como curso oficial eu cheguei até o ginásio. Estudei a vida em cursos particulares e gosto muito de ler.
O PASQUIM - O que você lê?
LUPICINIO - Eu não leio literatura clássica. Eu só leio livros populares.
O PASQUIM - Por exemplo?
LUPICINIO - Eu gosto de ler livros de contos, livros policiais...
O PASQUIM - Érico Veríssimo?
LUPICINIO - Você sabe que eu leio. Jorge Amado, cê sabe que eu leio.
O PASQUIM - Que horas você vai dormir, que horas você acorda?
LUPICINIO - Eu acordo mais ou menos às 10 horas da manhã, dou comida pras minhas galinhas, pros meus passarinhos.
O PASQUIM - Ah, você cria? Você mora em casa grande, com quintal?
LUPICINIO - Minha casa tem uns 20 metros de largura, mas tem quase 200 metros de fundura.
O PASQUIM - Vai contando, vai contando. Vai em frente.
LUPICINIO - Aí a mulher vai me procurar no fundo do quintal, me achar pra me dar café. Aí, depois, me chama pra fazer comida.
O PASQUIM - Você faz a comida?
LUPICINIO - Eu faço a comida. Aí, então, eu durmo. Até as três, quatro horas da, tarde. Três horas eu levanto, tomo meu banho, me arrumo, e vou a SBACEM. Aí saio do escritório às sete horas e continuo a noite até as quatro da manhã. Às quatro eu vou pra casa.
O PASQUIM - Especifica.
LUPICINIO - Aí tem que passar de buteco em buteco, aqueles igrejinhas todas. Vou lá pro meu bar, que é o mais movimentado da cidade, o "Batelão".
O PASQUIM - Você tem que ganhar uma mulher toda a noite, pó. Como é que você aguenta tanta mulher em cima de você?
LUPICINIO - Não, eu sou um rapaz direito. Nesse negócio de mulher eu sou um rapaz direito.
O PASQUIM - Só tem aquela tua?
LUPICINIO - Só da patroa. Sou só da patroa.
O PASQUIM - Apesar de fazer essas músicas todas maravilhosas que o Brasil inteiro sabe, você, a partir da tua ligação com a tua patroa...
LUPICINIO - A partir das quatro horas da manhã sou só da patroa.
O PASQUIM - Ah, aí você é só da patroa. Gessé, grande companheiro de Lupicínio, professor de violão, maravilhoso acompanhante de Lupicínio, grande boêmio. Gessé, fala alguma coisa de Lupicínio para O PASQUIM.
GESSE - Eu digo duas palavras só. Lupicínio é autenticidade e acabou-se.
O PASQUIM - Autenticidade? O pessoal quer saber de você que autenticidade é essa.
GESSÉ - Eu ouvi vocês perguntando pro Lupi, por que que ele, lá no Rio Grande do Sul, fazia samba. O samba é mais velho, o samba vem do choro. O Lupi ouvia o pai dele fazer choro. O choro veio do lundu, do maxixe. Não precisa vir ao Rio de Janeiro pra fazer samba. Os estilos saem diferentes. O estilo do samba do Rio Grande do Sul, o estilo aqui, o estilo do samba do Recife. Mas origens são sempre as mesmas. As origens são aquelas que vieram lá de trás, onde nota o coco, o maracatu - que outro estilo de samba -, o xaxado. Isso tudo é samba. E isso, meu filho, está principalmente na cor, na raça. Você não precisa aprender. Isso nasce sozinho. O ruim é louro fazer isso. Este precisa vir aqui aprender, sentar no banco da escola. Mas quem já tem na cor não precisa vir aprender. Já nasce, tá no berço.
O PASQUIM - E você, onde é que aprendeu esse balanço todo?
GESSÉ - Ah, eu vim beber água na fonte. Bebi água na fonte, sim.
O PASQUIM - Você participou do movimento musical aqui no Rio de Janeiro?
GESSÉ - Minha formação musical foi aqui no Rio de Janeiro.
O PASQUIM - Você é gaúcho?
GESSÉ - Eu sou gaúcho. Mas vim beber água e aprender violão aqui, na fonte.
O PASQUIM - E como foi o contato com o Lupicínio?
GESSÉ - Veio ao natural. Eu, chegando no Rio Grande do Sul, tinha que procurar o Lupicínio. O problema foi meu: procurar e encontrar o Lupicínio.
O PASQUIM - Há quanto tempo vocês transam juntos?
GESSÉ - Dez anos. Mas já com uma certa afinidade, tocando muitas vezes juntos.
O PASQUIM - Vocês já tem estabilidade?
GESSÉ - Algumas poeiras de muitas estradas nas sandálias da gente.
O PASQUIM - Lupi, talvez tenha alguma coisa que você queira dizer e que nunca ninguém perguntou numa entrevista. Isso é importante, porque às vezes a pessoa tem alguma coisa que dizer, e nunca ninguém pergunta. Que que você quer dizer, quer transmitir ou protestar? Alguma coisa que você sentiu, e nunca foi perguntado?
LUPICINIO - Olha, eu não sou de reclamar. A única coisa que eu estou reclamando, não é por mim, é um pedido que eu estou fazendo: que ajudem os nossos artistas. Pedindo ao governo que obrigue as estações de rádio, os barés, a por programação ao vivo, pra dar serviços a esses milhares de artistas brasileiros que andam por si, e não tem onde trabalhar. Os únicos estados que tem -- ainda -- lugar para artista trabalhar é Rio e São Paulo, que não podem acomodar esses artistas todos do Brasil.
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Fonte: O Som do Pasquim: Grandes entrevistas com os Astros da Música popular Brasileira. 2ª ed., Rio de Janeiro: CODECRI, 1976, pp. 65-76
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