quinta-feira, 17 de setembro de 2020

EM DISCO, ALICE PASSOS REITERA A IMPORTÂNCIA DE ARY BARROSO PARA A MÚSICA BRASILEIRA

Em um país rotulado por sua falta de memória, trabalhos como o da cantora, instrumentista e compositora carioca são de extrema valia não apenas para manter viva a obra de compositores de outrora, mas também para apresentá-los para as novas gerações

Por Bruno Negromonte


Alice Passos honra Ary Barroso em álbum derivado de show | Blog do ...

Vivemos em um mundo onde as coisas estão a se tornar cada vez mais efêmeras. A facilidade e rapidez dos meios de comunicação (consequência não apenas do advento tecnológico, mas principalmente dos seus constantes avanços) vem oportunizando à todos o acesso a uma quantidade avassaladora de informações, o que por conseguinte acaba por corroborar em definitivo para a obrigação de consumir a informação de forma acrítica, sem um maior cuidado seletivo. Nesse contexto, as sociedades contemporâneas estão, aos poucos, permitindo-se perder uma das mais importantes funções da memória humana, que é a capacidade seletiva. E em nosso país esse tipo de situação é algo que podemos afirmar que não é nenhuma novidade, uma vez que o descaso o qual vem sendo submetida a cultura, ano após ano (onde cada vez menos recursos são destinados a preservação de nossa memória cultural), acaba por corroborar ainda mais para esse horrendo quadro que prevalece essa espécie de limbo. Diante de tal cenário é que surge o questionamento: “O que faríamos sem uma cultura?”. Dentre tantas respostas para um cenário hipoteticamente hostil como este talvez não tenhamos respostas convincentes, mas a certeza de que sem uma história, o homem não teria uma identidade, pois é a cultura que o define. Em nosso país o cenário é triste e desfavorável haja em vista os últimos trágicos acontecimentos culturais nacionais (nada pode ter sido considerado mais simbólico em relação a falência social e cultural na qual o Brasil está imerso do que as chamas que consumiram o Museu Nacional em 2018). Sorte a nossa que a resiliência e a esperança ainda nos constitui e estão presentes na arte muitos nomes caracterizados e imbuídos de uma vasta sensibilidade e que não permitem-se esmorecer sempre buscando fazer algo em pró de uma possível reversão desse nefasto cenário. Sorte a nossa que são essas ações que nos permitem atestar que sementes ainda conseguem vingar nesse hostil contexto urgindo em seus respectivos trabalhos que façamos algo que defenda e preserve o que de construímos culturalmente como sociedade como é o caso do trabalho hoje apresentado. 


Ciente dessa condição e armipotente com a sua arte, Alice Passos soma à sua perseverança, talento e bom gosto os nomes de André Pinto Siqueira e Maurício Massunaga em tributo a um dos nomes mais relevantes da música brasileira ao longo do século XX: Ary BarrosoRespeitada como uma veterana no meio do samba e do choro nos principais redutos dos gêneros de sua cidade, Alice Passos, que é formada em arranjo musical pela UniRio e oriunda de uma família musical (ela é filha de um luthier e de uma compositora e instrumentista), cresceu envolta ao canto, o cavaquinho, a flauta e o violão. Dentre os instrumentos que permearam a sua infância abraçou em particular dois: a flauta e o violão, fazendo destes seus principais companheiros nos projetos os quais vem participando desde o início de uma carreira que teve seu pontapé inicial quando a artista tinha nove anos de idade e  integrou o coro infantil de um dos álbuns do Quarteto em Cy. Em seu currículo conta-se também 15 anos na Orquestra de sopro da Pro Arte, onde se apresentou no Brasil e no Exterior ao lado de grandes nomes da música popular brasileira (a exemplo de Hermeto Paschoal, Moacir Santos e Gilberto Gil) e a incursão pela Orquestra Corações Futuristas (projeto idealizado e regido por Egberto Gismonti)Como já escrito aqui mesmo no Musicaria Brasil estas experiências empíricas, práticas e experimentais alicerçaram o seu primeiro álbum intitulado "Voz e violões", disco que conta com treze faixas e a participação de um verdadeiro dream team do violão brasileiro e que é possível ouvir nos principais aplicativos de música; Já o violonista André Pinto Siqueira traz em sua bagagem musical prêmios como Chico Mário de violão e o Prêmio MIMO Instrumental e excursões no Brasil e em países como Suíça, Reino Unido, França, Portugal e Espanha. Sem contar que já dividiu palco e estúdio com nomes como Danilo Caymmi, Jenny Chi, Carlos Malta e Orquestra Sinfônica Brasileira para compor distintos temas e trilhas sonoras. E completando esse power trio vem o nome o multi-instrumentista Maurício Massunaga que já teve a oportunidade de atuar ao lado de nomes como Zélia Duncan, Casuarina, Mart'nália, Dudu Nobre entre outros. Multifacetado, além de arranjador e produtor, atualmente faz parte da banda cantora carioca Ana Costa e chegou a participar de alguns musicais para o teatro a exemplo de "Zeca Pagodinho, o musical", "É com esse que eu vou" e "Sassaricando" (sem contar a sua atuação no carnaval carioca em blocos como "Pérola da Guanabara" e do bloco "Simpatia é quase amor".

