sábado, 30 de maio de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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Candeia

“De qualquer maneira,
meu amor, eu canto
de qualquer maneira,
meu encanto, eu vou sambar...”
CANDEIA, “De qualquer maneira”

Desde muito cedo Candeia freqüentava rodas de samba e de choro. Seu pai, além de tipógrafo, era flautista e amigo de bambas como João da Gente, Paulo da Portela e Zé da Zilda. Além das rodas de capoeira e terreiros de candomblé, Candeia também freqüentava a escola de samba Vai como Pode, que, algum tempo depois, daria origem à Portela.
Ainda muito menino começou a compor, e em 1953, aos 17 anos, um samba seu em parceria com Altair Marinho, “Seis datas magnas”, levou a Portela ao primeiro lugar no carnaval, conseguindo notas máximas em todos os quesitos. Foi o primeiro de muitos sambas vitoriosos, todos tendo Waldir 59 como parceiro. A Portela foi campeã com seus sambas nos anos de 1955, 1956, 1957, 1959 e 1965. Com 22 anos, Candeia entrou para a Polícia Civil e começou a trabalhar como investigador, sem imaginar que essa função abriria caminho para a tragédia que abalaria sua vida. Conta-se que em uma ocasião, ao bater numa prostituta, esta teria rogado uma praga para Candeia. Coincidência ou não, fato é que na noite seguinte, em meio a um acidente de carro, ele saiu atirando e acabou levando um tiro que o deixou preso a uma cadeira de rodas até o fim da vida.
Esse revés se refletiu em suas composições. Sambas como “Peso dos anos” e “Pintura sem arte” são só alguns exemplos de sua relação com a deficiência. A partir daí começou a ficar recluso, não saía de casa e também não recebia visitas. Amigos como Martinho da Vila o trouxeram de volta ao samba e à vida. Tempos depois, dizia ele num samba: “De qualquer maneira, meu amor, eu canto/ de qualquer maneira, meu encanto, eu vou sambar”.
Voltando às rodas de partido-alto, Candeia se tornou também uma das expressões máximas da defesa da cultura negra no Brasil, em sambas como “Dia de graça”. Nos anos 1960, criou o grupo Mensageiros do Samba, que se apresentava no Zicartola, e participou do movimento de revitalização do samba realizado pelo Centro Popular de Cultura, o CPC da UNE.
Em 1975, por discordar dos rumos que o samba das escolas estava tomando, fundou o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, ao lado de parceiros como Wilson Moreira e Nei Lopes. Foi o primeiro presidente do conselho deliberativo da nova escola, inicialmente com sede em Rocha Miranda, mudando-se depois para Coelho Neto, bairros do subúrbio carioca. O Quilombo nasceu na mesma época em que Candeia, em parceria com Isnard, publicou o livro Escola de samba, árvore que esqueceu a raiz.
Foi nesse período que Clara Nunes gravou um samba de sua autoria que fez muito sucesso, “O mar serenou”, e que Candeia gravou um disco antológico, “Os quatro grandes do samba”, ao lado de Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito.
O ano de 1978 é manchado de tristeza pela morte de Candeia, mas é marcado também pela gravação do LP Axé, considerado por muitos sambistas e pesquisadores de nossa cultura um dos mais importantes da história de nosso samba.
Na segunda metade dos anos 1990, Candeia voltou a ser lembrado nas vozes de dois grandes nomes do samba. Martinho da Vila gravou em seu CD Tá delícia, tá gostoso um pot-pourri chamado “Em memória de Candeia”, que tinha as faixas “Dia de graça”, “Filosofia do samba”, “De qualquer maneira”, “Peixeiro grã-fino” e “Não tem veneno”. E Zeca Pagodinho incluiu no CD Deixa clarear um samba com a marca de Candeia, composto por Alcides Malandro Histórico, “Vivo isolado do mundo”.
Candeia, como dizem amigos e críticos, foi o Zumbi dos terreiros cariocas, desbravando caminhos e lutando pelo orgulho negro. E hoje, nas rodas de partido-alto, seguimos o pedido feito por ele em “Testamento de partideiro” e rezamos por ele sempre sambando. “A chama não se apagou/ nem se apagará/ És luz de eterno fulgor, Candeia/ O tempo que o samba viver/ o sonho não vai acabar/ e ninguém irá esquecer, Candeia...”, diz o compositor Luiz Carlos da Vila sobre o mestre, parceiro e amigo, na música “O sonho não se acabou”.


