sábado, 2 de maio de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

Resultado de imagem para ALMANAQUE DO SAMBA


O pós-30: as escolas de samba


O legado que blocos, ranchos, cordões e sociedades deixaram para a história das escolas de samba é muito claro. Podemos até dizer que as escolas são uma síntese de todos esses movimentos carnavalescos: o enredo, os grandes carros alegóricos, as alas, a instrumentação, a beleza, o mestre-sala e a porta-estandarte, as mulheres bonitas...

A imprensa escrita foi fundamental na promoção das primeiras apresentações das escolas de samba. O pesquisador da MPB Sérgio Cabral afirma que quem inventou o desfile foi o jornalista Mário Filho. Personagem símbolo da crônica esportiva no Brasil (dando seu nome para o estádio do Maracanã), Mário promoveu, em 1932, através do jornal Mundo Esportivo, o que se convencionou chamar de primeiro desfile das escolas.
O desfile ocorreu na Praça Onze, espaço ocupado em grande parte pela população afrodescendente. Local de convívio democrático de indivíduos de várias procedências, fica no centro da região que reúne as áreas do morro da Favela, morro de São Carlos, Rio Comprido, Catumbi, Cidade Nova, Estácio de Sá, Saúde, Gamboa, Santo Cristo etc. Também é de fácil acesso para os moradores da Zona Norte, pois localiza-se ao lado da Central do Brasil. Ainda sem o prestígio que teriam no futuro, 19 escolas de samba participaram do pioneiro desfile de 1932. Entre as cinco primeiras estavam Mangueira, Vai como Pode (futura Portela) – empatada com Linha do Estácio –, Para o Ano Sai Melhor e Unidos da Tijuca. A Mangueira começava aí sua caminhada vitoriosa como a escola mais popular do Brasil. Os governos, em suas diversas esferas públicas, logo perceberam que o carnaval era um caminho privilegiado de interlocução direta com o povo.
Passaram então a incentivá-lo, construindo em conjunto com as escolas e seus representantes uma modalidade midiática de expressão popular. Em apenas algumas décadas, o carnaval das escolas – que nasceu na Praça Onze e passou pelas avenidas Rio Branco e Presidente Vargas – chegaria, nos anos 1980, a ter sua própria casa para o espetáculo: o Sambódromo, imagem do carnaval contemporâneo, globalizado, projetado pela genialidade de Oscar Niemeyer.
Os sambistas do morro e dos subúrbios Quase toda a musicalidade das escolas de samba que veremos a seguir é oriunda da forte influência dos negros na cultura musical carioca. Esses negros, vindos do declínio das fazendas de café no Vale do Paraíba, diferenciavam-se daqueles que formaram, na Cidade Nova, uma das raízes da música popular carioca. Eram rurais e paupérrimos, e chegavam ao Rio de Janeiro por estradas de ferro, fazendo moradia nos subúrbios e morros mais próximos – formando as incipientes favelas. Praticamente todos os compositores das escolas de samba têm essa origem, sendo cultores das religiões rurais, do jongo e da nascente macumba carioca. Enquanto os afrodescendentes da Cidade Nova tocavam choro, maxixe, tango e polcas, mostrando habilidade e virtuosismo em seus instrumentos de corda e sopro, os negros que ocuparam os morros e as áreas rurais distantes eram mais limitados do ponto de vista técnico, porém mais ricos na inventiva poética e linha melódica.
Macumba e samba andavam juntos nesses novos espaços socioculturais.
Todos os patriarcas do samba – da Mangueira, da Portela, da Unidos da Tijuca, do Prazer da Serrinha e de outras escolas pioneiras – afirmavam que “samba e macumba era tudo a mesma coisa”. Na Mangueira, no final dos anos 1920, cantava-se assim: “Fui a um samba/ na casa da Tia Fé/ de samba virou macumba/ de macumba, candomblé...”
A favela e o morro foram, no decorrer do século XX, emblematicamente associados ao universo de surgimento do samba, o local da pureza, da fonte de inspiração dos compositores. É a difusão e solidificação de uma visão mitológica sobre a origem do samba que vai suplantando o pioneirismo da Cidade Nova. Samba e favela (morro) popularizaram-se quase como sinônimos socioculturais.
Não houve, até o início da década de 1980, nenhum ritmo que ocupasse esse espaço (só depois o funk ganhou força). E os próprios sambistas, fossem eles do asfalto ou do morro, ajudaram na construção de tal identificação. Em trechos de sambas feitos entre as décadas de 1920 e 1950 pode-se perceber rapidamente essa construção:

1928: Sinhô, compositor ainda ligado à Cidade Nova: “Isso deve ser despeito dessa gente/ porque o samba não se passa para ela/ porque lá o luar é diferente/ não é como o luar que se vê desta favela!” – “A favela vai abaixo”;