Alice Passos honra Ary Barroso em álbum derivado de show | Blog do Mauro  Ferreira | G1

Idealizado em 2017 a partir de papo da cantora com os violonistas no bar carioca Bip-Bip, pode-se dizer que o show (também intitulado Ary) foi o cerne de tudo. Ao longo de quase dois anos, o que seria a princípio apenas um espetáculo culminou neste registro fonográfico constituído por dez faixas e abraçado pela gravadora Fina Flor. Imbuído de viço e da atemporalidade que constitui a obra do homenageado, "Ary" vai além de um álbum e tributo. Trata-se de um disco marcado por  signos diversos em um país maculado por uma notória falta de memória. Primoroso, o álbum inicia com o Samba-canção "Na batucada da vida", parceria de Ary com Luís Peixoto e datada de 1934. Outra canção composta em parceria com o mesmo Luís Peixoto é o samba "Por causa dessa cabocla" que em 1935 foi interpretada por Silvio Caldas e fez parte da trilha sonora do filme Favela dos meus amores.
Em seguida vem uma série de canções que eternizaram-se nas vozes de grandes nomes e que foram assinadas unicamente por Ary a exemplo do samba "Na baixa do sapateiro", que composta em 1938 teve como primeira intérprete Carmen Miranda, os sambas "Camisa amarela" (1939), "Pra machucar meu coração" (1943), "Morena boca de ouro" (1942), "Inquietação" (1935), "Faixa de cetim" (1943), assim como também o choro "Chorando" (1951) e a valsa "Canção em tom maior" (1961).

Em síntese pode-se afirmar que mesmo não sendo novidade (visto que nomes como Gal Costa e Rosa Passos já prontificaram-se em prestar suas respectivas homenagens a este singular artista mineiro), Ary é um projeto fonográfico que foi muito bem maturado a partir das apresentações em shows que o antecedeu e que nasceu imbuído de fortes características. Em um formato aparentemente simplório (voz e violões), o disco substancia-se no entrosamento do trio e concede-nos a possibilidade de um substancial passeio pela obra deste nome de relevância ímpar para a música popular brasileira como faz-se passivo analisar nos sambas, sambas-canções, choros e valsas presentes no álbum que já se encontra disponível nas principais plataformas de música. Ao ouvir "Ary", é possível perceber que o mesmo perfaz-se em harmoniosa sincronia entre os três nomes que constitui o disco, sobrepujando a convencional formas de projetos fonográficos caracterizados por esse tipo de formato voz e violão. Se de um lado Alice Passos reitera em canto, técnica e visceralidade não apenas a  importância da obra do homenageado, mas também o caminho que vem buscando trilhar dentro do mercado fonográfico brasileiro, do outro os nomes de André Pinto Siqueira e Maurício Massunaga ganham relevante destaque ao proporcionar esse profícuo diálogo entre o trio como é possível perceber na coesa "Chorando", única faixa instrumental do disco. Em um ano que traz como marca dor, descaso e tristeza, trabalhos como estes reiteram que a delicadeza ainda constitui o cerne do ser humano e a cultura é, sem sombra de dúvidas, um dos alicerces mais firmes a favor do alento. Neste caso, através da lembrança e da obra de um dos maiores nomes da música popular brasileira através de uma das mais promissoras revelações da nova geração e que vem arregimentada por dois grandes talentos da música instrumental. "Ary" mostra-se para além da aquarela do homenageado, apresentando assim um artista que apesar de controverso e personalidade muitas vezes hostil, deixou uma obra singular e que agora, em parte, pode ser revisitada de um modo único.


0 comentários:

LinkWithin