Paulinho da Viola

“Se um dia meu coração for consultado
para saber se andou errado
será difícil negar
Meu coração tem mania de amor
amor não é fácil de achar
a marca dos meus desenganos ficou, ficou
só um amor pode apagar”
PAULINHO DA VIOLA, “Foi um rio que passou em minha vida”



“Antigamente era Paulo da Portela, agora é Paulinho da Viola.” É assim que Monarco saúda em forma de samba os dois maiorais da Portela: Paulo, de que falamos antes, e Paulinho, o menino tímido que virou padrinho da Velha Guarda da escola e compôs o samba de maior sucesso e marca da identidade da Azul-e-branco de Oswaldo Cruz: “Foi um rio que passou em minha vida, e meu coração se deixou levar...”
Esse samba redimiu uma certa “boa mágoa” que a escola guardou de seu ilustre compositor. Tudo ocorreu porque o poeta Hermínio Bello de Carvalho, que apresentou Paulinho ao grupo do Zicartola e acabou por se tornar seu amigo e parceiro, pediu a Paulinho que colocasse melodia em uma poesia que havia feito para sua escola do coração, a Mangueira. Letra de Hermínio, música de Paulinho, uma pitada de sentimento e inspiração, só poderia ter dado na criação de um verdadeiro poema da Verde-e-rosa, “Sei lá, Mangueira”. O pessoal de Owaldo Cruz ficou com ciúmes, e Paulinho se redimiu ao compor o belo samba que se tornou um clássico portelense.
Por falar em Zicartola, foi ali que Paulo César Baptista de Faria aproximou-se da música de Cartola, ganhou seu nome profissional e recebeu seu primeiro cachê, entregue pelo próprio Divino. Cartola era um deus para o mundo do samba. E não foi diferente para Paulinho. Músicas do mestre, como “As rosas não falam”, passaram a influenciar diretamente o jovem que freqüentava o sobrado na rua da Carioca acompanhando sambistas como Nelson Cavaquinho, Ismael Silva, Guilherme de Brito, Carlos Cachaça e Zé Kéti. Certo dia, Cartola virou-se para ele e disse:
“Paulo, você está vindo aqui, usando seu tempo para tocar e não está ganhando nada. Tome aqui um dinheiro pra ‘passagem’. ” Era o primeiro cachê que o músico Paulo César recebia.
Foi também no Zicartola que ele virou Paulinho da Viola. Conversando com o jornalista Sérgio Cabral, Zé Kéti ficou encantado com a musicalidade do garoto, sua voz terna e afinada e seu violão bem tocado, mas o nome Paulo César não combinava com sambista.
– Que tal Paulo da Viola?, indagou Zé Kéti, talvez inspirado em Mano Décio da Viola, veterano compositor do Império Serrano.
– Paulinho... Paulinho da Viola é melhor, completou Sérgio. Zé Kéti, sambista portelense já reconhecido no mundo do samba, foi um dos grandes incentivadores do compositor e cantor Paulinho da Viola. Ao que Paulinho correspondeu com raro talento. Mas esse talento de um compositor antenado que ouvia as harmonias e melodias de diversas tendências da música brasileira tinha duas influências musicais cristalinas em sua formação: o samba e o choro.
Paulinho da Viola é filho de César Faria, violonista do antológico grupo de choro Época de Ouro, fundado por Jacob do Bandolim. A casa do menino Paulo era portanto o reduto de chorões e sambistas, visto que muitos instrumentistas de choro acabavam tocando com renomados cantores ou compositores de samba. Sua formação de violonista e cavaquinista se deu executando o que há de melhor na linhagem dos dois gêneros.
É aí que entra a diferença da obra de Paulinho. Ele bebe na tradição da musicalidade carioca, mas se manteve sempre antenado às novidades de seu tempo, um mundo pós-bossa nova e tropicalista. Ouve música clássica, jazz, canção sertaneja, Tom Jobim. Sua harmonia é requintada, ao passo que suas letras aproximam-se da poesia moderna. Parece mesmo que usa a paciência e a disciplina adquiridas no hábito de marceneiro para construir cada pedacinho de sua música. O som dos choros e dos sambas que compõem a obra de Paulinho é dos mais vultosos das últimas décadas.
Seus dois LPs lançados em 1976, Memórias 1 – Cantando e Memórias 2 – Chorando, são marcos na discografia brasileira. O crítico da época no Jornal do Brasil, José Ramos Tinhorão, chegou a dizer: “Após alguns anos de carreira, qualquer cantor, músico ou compositor começa a pensar seriamente na possibilidade de produzir pelo menos um disco perfeito. Pois Paulinho da Viola acaba de conseguir dois – de uma vez!”
Nos dois discos, um de samba e outro de choro, estão algumas das obras-primas do compositor: “Coisas do mundo minha nega”, “Perdoa”, “Vela no breu”, com Sérgio Natureza, “O velório do Heitor”, “Rosinha, essa menina”, “Choro de memórias”, entre outros. E sempre há espaço para os compositores tradicionais, uma marca de Paulinho que Zeca Pagodinho também cultiva: “Nova ilusão”, de Claudionor Cruz e Pedro Caetano, “Pra que mentir?”, de Noel Rosa e Vadico, “Chorando”, de Ary Barroso, além de composições de Pixinguinha e Benedito Lacerda.
Paulinho da Viola tornou-se uma grande referência na história da música brasileira. Seu trabalho foi reconhecido em 1992 com o Prêmio Shell pelo conjunto de obra. Em 1996, Paulinho estreou o show Bebadosamba, que acabou lançado em CD duplo. Encontramos aí sua história, seus amigos, seus parceiros, suas músicas e muito de sua vida.
O começo do novo milênio trouxe boas novidades para o sessentão Paulinho.
O escritor e jornalista João Máximo lançou um livro sobre sua vida, e Isabel Jaquaribe dirigiu, com sucesso nacional, o filme Meu tempo é hoje, em que retrata a vida de Paulinho e sua amistosa relação com o tempo. O roteiro é do jornalista Zuenir Ventura.
É, Paulo, seu tempo virou história.


