sexta-feira, 8 de agosto de 2014

CURIOSIDADES DA MPB


Dorival Caymmi resolveu partir para o Rio com menos de 500 mil- réis, o livro Poetas de sua vida, de Stefan Zweig, entre outras coisas... Chega ao Rio em 4 de abril 1938 pouco depois das 7 da noite. Caymmi costumava andar À noite. Batia a av. Rio Branco até a Praça Mauá. Muitas canções que trouxe incompletas da Bahia foram terminadas nas andanças noturnas pelo centro do Rio. “O que é que a baiana tem?”, “A preta do acarajé”, “O mar” e “A lenda do Abaeté” estavam entre essas músicas. Não precisava do violão para compor enquanto caminhava pelas ruas do Rio. Até porque em fins da década de 30, ainda sobrevivia um forte preconceito contra o violão. Caymmi tratava de esconder o seu, com medo de ser tomado por malandro ou coisa pior. Mas não conseguiu manter seu pacote misterioso por muito tempo. Certo dia, José Lago da Rocha, seu vizinho de quarto na pensão em que hospedou-se ao chegar da Bahia, olhou bem para o pacote e disparou: "Isto é um violão, não é?". Ato contínuo, pegou o embrulho e o bateu contra a testa, e veio o som comprometedor do instrumento. Sem fazer caso do ar espantado de Dorival, abriu cuidadosamente o embrulho - de um papel que costumava ser usado para embrulhar macarrão - enquanto dizia que já havia "arranhado" um pouco o violão, mas que não tocava fazia tempo. Começou a tocar uma peça dificílima, para surpresa do baiano, lendo uma partitura, num método italiano, que havia buscado em seu quarto.

Em pouco tempo, todos da pensão sabiam do violão de Caymmi. Por fim, a história do violão foi parar nos ouvidos de Pitanga, que se apressou em convencer o próprio: "Dorival, aqui é terra do rádio e do futebol. Não perca seu tempo com outras coisas" - aconselhou. Por trabalhar na área médica, Pitanga conhecia o baiano Assis Valente, que era protético, com um amplo laboratório no Largo da Carioca, 9. 

Assis era seu amigo e, ainda por cima, lhe devia uns cobres. Preocupado em ajudar Caymmi, pediu a Assis que o recomendasse a César Ladeira, na Rádio Mayrink Veiga. autor de "Camisa Listrada" não vacilou em atender seu pedido. '"Pezado' César'', escreveu no cartão de visita do consultório - brincando com a obesidade do amigo - e prosseguia pedindo uma audição para o jovem compositor. Na época, a Mayrink Veiga era a melhor emissora do Rio de Janeiro: os melhores programas, o melhor cast. Esperançoso, Dorival Caymmi procurou o famoso radialista, diretor-artístico da rádio e um dos melhores speakers que o Brasil já teve.

Ladeira foi muito atencioso com o rapaz baiano, que cantou "No Sertão" para o radialista, que riu muito da brincadeira de Assis, mas acabou por despachá-lo com a manjada alegação da falta de recursos para novas contratações. Foi um cochilo feio deixar escapar o jovem talento. Dorival saiu de lá cabisbaixo e preocupado com o aluguel da pensão que iria vencer, pois seu dinheiro havia acabado. 

Luperce Miranda, famoso bandolinista pernambucano, de quem o compositor se aproximou num programa de auditório dias depois como um simples fã, viu-o naquele estado e procurou saber qual era o problema. Dorival então fez um desabafo e confessou sua intenção de desistir de tudo e voltar para a Bahia. "Nunca diga isso. Você está chegando agora. Você vai ver, logo supera isso e vai vencer, porque tem valor" - animou o músico. Dorival sempre foi grato por estas palavras, ditas com sinceridade e na hora em que mais precisava. 

