sábado, 16 de maio de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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Carlos Cachaça

“Alvorada lá no morro, que beleza
ninguém chora, não há tristeza
ninguém sente dissabor
o sol colorindo é tão lindo, é tão lindo
e a natureza sorrindo, tingindo, tingindo
(a alvorada)”
CARLOS CACHAÇA, CARTOLA e
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO, “Alvorada”

Carlos Cachaça foi o introdutor de Cartola no samba e na malandragem. Conheceram-se em 1922, e três anos depois fundaram juntos o Bloco dos Arengueiros, precursor da Mangueira, da qual também foram pioneiros. Suas parcerias incluem clássicos do repertório do samba: “Alvorada”, também com o poeta Hermínio Bello de Carvalho, “Não quero mais amar a ninguém”, que inclui Zé da Zilda na parceria, “Quem me vê sorrindo”, “Vale do São Francisco”, “Todo amor”, “Tempos idos” e muitas outras.
Assim como Paulo da Portela teve seu nome adaptado para se diferenciar de outros “paulos” do pedaço, Carlos Moreira de Castro ganhou o apelido de Carlos Cachaça aos 17 anos de idade, na casa do tenente Couto – local de reunião musical onde também cortejava-se a bela filha do oficial bombeiro –, para diferenciá-lo de outros “carlos” que gostavam menos da purinha. Carlos Cachaça chegou à Mangueira antes de a Mangueira existir. Em todas as entrevistas que deu, sempre frisou que foi o compositor Elói Antero Dias que levou o samba para lá. Antes era só marcha-rancho. Depois o samba passou a acontecer na casa de Tia Fé e espalhou-se pelo Buraco Quente, morada de toda a sua vida.
Já como uma das referências do samba de morro, Carlos Cachaça compôs em 1934, para sua Mangueira, “Homenagem”, o primeiro samba que fazia alusões a personagens da história do Brasil. Sua forte veia poética levou-o a publicar um livro só de poesias e letras, lançado pela Funarte. Aliás, a própria Academia Brasileira de Letras exaltou a qualidade dos seus versos em “Não quero mais amar a ninguém”: “semente de amor, sei que sou, desde nascença...”.
Apesar da forte ligação com o mundo do samba e de suas primorosas composições, Carlos Cachaça passou praticamente anônimo pela Época de Ouro do rádio. Exceção à regra foi Araci de Almeida, que gravou a sua “Não quero mais...”. No ano de 1968, com Clementina de Jesus, Odete Amaral, Cartola e Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça participou, na Odeon, do LP Fala, Mangueira. Suas músicas incluídas eram: “Tempos idos”, “Alvorada”, “Quem me vê sorrindo” e “Lacrimário”. Só em 1976 gravaria o primeiro e único disco solo de sua carreira. Isso é ainda mais impressionante quando lembramos que se trata do fundador da Mangueira, parceiro de Cartola, criador de sambas-enredos históricos e vitoriosos e organizador da primeira ala de compositores de que se tem notícias.
O aniversário de 96 anos de “seu Carlos” foi um momento histórico: todo de branco, no centro do palco, assistia ao show apresentado por Guilherme de Brito e Nelson Sargento. A Velha Guarda da Mangueira trouxe inúmeros convidados à Cantareira, em Niterói: Luiz Melodia, João Nogueira, Chamon, Luiz Carlos da Vila, Pedro Amorim, Wilson Moreira, Moacy r Luz, Zé Kéti, Hermínio Bello de Carvalho, Paulo César Pinheiro, Cristina Buarque, Darci da Mangueira, Walter Alfaiate, Dorina e Dona Ivone Lara emocionaram e alegraram a noite, com mais de dois mil presentes. Foi a última grande homenagem ao seu Carlos, que poucos anos depois partiu para continuar a parceria com Cartola no céu. Seu nome virou poesia, no samba de Moacy r Luz e Aldir Blanc: “É tão bonito/ ver um sambista transformar-se em dança/ de ramos verdes onde o vento e a sombra/ transmitem aos filhos sua herança...”


Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito

“Quando eu piso em folhas secas
caídas de uma mangueira
penso na minha escola
e nos poetas da minha Estação Primeira
Não sei quantas vezes
subi o morro cantando
sempre o sol me queimando
e assim vou me acabando...”
GUILHERME DE BRITO e NELSON CAVAQUINHO, “Folhas secas”


