CAPÍTULO 36
Meus primeiros contatos com os três selos norte-americanos — Warner, Atlantic e Elektra — foram muito cordiais, até o momento em que perceberam que, se por um lado a abertura da companhia no Brasil significava que nos dedicaríamos a vender seu catálogo norte-americano, por outro expressavam forte preocupação com o fato de eu ter recebido carta branca do Nesuhi para desenvolver também um catálogo de artistas brasileiros, o que consideravam um equívoco intolerável.
Era difícil perceberem que, ao contrário da maioria das indústrias multinacionais, inclusive a cinematográfica, a multinacional do disco tinha que ser importante localmente para ser forte internacionalmente. E que tal importância só seria adquirida com a ajuda de um forte catálogo de artistas nacionais, sem o qual nossa presença no mercado se reduziria a um papel insignificante.
A gente abriu a WEA no Brasil em junho de 1976, com os discos Urubu 70 do Tom Jobim, e Slaves Mass 71, do Hermeto Pascoal, ambos gravados em Los Angeles, além de A Cor do Som, Marina Lima, Frenéticas, Carlos da Fé, Belchior, Azymuth e poemas escritos e narrados por dom Hélder Câmara , para não perder o costume de cutucar a ditadura. Vieram se juntar, pouco tempo depois, Zezé Motta, Ney Matogrosso, a Banda Black Rio, Baby Consuelo, Pepeu Gomes, Raul Seixas, Gilberto Gil, Elis Regina, Paulinho da Viola e Dona Ivone Lara, sob a supervisão do Mazzola, como diretor artístico, e a produção de Nelson Motta, Liminha, Guti de Carvalho e Sérgio Cabral. Leonardo Neto — hoje manager de Marisa Monte, de Adriana Calcanhotto e de Regina Casé —, que ingressava na indústria como diretor do nosso departamento criativo, ficou encarregado de todo o setor de promoção. Leonardo montou uma equipe jovem jamais igualada na história do disco no Brasil.
Nelson Motta, que tinha inventado as Frenéticas, produziu, com Liminha, o primeiro disco do grupo, que estourou imediatamente no país inteiro, encorajando todas as meninas a se acharem “bonitas e gostosas” . O Gil , recém-chegado na Warner, vendia umas setecentas mil cópias da canção “Não chore mais”, e acabou convidando o jamaicano Jimmy Cliff para um giro pelos estádios de futebol brasileiros, todos lotados pelo ávido público.
A Elis, sob a batuta do César Camargo Mariano, estava no auge da carreira e ocupava os palcos em longas temporadas com Transversal do tempo. O Belchior lançava o sucesso “Apenas um rapaz latino-americano”. A Baby Consuelo começava sua carreira solo cantando “Menino do Rio”, e o grupo A Cor do Som revolucionava o rock brasileiro. Contratei a Continental para a fabricação, o faturamento, os serviços de depósito, a entrega dos pedidos e as cobranças, na esperança de podermos nos dedicar inteiramente ao artístico, à promoção e às vendas.
Porém o meu querido amigo Byington, dono da Continental, apesar de todos os seus esforços, não tinha colaboradores nem organização à altura para aguentar o grande volume de vendas que vínhamos gerando rapidamente. Desesperado, dei uma volta pelas gravadoras RCA, Odeon e Columbia, mas nenhuma quis assumir a fabricação dos nossos discos a preços competitivos. Finalmente, acabei comprando uma pequena fábrica independente em São Paulo, por um preço excessivamente alto, em vista da precariedade dos equipamentos e das instalações. Montamos depósitos e, num piscar de olhos, passamos de 50 a 170 empregados. Tudo ia rápido demais! Nossa participação no mercado já estava em 12% depois dos primeiros 18 meses de atividade. E os lucros apareceram já no segundo ano fiscal.
Além de ser eficiente, eu queria que a gravadora tivesse uma performance transparente, pois sempre existiu uma enorme desconfiança quanto à honestidade das companhias de disco em geral. E me incomodava demais sentar-me à frente de um artista que pudesse pensar que a minha companhia o roubava. Contratei, então, uns auditores externos, e pedi que fizessem uma série de diagramas para ilustrar os meandros do processamento contábil dos direitos artísticos e autorais, da venda aos pagamentos. Além do mais, solicitei que fizessem demonstrativos claros de todas as despesas, lucros e perdas da empresa. Convidei os meus artistas mais importantes para umas quatro reuniões, durante as quais eu abria os livros da companhia, ao mesmo tempo em que ilustrava as conversas com os diagramas dos auditores. Respondia às perguntas dos artistas e, mais importante, convidava seus advogados e/ou contadores para verificar os dados.
Em seguida, sempre partindo do princípio segundo o qual o artista é o verdadeiro patrimônio da companhia — acima dos estúdios, da fábrica etc. —, decidi incluir um representante da classe no conselho diretivo da empresa. Esse conselho se reuniria mensalmente e seria composto pelos gerentes das diferentes áreas. Nada mais natural que um artista representasse os colegas e participasse das decisões mais importantes. Convidei os artistas para eleger um representante, prevendo que Gil ou Elis seria o escolhido. Mas as seis Frenéticas tinham votado em bloco no Chico Anysio a pedido de sua namorada Regina Chaves, e acabou sendo o vencedor. Chico, que por sua vez só tinha gravado um disco conosco e não participava da vida musical em geral, não se interessou em assumir o posto!