Monarco e a Velha Guarda da Portela

Aos seis anos de idade, Hildemar Diniz recebeu o apelido de Monarco. Criado em Oswaldo Cruz, desde menino ia às rodas de samba, freqüentadas por bambas como Paulo da Portela.
Só estudou até o terceiro ano primário, mas começou cedo, aos 11 anos, sua carreira de compositor. Desde 1950 faz parte da ala de compositores da Portela, onde teve como um dos principais parceiros o compositor Alcides Malandro Histórico.
Na década de 1960, saiu da Portela e foi para a Unidos do Jacarezinho.
Depois de alguns anos voltou para a Azul-e-branco e passou a fazer parte da Velha Guarda da escola. Monarco tem dois filhos que vêm se destacando no mundo do samba: Marcos Diniz, que faz parte do Trio Calafrio, e Mauro Diniz, um dos sambistas mais conceituados atualmente.
Os sambas de Monarco fizeram e fazem sucesso nas vozes de Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Roberto Ribeiro, João Nogueira, Clara Nunes, Maria Creuza e Zeca Pagodinho. Certa vez o pesquisador Sérgio Cabral chamou Monarco de historiador do samba, porque vários personagens históricos da Portela e de outras escolas ficaram imortalizados em suas composições. Sua linha melódica dolente, inspirada em sambas de terreiro, é acompanhada por sua voz grave, num estilo que lembra muito os sambistas de morro. São dele as pérolas “Quitandeiro”, com Paulo da Portela, “Lenço”, com Chico Santana, “Passado de glória”, “Tudo menos amor”, com Walter Rosa, “Coração em desalinho” e “Vai vadiar”, com seu mais constante parceiro, Ratinho de Pilares.
A voz do samba – título de um disco seu, mas que também pode perfeitamente lhe servir de alcunha – assumiu o comando da Velha Guarda da Portela após a morte de Manacéia, outro ícone da escola. Monarco fez parte do grupo criado em 1970 por Paulinho da Viola a fim de registrar as composições de portelenses históricos. A Velha Guarda lançou um LP no mesmo ano, Portela, passado de glória. Era integrada, no início, por Chico Santana, Alcides Dias Lopes, Ventura, Aniceto, Alberto Lonato, Monarco, Mijinha, Vicentina, Iara, Armando Santos, Cláudio, Antônio Caetano, João da Gente e pelo líder, Manacéia.
A valorização dos compositores históricos das escolas de samba ganhou lastro, e Império Serrano, Mangueira, Salgueiro, entre outras, também passaram a organizar os seus tradicionais sambistas.




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