Pitanga, incansável, não desanimou com o episódio da Mayrink. Como sabia da experiência de Caymmi no jornal O Imparcial, na Bahia, procurou seu amigo e conterrâneo Edgar Pereira, da revista O Cruzeiro, que pertencia aos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, o Chatô. Edgar, que trabalhava como paginador na revista, mandou que Caymmi passasse lá para conversar com ele, e veria o que podia fazer pelo amigo. 

Antes disso, Dorival Caymmi teve uma bela oportunidade, que, se não resolveu seus problemas financeiros, devolveu-lhe a autoconfiança. Já entrosado nas modas cariocas, o compositor freqüentava o Café Nice, onde encontrava os amigos, fazia outros e via seus ídolos do rádio de perto. Foi assim que conheceu Ubirajara Nesdan. 

Ficaram amigos, e, certa vez, Nesdan o pegou cantarolando. O baiano confessou que "compunha, cantava e tocava um violãozinho". Nesdan era amigo de Lamartine Babo, famoso compositor e radialista, que na época tinha um programa chamado Clube dos Fantasmas, na Rádio Nacional. Numa noite de poucas atrações para o programa que ia ao ar à meia-noite, Lamartine e Nesdan estavam matutando sobre quem chamar para que o programa não saísse uma xaropada, quando Nesdan se lembrou de Caymmi. Lamartine nem piscou e convocou Cid Prado para levá-lo de carro à pensão do baiano, que seria a salvação daquela noite. Cid Prado estava sempre por perto. Ele, fã incondicional de Lamartine, era um homem de posses, dirigia um laboratório, que tinha no Elixir Jataí Prado seu principal produto. Estacionaram em frente ao número 35 da rua São José. Chamaram a atenção do guarda da rua, que se aproximou para indagar se eram hóspedes. Já estava disposto a barrá-los, quando reconheceu Lamartine Babo de quem era fã. 

Na pensão não houve problemas. Como havia luzes ainda no quarto de Caymmi, Dona Julieta prontamente foi chamá-lo. Ao saber do que se tratava, o baiano, que escava só de calça, tratou de vestir a camisa rápido, pegou o violão e foi com eles para a Praça Mauá. No Rio de Janeiro, nos primeiros tempos da consolidação do rádio no Brasil, a maioria das coisas se resolvia na informalidade. E com Caymmi não foi diferente. De repente, estava cantando no programa de um dos radialistas mais populares de então, além de compositor de sucesso, famoso pelas composições carnavalescas e sambas-canção. Em pleno ar, Lamartine brinca, como era de seu costume, com a sua atração da noite: 

- Como você se chama? - perguntou Lamartine. 

- Dorival Caymmi - respondeu de pronto o jovem baiano. 

- Cay-em-mi - Lamartine falou acentuando bem o 'mi' - É musical. Caymmi 

é de mi! - concluiu rindo. 

Naquela noite, Dorival Caymmi cantou "Noite de Temporal", com seu vozeirão característico, apesar de ser bem franzino na época. A canção deve ter causado estranheza em Lamartine, por sua melodia impressionista, seus acordes incomuns e pela dramaticidade da letra: 

É noite ... É noite ... 

Ê lamba ê ... Ê lambá ... 

Pescador não vá pra pesca 

Pescador não vá pescá 

Pescador não vá pra pesca 

Que é noite de temporá ... 

"Isso é meia-noite mesmo!" - exclamou o radialista, fazendo referência a um outro programa seu, O Clube da Meia-Noite, que fizera antes na Rádio Mayrink Veiga.

Apesar da hora tardia, o programa gozava de boa audiência. Parentes da Bahia o ouviram e escreveram para Dorival parabenizando-o pela apresentação. Convidados por Assis Valente, Pitanga e o primo foram a uma apresentação de artistas na Casa do Dentista. Pelo palco passaram, além de Assis, Moreira da Silva, Luiz Americano, Déo Maia, Léa Coutinho e Apollo Correia. O jovem baiano pouco a pouco ia se acostumando com a vida carioca.

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