segunda-feira, 8 de outubro de 2018

CARLOS RENNÓ E A DIFUSA DIVISÃO ENTRE POEMA E LETRA DE MÚSICA

Disco reúne 16 canções assinadas pelo escritor paulista

Por José Teles


Carlos Rennó: Poesia


Letra de música pode não ser um poema, mas um letrista pode ser tão grande quanto um poeta. Ambos trabalham palavras e lhes dão um formato em que a beleza é servida. O que diferencia um de outro é que a letra precisa da música para ser apreciada. O poema independe da melodia, embora alguns também a aceitem. Mas os tempos estão mudando. Bob Dylan, um letrista, ganhou o Nobel de Literatura, com uma bibliografia que inclui um impenetrável livro de poemas, uma autobiografia e algumas coletâneas de letras. No Brasil, foi-se mais longe do que na academia sueca, onde se decide o Prêmio Nobel.

A Academia Brasileira de Letras outorgou a imortalidade literária a dois letristas de música popular, o mineiro Geraldo Carneiro e o carioca Antônio Cícero. Já que o conceito de letrista anda tão em alta na ABL, Carlos Rennó, paulista de São José dos Campos, tem tudo para se tornar mais um a tomar o chá com biscoito de polvilho em companhia dos imortais. Ele é um dos mais requisitados, e um dos que estão há mais tempo no ramo. É o que ratifica o álbum Poesia – Canções de Carlos Rennó (Selo Sesc) que apresenta um modesto e panorâmico apanhado das letras de Rennó, musicadas por, entre outros, João Bosco, Lenine, Arrigo Barnabé, Gilberto Gil, Zeca Baleiro ou Chico César. São 16 faixas, metade delas inéditas e interpretadas, em sua maior parte, pelos parceiros de Rennó.

Um disco que se torna oportuno por abrir espaço para uma discussão relevante. Embora canção seja o encontro da letra com a melodia, geralmente se identifica, quase sempre, o dono da melodia, sobretudo se ele é também o intérprete. Até os anos 60, as emissoras de rádio citavam o nome, ou nomes, dos autores da música que executavam. No anos 70, a prática, exigida por lei foi, aos poucos, sendo abandonada. Há muitos anos diz-se, quase sempre, apenas quem é o intérprete.

Assim é que de Escrito nas Estrelas, que ganhou, em 1985, o Festival dos Festivais, promovido pela Rede Globo, um megassucesso nacional, só é atribuído à cantora Tetê Espíndola, ignorando os autores, Arnaldo Black (música) e Carlos Rennó (letra). Exemplos deste desdenho aos autores são inúmeros.

Ele começou a escrever letras há 40 anos, com uma geração que abandonava a “MPB participação”, como era chamada nos anos 60 a música de protesto, com mensagem. Rennó có-assina três faixas do álbum Tetê Espíndola e O Lírio Selvagem (Phillips). É parceiro dos Espíndola, em Caucaia (com Marcelo Espíndola), Na Catarata (com Alzira Espíndola) e Pássaro do Cerrado (com Tetê Espíndola). Na época da Vanguarda Paulistana, o quase movimento surgido em São Paulo no início dos anos 80, foi parceiro constante de Arrigo Barnabé e, mais uma vez, Tetê Espíndola.

As gerações sucederam-se e Rennó engatou parcerias com novos talentos, feito Chico César, e com Lenine, a partir de 1999, no álbum Na Pressão (a faixa Tupy Tupy). O pernambucano torna-se um de seus parceiros mais constantes. No disco Poesia, uma música dos dois, Todas Elas Juntas Num Só Ser, tem tom de celebração, reunindo Ellen Oléria, Felipe Cordeiro, Junio Barreto, Leo Cavalcanti, Pedro Luís, Wilson Simoninha e Lenine.


DISCO

Produzido por Cacá Machado e Gilberto Monte, o álbum reflete o prestígio de Rennó entre músicos e compositores. A lista de participações chega a 27 nomes, entre estes o do compositor Zé Miguel Wisnik, Moska, Luiz Tatit, Alessandra Leão, Moreno Veloso e Gilberto Gil. O conceito do álbum é explicado por Carlos Rennó:

“Dois fatores regeram a concepção deste álbum, um musical e outro poético. O primeiro consistiu na decisão de apresentar as canções – letras e músicas – nas suas essências e medulas, o mais próximo de como foram compostas. O segundo, na opção por um repertório representativo da porção do meu trabalho, composta por letras de caráter mais acentuadamente literário, artístico, eventualmente experimental”.

O letrista Rennó vai muito além de construir estrofes para encaixá-las numa determinada melodia. As letras que cria podem não ser poemas, mas são literatura confessadamente influenciada por poetas de rigor formalista como João Cabral de Melo Neto ou Augusto de Campos (um poeta em que letra de música e poema se entrelaçam). Carlos Rennó emprega o rigor formal na letra de Átimo de Pó, parceria com Gilberto Gil: “Um vocabulário bastante substantivo – nenhum verbo e quase nenhum adjetivo – para criar um ideograma do homem, o eu da letra, situado entre as dimensões infinita e infinitesimal, macro e micro, no universo”, analisa Rennó, em texto que assina no detalhado encarte de Poesia.

Letras feito palimpsesto, sob a camada principal há vestígios de vertentes variadas de outros letristas e poetas. Em Tá (com Pedro Luís e Roberta Sá), O Momento (Léo Cavalcanti), Hidrelétricas Nunca Mais ou Todas Elas Juntas Num Só Ser sente-se o que Rennó chama de estímulos porterianos (de Cole Porter), ou dylanianos (de Bob Dylan). Em Nova Trova, a citação livre de um verso do poeta provençal Arnaut Daniel, por sua vez, vem por influência de Augusto de Campos.

Às vezes a citação é explícita como em Seta de Fogo (A Canção de Teresa). A Teresa é a poetisa e santa Teresa D’Ávilla, uma canção mística-erótica, que se vale também do bíblico O Canto dos Cantos. O erotismo está em outras canções, na inédita Minha Preta (com Ceronimo Santana) ou em Nus, parceria com Arnaldo Antunes, um rock, cerzido pela guitarra de Chico Salem: “Nos deitamos, nos deleitamos/nos manchamos e nos desmanchamos/nos pegamos e nos apegamos/nos lançamos e não enlaçamos/nos gostamos, nos degustamos/nos comemos, nos comovemos”.

“O fácil o fóssil/o míssil o físsil/a arte o infarte/o ocre o canopo/a urna o farniente/a foice o fascículo”, versos de Isto e Aquilo, de Carlos Drummond de Andrade, levou Carlos Rennó a Suaí, uma das letras mais inventivas, em melodia de Livio Tragtenberg, interpretadas por Livia Nestrovski (com percussão de Alessandra Leão): “A ninfo a info a net o site/o doc o blog o face o fone/a foto a moto o auto a van/o flex o fax o sax o cello”, versos iniciais da mais longa letra do álbum. (a obra de Carlos Rennó pode ser conferida no seu site oficial: http://carlosrenno.com/letras/

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