quarta-feira, 12 de março de 2014

DÉA TRANCOSO, 50 ANOS

Por João Paulo Cunha



Flor ao sol



Sempre que escuto Déa Trancoso me lembro de Guimarães Rosa. Ela tem patente para cantar o sertão. E não é a memória do Rosa de Grande sertão: veredas que me ocorre primeiro, mas de O recado do morro, novela encantada que faz parte de seu Corpo de baile. Na estória, uma mensagem vai sendo retransmitida de maneira tortuosa, prevenindo e salvando a vida da personagem, enquanto uma canção vai sendo gestada. O senhor aceite, isso é o sertão, essa mescla de vida, morte, mistério e beleza.

Mas tem outro ingrediente do escritor na música de Déa, que é esse jeito de falar de grandes coisas a partir do que parece miúdo. As pessoas do Vale do Jequitinhonha gostam de pedras – as cidades têm nomes de pedras – e se dedicam a olhar com paciência e sabedoria milhares de cascalhos que correm pela bateia para enxergar uma areia que tenha luz por dentro.

Déa é cantora, nasceu em Almenara, está completando 25 anos de carreira e tem quatro discos. Com essas poucas balizas, quase uma bússola, estão contidos o Norte, o Sul, o Leste e o Oeste de Déa. Ofício, raiz, pertinácia e cuidado. Ela só canta o que deve ser cantado, traz em sua arte todas as emanações de sua terra, escolheu devotadamente seguir adiante em sua tarefa e nunca teve pressa que lhe fizesse atropelar a beleza e a responsabilidade com o destino de artista.



A voz de Déa, que a ajuda a ir tocando a vida na rosa-dos-ventos de seu destino, tem um agreste muito difícil de definir. Por vezes parece ecoar o jeito de cantar preso à cultura de seu chão, como se desfiasse um rosário de cantos coletivos, ao qual ela se soma com humildade, até quase se dissolver. Em outros momentos, ela nos desafia com um jeito rascante de afirmar que tem coração de mulher ali por trás.

​Há alguns elementos que perpassam tudo que a cantora faz, como um rio que parece se desviar do caminho reto apenas para dar mais sinuosidade a uma certeza interior. Em primeiro lugar, mesmo parecendo de início ser uma artista intuitiva – que ela também é – Déa Trancoso faz uma arte muito culta. Seus cantos carregam a sabedoria construída com muito labor, crença e festa. Há um mapa de referências que vai se abrindo com as canções e as sonoridades, que é próprio de um país que escolheu a música como sua arte mais visceral.

Assim, a convivência de temas de domínio público com composições mais contemporâneas faz parte de um jogo que tem regras estritas, mas também espaço para o improviso e a invenção. Quem quiser conhecer catimbó, coco, lundu, congo dobrado, maracatu, batucão, moda de viola, samba de caboclo e de roda, vai encontrar na voz de Déa um pórtico. Mas não se trata de um registro antropológico nem de trabalho de etnomusicologia. Está tudo vivo, naquela hora. Agora. E, por isso, no coração da memória, pulsa o sentimento de criação.

Outra característica da arte da cantora é a descoberta de veios que dão unidade a seus trabalhos. Cada disco, e não são muitos exatamente para serem inteiros, tem uma alma musical e poética própria. Em O violeiro e a cantora, ao lado de Chico Lobo, as modas de viola e as canções têm uma ambientação singular.

​​A sonoridade da viola de 10 cordas, com sua riqueza de ritmos e harmônicos, faz um leito para o canto que precisa surgir também como um instrumento. Assim como a viola parece, em sua longa história, ter deixado um certo inacabamento que dá ao violeiro a responsabilidade de completar seu som, o canto também é se-fazer.​​

Tum tum tum já é outra história. Muitas estórias. Não é por acaso que a epígrafe do disco foi pescada num poeta alemão, Rilke. Há momentos em que as fronteiras de tempo e espaço se esvaem. Trabalho já autoral em todos os sentidos, o disco é uma síntese de muitas vivências e heranças, que foram convocando diferentes climas para cada canção. ​

O equilíbrio da palavra e dos sons, sempre em secura quase metafísica, cria uma relação nova com o tempo e exige paciência e entrega. Rituais que vêm da África, dos índios e do sertão confluem para o ritmo mais essencial. Tambor e coração são signos do mesmo princípio. A voz, agora, precisa ser senhora de si. Seu destino é maravilhar, sem pressa nem medo dos volteios e de seus ciclos encantatórios.