Para que o amigo leitor conheça um pouquinho melhor a figura de Nelson Cavaquinho, eis um breve roteiro de algumas de suas estripulias etílicas. Depois de mergulhar muito jovem na boemia carioca, ouvindo os choros e sambas pela madrugada, Nelson foi forçado pelo pai a se casar e arrumar um emprego na guarda da cavalaria da Polícia Militar. Isso lá pelos idos de 1932.
Seu Brás mal podia imaginar que a estabilidade financeira que havia arrumado para o filho notívago o levaria de vez para o caminho do samba e da boemia. A função de Nelson Cavaquinho era patrulhar os botecos dos morros, o que fazia com inegável eficiência, pois conversava e bebia com o arruaceiro até tudo se acalmar. O “bom” policial Nelson acabou se entrosando com Zé da Zilda, Cartola e Carlos Cachaça.
Conciliar o emprego na polícia com a vida de sambista foi ficando cada vez mais difícil. A gota d’água aconteceu num dia em que Nelson cumpria sua rotina de amarrar o cavalo ao pé do morro e subir para rodas de samba das quais só saía pela manhã. Ao voltar, não encontrou o cavalo, que havia se soltado e voltado para o quartel. O policial Nelson pediu baixa em 1938, com 27 anos, e a partir daí passou a viver somente de música, vendendo sambas regularmente.
Dedilhando o cavaquinho com apenas dois dedos, Nelson aprendeu a tocar o instrumento observando por horas a fio os chorões que executavam infindáveis variações em torno da linha melódica. Daí seu repertório incluir choros como “Gargalhada”, “Queda”, “Nair” e “Caminhando”.
Mas sua praia musical seria mesmo o samba. Foi com ele que Nelson Cavaquinho expressou toda sua poesia, em suas letras melancólicas e céticas, demarcando um campo muito particular no seio da música popular. Nelson teve muitos parceiros, e muitas músicas foram vendidas sem levar seu nome. A mais importante das parcerias foi certamente com Guilherme de Brito. Era uma dupla de compositores de amargo lirismo, voltada para as pequenas tragédias do cotidiano e para o caráter efêmero da vida.
Guilherme de Brito conheceu Nelson na década de 1940. Trabalhava na Casa Edison e já compunha seus sambas. Músicas de sua autoria, como “Meu dilema” e “Audiência divina”, haviam sido gravadas por Augusto Calheiros. Mas a rigidez do emprego não permitia que o menino nascido no musical bairro de Vila Isabel tivesse uma vida boêmia e construísse maiores relações no meio artístico. O encontro com Nelson mudaria o rumo dessa história.
“Conheci Nelson tocando nos botequins de Ramos. Logo nos tornamos parceiros. Ele me fez jurar fidelidade musical e chegou a querer registrar o nosso trato em cartório, mas o funcionário riu e disse que era impossível fazer isso”, lembra Guilherme.10 A dupla produziu letras eternas, de profunda poesia sobre a morte, a dor e a saudade: “Quando eu me chamar saudade”, “Minha festa”, “Folhas secas”, “Cinzas”, “Depois da vida” e “Pranto do poeta” são apenas algumas delas.
O êxito da parceria com Nelson despertou o interesse de alguns cantores por antigas composições de Guilherme. É o exemplo de “Quando as aves emigram” e “Palavras”, feitas com Leduvi de Pina e gravadas por Orlando Silva em 1959. Mas sua poesia mais marcante na MPB foi mesmo fruto das parcerias com Nelson Cavaquinho, como as letras dos sambas “A flor e o espinho” (“Tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor...”), “Quando eu me chamar saudade” (“Sei que amanhã, quando eu morrer/ os meus amigos vão dizer/ que eu tinha um bom coração...”) e “Degraus da vida” (“Sei que estou/ no
último degrau da vida, meu amor/ já estou envelhecido, acabado...”).


Nelson Sargento

“Samba
agoniza mas não morre
alguém sempre te socorre
antes do suspiro derradeiro
Samba
negro forte destemido
foi duramente perseguido
na esquina, no botequim, no terreiro...”
NELSON SARGENTO, “Agoniza mas não morre”


Hoje o comunicativo Nelson Sargento é a continuação dessa estirpe verde-e-rosa na cultura musical carioca. Na casa dos 80 anos, Nelson mantém viva outras duas tradições do reino do samba: a do sambista-pintor e a do sambista-ator. Nelson Sargento foi morar em Mangueira ainda criança. Criado por Alfredo Português, figura respeitada no morro e no mundo do samba, o rapazola logo foi tomando gosto pela música e em pouco tempo aprendia violão com Aloísio Dias, Cartola e Nelson Cavaquinho, tornando-se parceiro do padrasto lusitano.
Quando deu baixa no Exército, Nelson acoplou ao seu nome a patente de sargento. Isso por volta de 1948, quando já fazia parte da ala de compositores da Mangueira, levado que foi pela boa lábia do compositor Carlos Cachaça (sempre ele!). Nesse mesmo ano, ao lado de Alfredo Português, a Mangueira apresenta seu samba-enredo “Vale do São Francisco”, obtendo o quarto lugar no desfile. Sete anos depois, com Jamelão e o mesmo Alfredo, compôs “Cântico à natureza”, samba que levou a Mangueira ao segundo lugar e é considerado um dos mais belos da história da escola. A partir de então projetou-se no mundo do samba, sendo convidado para shows e novas parcerias.
A adoração que Nelson Sargento desenvolveu pela Mangueira fez com que ele utilizasse sua extraordinária memória para recuperar dezenas de sambas cujo estilo influiu em sua obra. Não foi à toa que resgatou letras de Cartola que mesmo o Divino não lembrava de haver composto. Lançou o CD Inéditas do mestre Cartola, incluindo o samba “Velho Estácio”, de 1930, ao qual acrescentou a segunda parte.
Depois de ser presidente da ala de compositores da Mangueira, afastou-se da escola em 1962. Integrou nos agitados anos 60 o musical Rosa de Ouro, oriundo das reuniões musicais que ocorriam no Zicartola, e participou do conjunto A Voz do Morro, organizado por Zé Kéti após o fim da temporada do Rosa de Ouro. Fez parte também do grupo Os Cinco Crioulos.

Condecorado com a medalha Pedro Ernesto, Nelson Sargento vem realizando exposições de suas pinturas primitivas desde 1982. Participou também como ator, chegando a ganhar prêmios, dos filmes Perdi minha cabeça na linha do trem, Nelson Sargento no morro da Mangueira, ambos de Estevão Pantoja, Contagem regressiva, de Walter Salles Júnior, e Orfeu do Carnaval, de Cacá Diegues. O homem não pára. Claro que sua principal criação são as composições, de que são belos exemplos “Agoniza mas não morre”, “Vai dizer a ela”, com Carlos Marreta, “Berço de bamba”, e “Nas asas da canção”, com Dona Ivone Lara, entre muitas outras.




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