terça-feira, 5 de maio de 2020

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




O que será

Lançada por Chico Buarque em 1976, para a trilha sonora do filme Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto, a canção "O que será" recebeu uma contundente e passional interpretação da cantora Simone, no ano seguinte.
De fato, a canção já rendeu algumas boas interpretações, sempre investindo na interioridade do sujeito que fala. A propósito, há mais de uma versão para a letra de "O que será". No livro Histórias de canção: Chico Buarque, Wagner homem reúne as três com seus subtítulos "Abertura", "À flor da pele" e "À flor da terra".
Em 2008, o trompetista alemão Till Bronner reuniu um belo repertório no disco inteiramente dedicado ao Brasil: Rio. Entre os convidados brasileiros aparecem Milton Nascimento, Sergio Mendes, Luciana Souza e Vanessa da Mata.
Coube a Vanessa cantar, de modo elegante e voz bem colocada, "O que será (à flor da terra)". Sem a densidade dramática das gravações anteriores, a canção envereda pelo embalo gostoso da melodia jazzística, mas com um q de bolero. Este arranjo híbrido dá novas direções à letra.
A delicadeza da voz de Vanessa da Mata encontra na suavidade do trompete de Bronner o parceiro perfeito para cantar o enigma do sujeito: a pergunta sem resposta, eternamente e desde sempre cantada pelos poetas mais delirantes, jurada pelos profetas embriagados e que vive nas ideias dos amantes.
O sujeito canta a irresistibilidade disso: daquilo "que todos os avisos não vão evitar"; de algo tão sagrado e tão profano, tão intensamente leve e arrebatador - suspensor do juízo; tão esperado e tão temido por todos. Mas o que será isto sem nome ou figura que nos comove?
O sujeito dá pistas: está na natureza, está no dia-a-dia das meretrizes. Só cabe a ele circular (espalhar metáforas ao redor) esta coisa neutra e abstrata. A ele também é negado o acesso direto a isso sem decência e sem censura que, ao longo da canção, vai invadindo o ouvinte: impregnando pele e terra de desejo.


***

O que será
(Chico Buarque)

O que será que será
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
Que gritam nos mercados que com certeza
Está na natureza será, que será
O que não tem certeza nem nunca terá
O que não tem concerto nem nunca terá
O que não tem tamanho

O que será que será
Que vive nas idéias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está nas fantasias dos infelizes
Que está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos, será, que será
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido

O que será que será
Que todos os avisos não vão evitar
Porque todos os risos vão desafiar
Porque todos os sinos irão repicar
Porque todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E mesmo padre eterno, que nunca foi lá
Olhando aquele inferno, vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo





* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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