Com Serendipity Déa assume seu destino de compositora. Há mais de um risco nessa entrega. Além de revelar o que lhe vai na alma, o álbum tira da artista um pouco de suas defesas, do lar de onde revelou ao mundo sua terra e suas referências. Serendipity, como a própria palavra anuncia, põe na mesma levada o acaso e a felicidade. A cantora continua ligada às origens, mas agora mira para fora.

Mira e veja, Déa fez o que parecia impossível, coseu os tambores com fios e fez um disco em que o tum-tum-tum é adivinhado por entre as cordas de todo tipo. É um disco de violão e voz. Da voz dos violões de Rogério Delayon. Déa, como diria minha filha, é “boa de amigos”. No entanto, em cada poesia anunciada pelas canções, há um olhar diferente, que é algo que se parece com a ambição dos tímidos, aquela revelação que preserva.



O mais recente rebento de Déa, Flor do Jequi, tem a companhia de Paulo Bellinati. A mescla entre temas populares e músicas autorais, que parece ser o solo natural da cantora, ganha aqui uma realização musical tecida com muito cuidado. Para ser flor, precisava de delicadeza e de uma forma de manifestar a beleza como um dom.

​Para ser do Jequi, é mister carregar a certeza de que a graça é ainda mais exigente: a beleza esplende com potência porque a cobrança do tempo é mais veloz, em razão do sol, que ilumina com mais força. É preciso calma para cantar canções que estão a ponto de se perder no horizonte. É necessário engenho para criar as possibilidades de novas estórias.

Outro lado que fascina no trabalho de Déa é sua capacidade de despertar interesse em gente tão diferente e dispersa pelo mundo. Gismonti gosta, Dércio Marques gostava, colegas de ofício como Ná Ozzetti e Badi Assad também. Até o Manfred Eicher, o mais sensível dos produtores de música contemporânea, lá de seus estúdios gelados, mandou boas palavras. 

A resposta pode estar na universalidade que parte do singular. Ou na qualidade da música. Quem sabe até na maneira de cantar, que carrega tantas heranças que se emparelham empaticamente na memória afetiva de cada uma daquelas pessoas.

Acho, no entanto, que a razão é mais simples.

​É simples.


Discografia Oficial

Cantora, compositora e produtora cultural. Celebrou, em 2012, 25 anos de carreira, mostrando o Brasil para o mundo e para os brasileiros. Chamada pelos fãs e alguns críticos de “a fada telúrica”, fundou o selo TUM TUM TUM Discos, através do qual conduz seu trabalho. Em 2012, lançou caixa-box com seus quatro CDs:​​​​​​​​​​​​​

01 -  “O Violeiro e a Cantora” (Independente-1999), realizado com recursos do Fundo Municipal da Prefeitura de Belo Horizonte, a convite do violeiro Chico Lobo;


02 - “Tum Tum Tum”(TUM TUM TUM Discos-2006/Biscoito Fino-2010), realizado com recursos do Programa BNB de Cultura, recebeu quatro indicações ao Prêmio da Música Brasileira 2007 (concorrendo com Maria Bethânia, Chico Buarque, Alceu Valença, Antônio Nóbrega, Margareth Menezes) e foi relançado pela Biscoito Fino, em 2010, com distribuição no Brasil e no exterior;

03 - “Serendipity” (TUM TUM TUM Discos-2011), primeiro trabalho autoral que traz também parcerias com Badi Assad, Chico César e Rogério Delayon, o disco recebeu elogios de Manfred Eicher/ECM, Egberto Gismonti, Ná Ozzetti, Charles Gavin, Maria Luíza Kfouri, e teve o show de lançamento em Pontevedra/Espanha, durante a Feira das Indústrias Culturais da Galícia, pelo programa Música Minas (vale lembrar que a sua valsa “Gismontiana 2” -dedicada ao músico Egberto Gismonti-, uma das canções desse álbum, foi harmonizada e arranjada pelo violonista Juarez Moreira e ganhou posteriormente arranjo para piano do próprio Egberto Gismonti);

04 - “Déa Trancoso e Paulo Bellinati – FLOR DO JEQUI” (TUM TUM TUM Discos-2012), realizado através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais, no qual os dois artistas criam e recriam símbolos da mítica região do Vale do Jequitinhonha.

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