Por Leonardo Davino*
terça-feira, 12 de maio de 2020
LENDO A CANÇÃO
Tempo de estio
Para Eduardo Diniz
"Trovoou truz, dava vento. E chuvas que minha língua lambeu. Nelas mais não falo. Mas, quando estiou o tempo, de vez, não sei se foi melhor: porque bateu de começo a fim dos Gerais um calor terrível", diz Riobaldo a certa altura de Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.
Estio é a estação (ou período) intermediaria à primavera (brisa e chuva) e ao outono, ou seja, o verão (estiagem ou período de seca). Na canção "Tempo de estio", de Caetano Veloso, do disco Muito (1978), o sujeito joga com os significantes da palavra estio, a fim de plasmar um estado-de-si.
É no tempo de estio que as meninas (quentes: carne dura) do Rio de Janeiro, objetos do querer do sujeito da canção, surgem como promessas de felicidade. Alias, não é a toa que a palavra felicidade é citada na letra da canção. Diferente da alegria-instante, a felicidade quer durar. Dura: supera, soma e equaliza as alegrias e as dores todas para se constituir.
Anos mais tarde, em parceria com Jorge Mautner, Caetano Veloso compôs "Tarado" que, de certo modo, amplia a cena de "Tempo de estio", ao dizer: "Gosto de ficar na praia deitado com a cabeça no travesseiro de areia, olhando coxas gostosas por todo lado, das mais lindas garotas, também das mais feias, porque são todas gostosas e sereias pro meu olhar de supremo tarado".
Esta postura diante da paisagem do Rio trás a preguiça (ficar deitado), que é reforçada pela melodia (ritmada, porém sem desvios bruscos) da canção "Tempo de estio". Preguiça diante da beleza da cidade (e de suas meninas), coração do sujeito.
O querer (comer / mamar / preguiça / querer / sonhar) é condensado e personificado. It's rainning women: Solanges, Leilas, Flávias, Patrícias. Esta chuva chove no tempo de estio. Interessante é perceber, a título de exemplos da verve poética do sujeito de Caetano que: "sol" está em "Solange"; e "mar" está em "Marina" - proliferando os signos do verão na cidade da beleza das garotas de Ipanema.
***
Tempo de estio
(Caetano Veloso)
Quero comer
Quero mamar
Quero preguiça
Quero querer
Quero sonhar
Felicidade
É o amor
É o calor
A cor da vida
É o verão
Meu coração
É a cidade
Rio, eu quero
suas meninas
O Rio está cheio de Solanges e Leilas
Flávias e Patrícias e Sônias e Malenas
Anas e Marinas e Lúcias e Terezas
Glórias e Denises e luz eterna Vera
Rio, tempo de estio
Eu quero suas meninas
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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