Favela


Na América hispânica, a favela é conhecida como “población callampa” e “villa miséria”, entre outros nomes. No Brasil, o termo popularizou-se no início do século XX, após o retorno dos soldados que foram lutar no conflito de Canudos. Estes haviam convivido, no sertão nordestino, com um arbusto local, o faveleiro – mais popularmente, favela. Quando voltaram, os soldados receberam recursos para instalar-se em casa própria no Rio de Janeiro. Foi nas abas do morro da Providência que eles fizeram suas moradias – logo, por analogia, chamaram-no de “favela carioca”.
O nome foi designando outros conglomerados humanos semelhantes, e a favela passou a ser a residência de pessoas mais humildes nos morros cariocas. Por sinal, foi o local de construção mitológica do samba, puro, de raiz, a partir dos anos 20 do século passado. Padeirinho (com Jorginho) homenageou-a com propriedade em seu samba sincopado “Favela”: “Numa vasta extensão/ onde não há plantação/ nem ninguém morando lá/ cada um pobre que passa por ali/ só pensa em construir seu lar/ E quando o primeiro começa/ os outros, depressa, procuram marcar/ seu pedacinho de terra pra morar/ E assim a região sofre modificação/ fica sendo chamada de nova aquarela/ É aí que o lugar então passa a se chamar/ favela...”

1934: Do baiano Assis Valente: “E o violão deixou o morro/ e ficou pela cidade/onde o samba não se faz” – “Minha embaixada chegou”;

1941: Do ator Grande Otelo e do compositor Herivelto Martins: “Chora o morro inteiro/ Favela, Salgueiro/ Mangueira, Estação Primeira/ guardai os vossos pandeiros, guardai/ porque a escola de samba não sai” – “Praça Onze”;
1953: Dos compositores Manezinho Araújo e Dozinho: “Salgueiro é lar feliz de gente bamba/ na batucada é o primeiro/ salve o Salgueiro/ quartel-general do samba/ (eu vou pra lá)” – “Salgueiro mandou me chamar”. 

Sem esquecer, é claro, entre as centenas dos que não foram citados, o emblemático “A voz do morro” de Zé Kéti: “Eu sou o samba/ a voz do morro sou eu mesmo sim senhor, quero mostrar ao mundo que tenho valor...” Sedimentada a favela como local do samba, agora é hora de mostrar a grandiosidade das escolas, com suas histórias e personagens.


Deixa Falar, primeira bossa nova do samba
“A primeira escola de samba
surgiu no Estácio de Sá
eu digo isso e afirmo
e posso provar
porque existiam naquele tempo
os professores do lugar,
Mano Nilton, Mano Rubens e Edgar
ainda outros que eu não quero falar...”
PEREIRA MATOS e JOEL DE ALMEIDA, “Primeira escola de samba”


A Deixa Falar é tida como a primeira escola de samba de que se tem notícia. Na realidade era um bloco carnavalesco criado no dia 12 de agosto de 1928 no bairro carioca Estácio de Sá. Como havia ali pelas imediações do largo do Estácio uma escola normal, resolveram batizar o bloco de “escola de samba”, visto que formaria professores do gênero. E o “corpo docente” da casa era de primeira: Bide, Heitor dos Prazeres, Mano Edgar, Mano Aurélio, Nilton Bastos, Armando Marçal, Baiaco, Brancura e Ismael Silva.

O tipo de samba apresentado pelos compositores do Estácio marcou definitivamente o perfil do gênero nas décadas seguintes. Esse samba batucado, sem a influência orquestral característica do maxixe e com temática da malandragem, aos poucos ganharia terreno nas ondas do rádio, mas com introdução instrumental, sem improvisação na segunda parte (era hábito o sambista criar a primeira parte e vários outros inserirem a segunda), e com temas de interesse geral (em detrimento dos assuntos da malandragem). 
Segundo o crítico musical Roberto M. Moura, “com a entrada em cena desse pessoal do Estácio, já no fim da segunda década do século XX, acentuou-se o que Carlos Sandroni chama de ‘tendência à contra metricidade’, isto é, uma valorização diferenciada do andamento e das alterações nos tempos fortes de cada composição – que nada mais é senão a síncopa. Esse paradigma contra métrico configura, em opinião de Sandroni acompanhada por inúmeros outros pesquisadores, uma ‘africanização dos modelos mais exercitados por aquela que seria a segunda geração do samba’.” Estava definido, claramente, um “novo” samba bem distinto do maxixe e da cadência do lundu.







* A presente obra é disponibilizada por nossa equipe, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

0 comentários:

LinkWithin