Mais icônico grupo do rap brasileiro não apenas inspirou diretamente o surgimento de rappers em diversas regiões do país, mas se transformou em símbolo de resistência
Por Roger Deff*
Em 1990, o lançamento do álbum 'Holocausto urbano', o primeiro do grupo paulistano Racionais MCs, marcou um dos capítulos mais importantes da então recente história do rap brasileiro. Anos antes, a coletânea Hip-hop cultura de rua trouxe a público nomes como MC Jack, Código 13 e Thaíde e DJ Hum, pedras fundamentais do gênero. Mas a estreia fonográfica da banda formada por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay foi um divisor de águas não apenas para o rap nacional, mas para a música brasileira de uma forma geral.
Inspirado na postura dos norte-americanos do Public Enemy, o quarteto apresentava letras cruas que traduziam a violência da São Paulo no início da década de 1990, bem como a pobreza extrema vivenciada por jovens negros nas periferias dos grandes centros país – realidade retratada por eles de forma direta e contundente, sem eufemismos. O grupo cantava sobre um Brasil sem esperança, sem mobilidade social e sem espaço no horário nobre (ou em qualquer horário), embora representasse a maioria esmagadora da audiência. Antes que se dessem conta, o Racionais se tornou referência para milhões de jovens moradores de aglomerados, vilas e favelas, trazendo à tona um mundo que, embora presente, permanecia invisível.
Em 1993, quando 'Fim de semana no parque' e 'Homem na estrada', faixas do terceiro disco ('Raio-X do Brasil'), ganharam espaço nas principais FMs do país ao lado do estreante carioca Gabriel, O Pensador, o rap produzido no Brasil foi revelado para um público mais amplo, ganhando novos adeptos. O tom militante e educacional dos primeiros trabalhos cede lugar ao relato que tornava ainda mais claros a exclusão e as disparidades: “Olha só aquele clube dá hora/ Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora/ Nem se lembra do dinheiro que tem que levar/ Do seu pai bem louco gritando dentro do bar/ Nem se lembra de ontem, de hoje e do futuro/ Ele apenas sonha através do muro”, diz Mano Brown em 'Fim de semana no parque'.
'Sobrevivendo no inferno', CD antológico de 1997, marcou o período com sua narrativa densa, trazendo números e histórias sobre racismo, violência e a falta de perspectivas que se faziam presentes nas periferias. Lançado pelo selo Cosa Nostra, de propriedade dos próprios rappers do Racionais, o trabalho alcançou a invejável marca oficial de 500 mil cópias vendidas, colocando o grupo e o rap nacional no mapa da música brasileira.
Ruptura O prêmio de audiência no MTV Video Music Brasil, conquistado em 1998 com o videoclipe 'Diário de um detento', foi outro marco. Um ponto de ruptura para a música que ainda era marginalizada e incompreendida. O troféu mais importante da festa anual da MTV foi para um grupo de artistas cujos rostos não eram tão conhecidos do grande público, artistas que não estavam amparados por nenhum grande esquema de divulgação. Naquele momento, o Racionais dava uma lição importante para a música independente: sua trajetória já prescindia das gravadoras mesmo antes de elas se tornarem obsoletas.
O quarteto paulistano não apenas inspirou diretamente o surgimento de rappers em diversas regiões do país, mas se transformou em símbolo de resistência – postura condizente com o que o Racionais cantava. Seus integrantes recusavam entrevistas e aparições em grandes emissoras e determinados veículos de comunicação. Não por acaso, tornaram-se símbolo importante para a juventude negra.
O momento é outro, e a banda, já reconhecida como uma das mais importantes do país, agora se permite ironizar e até ostentar, a exemplo de 'Negro drama', faixa do álbum 'Nada como um dia após o outro dia' (2002): “Não foi sempre dito que preto não tem vez?/ Então, olha o castelo e não foi você quem fez...”. A nova abordagem retrata mudanças sociais que permitiram a milhares saírem da linha da pobreza extrema, mas se mantém o tom crítico e ácido que marcou a identidade do grupo.
Duas décadas e meia depois, eles são, sem dúvida, a maior referência do hip-hop no Brasil, com uma trajetória que acompanhou tanto a evolução e o crescimento do rap quanto o surgimento de nomes como Emicida, Criolo, Rapadura, o mineiro Renegado e tantos outros. Ironicamente, o grupo que sempre falou da e pela favela foi o primeiro a estabelecer conexões e pontes do rap com públicos de classes e espaços geográficos diversos, como se vê no perfil de fãs que o seguem hoje.
O show da turnê de 25 anos do Racionais MCs, apresentado recentemente em BH, é um indicativo importante dessa mudança. Os fãs não podem mais ser definidos por classe e etnia específicas, mas a identidade com o discurso dos “quatro pretos mais perigosos do Brasil” (como eles se denominam) é o ponto de confluência.
Vale reforçar: entender os 25 anos do Racionais MCs equivale a uma leitura sobre os caminhos do próprio rap nacional durante todo esse período, além das mudanças da periferia e da forma como ela própria se vê nesse novo contexto.
Diálogo Anos atrás, assisti em BH ao show de lançamento do 'Sobrevivendo no inferno', terceiro disco de estúdio do Racionais. Agora vejo o show da turnê de 25 anos. Outra época. Em 'Sobrevivendo...', era nítido o perfil do público: homens, na maioria, jovens negros oriundos de aglomerados e bairros periféricos da capital mineira. A realidade agora é bem outra. É interessante notar o diálogo que o rap estabeleceu com públicos tão diversos sem mudar o seu discurso, embora tenha se tornado bem mais aberto em relação a temas, referências e conexões.
Veja bem: 'Sobrevivendo...' é de 1997, 'Nada com um dia após o outro dia', o último disco dos caras, saiu em 2002. No show comemorativo, vi um monte de garotas e garotos de vinte e poucos anos (ou menos) cantando todas as letras, compreendendo as referências de trabalhos lançados quando eles ainda eram crianças. Todos erguendo as mãos para fazer o gesto VL, símbolo de “vida loka”. Essa gíria se refere ao dia a dia de gente obrigada a morar em favelas e bairros pobres, lutando para sobreviver apesar da miséria, violência, racismo e dos perigos que envolvem o tráfico de drogas.
Quem presenciou aquelas cenas não tem a menor dúvida a respeito do impacto cultural do Racionais e do que ele simboliza. Ainda controversos e provocadores, os “manos” não falam mais do lugar da invisibilidade. Esta pode ser a grande diferença em relação aos velhos tempos. Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay falam de uma comunidade conectada, que ostenta o poder de consumo como forma de afronta e quer mais – bonés, camisetas e a postura marrenta refletem isso. Para quem souber ler.
'Negro drama' fala do negro a partir de outro lugar, mas virou hino fácil na boca da garotada contemporânea. Brown encerrou o show lembrando que Minas é terra de Milton Nascimento e de Lô Borges, a quem já declarou publicamente sua admiração por mais de uma vez.
Nada como um dia após o outro.
*Roger Deff é rapper da banda Julgamento e jornalista
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