Os cocos nordestinos, conforme escreveu Mário de Andrade: “São ardentes. São expressivos. São profundamente humanos e sociais”. Assim é que, entre tapiocas e coco, canta a ex-tapioqueira da Sé de Olinda: “o coco me adotou, me chamam rainha do coco, o povo é meu amor”. Filha de Maria Valentina da Conceição e José Teodósio da Silva, Selma Ferreira da Silva nasceu em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, a 10 de dezembro de 1929. As lembranças mais antigas envolvendo a brincadeira do coco de roda remontam à infância, claro, quando pais e avós levavam aquela criança esperta e de voz melodiosa para dançar e se divertir nos terreiros de chão batido e luz de candeeiro. Freqüentemente cantavam coco nas casas dos compadres, sobretudo para comemorar São João. As memórias e experiências, aliadas ao talento artístico, deram o mote e Selma vem glosando, com classe. E não deixa de ter importância saber que a alegria da tradição familiar foi mantida, no desfiar de todas essas décadas dedicadas ao ritmo.
Ainda criança, aos 10 anos, transferiu-se para o Recife, bairro da Mustardinha, onde se casou, teve 14 filhos e, mal saía da juventude, ficou viúva. Há 50 anos, decidiu morar em Olinda, tradicional reduto de samba de coco, e daí por diante cultivou o hábito de promover concorridas rodas para animar os finais de semana da família e ganhar uns trocados. Quando foi tapioqueira no Alto da Sé, jogava charme para os turistas com o feitiço da voz, do temperamento e ritmo envolventes. Cantava coco na Sé, no Carmo e na frente da própria casa, aos domingos. E, bom para Selma, bom para todos, integrantes da geração manguebeat se encantaram com a coquista, o que certamente contribuiu para a consolidação da carreira da cantora. O filho José Ferreira da Silva, pandeirista, é o produtor, parceiro e diretor musical da mãe famosa.
Morena do dente ouro, qual é o teu feitiço? Cantando e dançando um coco sincopado, matreiro e cheio de duplo sentido, Selma sabe que agrada. E gosta do que faz. Embrenhando-se no meio poético-musical do coco de roda, entramelando-se nas devoções de um coco que sutilmente também batuca, o grito de guerra “a-há” antecede o canto e faz a amarração de uma performance cheia de ginga, simpatia e irreverência. Na malemolência foi expandindo-se, conquistando o mercado. Segundo a própria artista, o “a-há” não tem nenhuma relação com orixás e outras entidades, o grito acontece enquanto o pensamento vai rodando, procurando no repertório o próximo coco a ser executado. Com três coletâneas gravadas na Alemanha e uma na Bélgica, Selma do Coco também já cantou no Lincoln Center Festival, em Nova Iorque, Estados Unidos, no ano de 2003. Tem feito shows Brasil afora: no Rio de Janeiro, em São Paulo, Salvador, Natal, Fortaleza, Limoeiro do Norte, Itamaracá, Garanhuns, citando apenas alguns dos locais por onde tem passado. Os trabalhos se espalham em muitos países, como França, Espanha, Suíça, Portugal.
No Recife, em 1990, quando ainda nem tinha um nome consolidado no cenário nacional, participou do I Festival de Cantadores de Praia do Nordeste, na praia de Boa Viagem. Em 1997, o festival recifense Abril pro Rock ajudou-a a deslanchar a fama. Nesse mesmo ano, a Câmara de Vereadores concedeu-lhe o título de cidadã olindense em reconhecimento à artista que mora naquela cidade desde o final da década 50. O carnaval pernambucano de 1998 ficou marcado pelo sucesso da música A rolinha, gravada em Berlim, Alemanha, no estúdio Ufa Fabrik, entre agosto e outubro de 1997, para o disco Cultura Viva. E o refrão Pega, pega a minha rola reinou quase absoluto naquela folia. Em São Paulo, fez show no Instituto Itaú Cultural no ano de 1998 e, na casa de espetáculos Tom Brasil, apresentou-se em 1999 com a banda de pífanos de Caruaru e Zeca Baleiro. Em 2006 volta a se apresentar no Itaú Cultural. Recebeu a comenda 2007 “Ordem do Mérito Cultural”, diploma concedido pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.
Dos vários CDs produzidos, foi com Minha História, gravado na Alemanha e depois lançado pela Paradoxx em 1998, que conquistou o Prêmio Sharp de 1999, concedido à música de mesmo título do disco. Há, ainda, na discografia, Coco de Roda, o elogio da festa, gravado ao vivo em Olinda em 1996 e, após masterização na Bélgica, ficou pronto em 1999. Em 2000, o filho Zezinho fez a produção geral e direção musical do disco Jangadeiro. Outro trabalho é Raízes da cultura, gravado em Olinda e lançado em 2003. Dona Selma: bodas de ouro em coco, com faixa multimídia, foi gravado e produzido entre 2008 e 2009. Há, ainda, a registrar a participação em várias coletâneas. Todos os discos são independentes, sempre sob a coordenação do incansável Zezinho, à época único filho vivo, lamentavelmente falecido em abril de 2010.
Dona Selma nos deixou em 9 de maio de 2015, e, como principal legado, a sua contribuição para a consolidação do coco como referência da nossa identidade.
Fonte: Amorim, Maria Alice (2014), Patrimônios Vivos de Pernambuco; 2. ed. rev. e amp – Recife: FUNDARPE
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