segunda-feira, 24 de março de 2014

MÚSICA, ÍDOLOS E PODER (DO VINIL AO DOWNLOAD) - PARTE 39



CAPÍTULO 39 

Uma vez por ano, os diretores das filiais espalhadas pelo mundo viajavam para assistir a convenções mundiais organizadas pela matriz, que sempre aconteciam em lugares exóticos: Barbados, Bali, Haiti, Kyoto, Veneza. E dessa vez o Nesuhi me telefona: 

— Este ano nós nos encontramos em Saint John, no hotel tal, tal dia, a tal hora. 

Saint John faz parte dessas centenas de ilhas do Caribe. Reservei minha passagem via Caracas e, como era de praxe na época, pessoas nascidas na Síria — meu caso — eram obrigadas a esperar pela conexão na prisão do aeroporto. Não era nada agradável, mas dava à viagem um twist romântico do tipo 007. Na hora prevista, saí da prisão do aeroporto e embarquei num Jumbo cheio de turistas que iam desembarcando nas ilhas paradisíacas, e, lá pelas oito da noite, o avião, já quase vazio, chegou a Saint John, seu destino final. O aeroporto estava vazio. Retirei minhas malas, peguei um táxi e dei o nome do hotel ao motorista. Após uma curta corrida de cem metros, o motorista parou e, com uma fisionomia encabulada, disse: 

— Mister, lamento, mas não existe esse hotel aqui. Isto aqui é uma ilha pequena. Dirijo este meu táxi há mais de vinte anos e nunca ouvi falar desse hotel... 

Já estava ficando tarde; contudo, por desencargo de consciência, dei uma volta pelos hotéis para ver se encontrava meu pessoal. Não tendo encontrado sinal de vida da Warner Communications ou de seus executivos, demos mais uma volta, dessa vez para arrumar um quarto onde dormir. 

— Sinto muito, mas nós estamos com todas as reservas esgotadas — disse a recepcionista do primeiro hotel. 

A cena se repetiu. Não tendo lugar em hotel algum, meu motorista sugeriu tentar a sorte com os albergues. Visitamos alguns deles e todos também estavam ocupados, até chegarmos a uma bonita casa. Toquei o sino da recepção e, minutos depois, apareceu um típico norte-americano, de uns sessenta anos, obviamente o dono do lugar: 

— Sim, tenho um quarto. Não é o melhor dos quartos, mas se você fica só por uma noite, deve ser 

ok. Por favor, me dá seu passaporte... Oh! Você é brasileiro! Então, me faz um favor... O jantar e as bebidas vão ser por minha conta. Porém, você vai me ajudar a mostrar aos meus amigos que eu sei falar português. Porque eles acham que eu sou mentiroso. 

De fato, o cara falava razoavelmente português, com um forte sotaque gringo. Então, fomos até o bar, onde um bando de americanos aposentados bebia sua dose diária de álcool. Eu falava em português com o dono e o cara ia me respondendo na mesma língua, acompanhado pelos “Hip, hip, hurras!” da plateia. Dali a pouco, os aposentados foram para casa e eu fiquei jantando na companhia do meu anfitrião, que me contou como e por que conhecia o nosso idioma. 

— Você sabe, os anos que passei no Brasil foram os melhores da minha vida. Eu trabalhava para a CIA e nós tínhamos sido convidados pelo presidente de vocês, Castelo Branco, para ajudar no planejamento da revolução em 1964. Oh, boy, você não pode imaginar o fun that we had 78! 

Tentei puxar um pouco mais daquela inesperada e surpreendente conversa, mas ele, num pileque razoável, preferiu parar por ali. 

Na manhã seguinte, meu novo amigo da CIA me levou para um aeroporto bem pequeno, à beiramar, com alguns hidroaviões ali parados. Logo descobri que eu estava perdido nas ilhas do Caribe e que eu tinha aterrissado na cidade de Saint John, e não na ilha de mesmo nome... 

— Fique tranquilo. Eu não conheço essa ilha de Saint John. Mas você vai ver: esses pilotos filhos da-puta sabem qualquer coisa que você perguntar sobre essa porrada de ilhas — disse meu novo amigo. 

Aí, os três ou quatro pilotos que estavam de plantão à espera de algum cliente me disseram que de fato existia uma ilha chamada Saint John, a uns 150km dali, e que só podia ser a ilha que eu estava procurando. 

Embarquei num dos hidroaviões que levantaram vôo naquela manhã ensolarada. “Nada mais sofisticado que se perder no Caribe... Que aventura mais alegre!”, pensava eu. 

Depois de três ou quatro horas, chegamos a Saint John lá pelas 15h. O piloto ainda deu um vôo rasante sobre a minúscula ilha e pude ver o meu pessoal estendido na praia. Graças a Deus, havia chegado ao lugar certo! Na recepção do hotel, dei de cara com o Nesuhi : 

— O que é isso, Haidar? Chegando atrasado… Nós estávamos preocupados... 

— Imagina, Nesuhi ... Fiquei na prisão do aeroporto em Caracas ontem à tarde, me perdi nas ilhas do Caribe e fui parar lá longe, numa cidade chamada Saint John numa ilha qualquer ontem à noite! 

No ano seguinte, a convenção teve lugar em Milão e para o encerramento foram convidados, na melhor tradição italiana, alguns dignatários locais, sem esquecer alguns religiosos e militares importantes. Ao final do jantar, subiu ao pódio uma mulher de seus sessenta anos, forte feito uma camponesa, a cabeleira branca abundante e desordenada, vestida de preto, as mãos firmes sobre a tribuna. Olhou-nos longamente, respirou fundo e, com uma voz imponente, começou: 

— Eu sou Fulana, sou ministra do Trabalho e militante comunista desde a infância... 

E deu início a um discurso eletrizante — quase que sinfônico —, que terminou mais ou menos assim: 

— Agora seria um terrível equívoco acreditar que o Partido Comunista Italiano se assemelha e depende filosoficamente da União Soviética... O Império Romano inventou os alicerces da democracia há dois mil anos e ninguém deve esquecer que o povo italiano e o nosso partido sempre beberam o leite das tetas da loba romana. 

“Era ainda a voz da loba que saía da boca dessa mulher”, pensei. Fiquei muito impressionado com esta imagem: “Bebeu o leite das tetas da loba romana!” A loba romana havia dominado a ferro e fogo, durante séculos, os gauleses, os visigodos, os ostrogodos, os teutões, os tártaros e outros mais. E, na hora da decadência do Império, transformando o manto dos imperadores no manto dos papas, seguiu dominando a ferro e fogo grande parte do mundo, até hoje.

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