Finalmente, o cargo de representante dos artistas contratados no conselho diretor ficou vazio, impossibilitando uma experiência que poderia ter sido inovadora e interessante: um artista eleito para participar das decisões corporativas.
A gravação que o Mazzola produziu com a Banda Black Rio foi um momento muito importante na vida musical do país, pois o grupo reunia os mais importantes músicos black do Rio de Janeiro.
Oberdan, líder da banda, desenvolveu arranjos surpreendentemente ousados e modernos, que fizeram com que o álbum Maria Fumaça se tornasse, até hoje, uma referência entre os músicos brasileiros devido ao seu conceito inovador e, sobretudo, à influência que exerceu sobre os destinos musicais do funk brasileiro, que estava nascendo, inicialmente pela influência musical do Jorge Ben Jor, do Tim Maia e, naquele momento, dessa banda. O negro podia se expressar de muitas maneiras — sem ficar unicamente confinado ao samba e, no entanto, sem o renegar. Em consequência, a Warner passou a ser um ponto de convergência para muitos eventos relacionados com o movimento black, promovidos por DJs nos subúrbios do Rio e de São Paulo.
Um jornalista da revista Manchete, Tarlis Batista , que eu conhecia de muitos anos, me incitou a ir aos sábados até a Zona Norte do Rio de Janeiro para testemunhar o tamanho e a importância do movimento black, cuja existência a sociedade branca, a indústria fonográfica e a mídia ignoravam. Ele coordenou minha ida, num sábado, ao ginásio de basquete do Olaria. Cheguei à meia noite. A praça que cercava o estádio estava completamente deserta. Não havia carros estacionados, nem motocicletas, tampouco bicicletas. A iluminação era tão precária que parecia inexistente. Só se ouvia, ao longe, uma pulsação sonora, que indicava que algo estava acontecendo por ali. Desci do carro e, à medida que me aproximava da entrada do estádio, a pulsação se tornava mais forte. Na entrada, uns guarda-costas estavam me esperando. A primeira porta se abriu, e não era mais uma pulsação — o que eu ouvi foi uma gigantesca explosão rítmica, cheia de suingue. A iluminação, depois de eu ter andado no breu quase assustador da praça, me cegou por uns instantes... Fui conduzido até um “espaço VIP”, meio tonto com o volume da música e meio cego com a violência das luzes, e me deparei com aproximadamente dez mil moças e rapazes — todos negros, todos lindos —, vestidos de uma maneira extravagante, imitando a “moda black” dos negros americanos, numa sinfonia de cores e de cabelos black power, todos dançando e suando apaixonadamente até o sol raiar... O espetáculo me deixou espantado e maravilhado. Passei uma noite em estado de graça e, ao mesmo tempo, fiquei, mais uma vez, perplexo ao constatar que a gente vivia em diversos “Brasis”, que não se conheciam e se ignoravam.
Nas semanas seguintes, chamei jornalistas cariocas e paulistas que eu conhecia, e organizei várias caravanas para Olaria. As reportagens começaram a aparecer no Rio e em São Paulo, criando uma controvérsia grande, a favor e contra os blacks, sua cultura e sua música, que muitos julgavam alienada, temendo que tais manifestações viessem a destruir a tradição secular dos morros. Para culminar, a revista Veja publicou em 1978 uma longa reportagem de seis a sete páginas, ampliando os debates e pondo fogo nesse confronto entre “Velhas Guardas versus Jovens Guardas”, que no final se resumia a “samba versus soul”, ou “tradição versus evolução”. Pouca gente considerava que essas modalidades pudessem conviver. Algum tempo depois da matéria da Veja, Aloysio de Oliveira, voltando de Brasília, me advertiu sobre rumores de um processo contra mim, visando a me expulsar do país. Isso me pareceu tão absurdo que não dei muita atenção, até que o João Araújo me telefonou alguns dias depois com a mesma notícia, acrescentando que nos autos do dossiê que se estava montando havia um abaixo-assinado — que tinha entre os signatários vários artistas — pedindo, de fato, minha expulsão. Eu não podia acreditar no que estava ouvindo e desta vez, sim, entrei em pânico! Por que ser expulso? Para quê? Justo naquele momento, quando a ditadura já estava se amansando... A alegação, que parecia de um filme de ficção, era que eu recebia dinheiro, através da Warner norte-americana, proveniente dos contestadores movimentos black americanos, liderados pelo Quincy Jones, para financiar a revolução e a insurgência dos negros nas favelas brasileiras. E que as reportagens sobre os bailes da Zona Norte eram nada menos que o sinal de partida dessa operação, e faziam parte de uma estratégia de desestabilização. Desde aquela época, os militares já se mostravam preocupados com essa eventualidade, por entender que uma guerrilha com sede nas favelas representava um perigo muito complicado de ser resolvido. Hoje, podemos constatar que eles tinham toda razão. Meus advogados entraram em contato com um coronel em Brasília, que tinha nos ajudado em várias outras ocasiões, e ele confirmou que o tal processo tinha chegado do Ministério da Justiça, endereçado ao então coronel João Figueiredo. Sabemos que, desde os tempos do Império, existem maneiras eficazes para um processo ficar por baixo da pilha de despacho dos funcionários. Por algum milagre, o meu nunca saiu do final da fila, até ser definitivamente esquecido.
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