terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

AS BANDEIRAS DE DAVID NASSER - PARTE 01

Este ano completa-se 35 anos da morte do jornalista e compositor que partiu aos 63 anos na cidade do Rio de Janeiro

Por Letícia Nunes de Moraes*


Resumo – David Nasser foi um dos jornalistas mais famosos no Brasil dos anos 1940 e 1950. Não apenas famoso, mas controvertido. Sua carreira se confunde com a história da revista O Cruzeiro na qual ficou conhecido pela parceria com o fotógrafo francês Jean Manzon, ao lado de quem produziu jornalismo temperado com ilusão e polêmica. Letrista de canções memoráveis da música popular brasileira, Nasser foi também membro, como presidente de honra, de um grupo de extermínio ligado à polícia carioca, denominado Scuderie Le Coq.

Palavras-chave: imprensa, música, política, polícia, autoritarismo.


INTRODUÇÃO
Esse brasileiro que nasceu na cidade paulista de Jaú, viveu uma infância pobre no Rio e uma adolescência difícil em Caxambu foi também outra evidência de que um mesmo indivíduo pode exibir, simultaneamente, muito talento, bastante sensibilidade, nenhum escrúpulo, alguma misericórdia e excessiva brutalidade (NUNES, 2001). David Nasser foi o jornalista mais famoso do Brasil nas décadas de 1940 e 1950. Sua carreira é inseparável da história da revista O Cruzeiro, num tempo em que a televisão ainda não era presença cotidiana nos lares brasileiros. Escritor primoroso, consagrou-se letrista de canções memoráveis da música popular brasileira, entoadas nas vozes dos mais diferentes intérpretes; de Agnaldo Timóteo a Gal Costa. O homem de andar desajeitado e com dificuldade de visão, sequelas da meningite que o acometeu na infância, destoava da imagem pública que construiu. Foi repórter numa época em que jornalismo e entretenimento eram, muitas vezes, indistinguíveis. Fazia reportagem como criação, mais do que como narrativa ao lado do parceiro, o fotógrafo Jean anzon. David Nasser foi também cronista político em tempos conturbados politicamente, de conspiração e autoritarismo. Foi partidário tanto do movimento conspiratório que derrubou o presidente João Goulart, em 1964, como do regime militar que o sucedeu. Agressivo, defendeu publicamente, em diversas ocasiões, a atuação do grupo do extermínio carioca, a Scuderie Le Cocq, do qual foi membro, como presidente de honra. A documentação remanescente de todas essas atividades foi guardada e catalogada pelo próprio David Nasser, numa compulsão pela sua obra, observou o jornalista Luiz Maklouf Carvalho (2001), que teve acesso ao arquivo pessoal de Nasser, disponibilizado pela viúva, Isabel Nasser. O contato com essa documentação lhe permitiu conhecer os bastidores da maior revista brasileira. Após três anos de pesquisa, entre 1999 e 2001, concluiu a biografia Cobras criadas: David Nasser e O Cruzeiro. Ao longo dos 61 anos que viveu, David Nasser publicou 17 livros. Compôs centenas de letras de canções; teve parceiros na música, inimigos (e ministros) na política, amigos na polícia.


CANTA, BRASIL
Terceiro dentre sete irmãos, David Nasser nasceu em Jaú, interior paulista, em 1º de janeiro
de 1917, filho de imigrantes libaneses. Viveu a infância no Rio de Janeiro. O pai, Alexandre Nasser, era comerciante de joias e pedras preciosas – e nunca fora fotógrafo das expedições  do marechal Cândido Rondon e da Coluna Prestes, como chegou a escrever em seus artigos, anos mais tarde. Quando David tinha nove anos, a família mudou-se para Caxambu, no sul de Minas Gerais. Foi entregador de pão na cidade mineira, antes de trabalhar numa loja de joias, emprego conquistado com a ajuda do pai, logo que voltaram a residir na capital carioca. Ainda estudante, já mostrava gosto pela leitura e pela escrita. Aos 17 anos, fez estágio como contínuo em O Jornal onde conheceu Assis Chateaubriand. Antônio Accioly Netto (1998, p. 109), diretor de O Cruzeiro durante quase 40 anos, escreveu sobre como teria sido o encontro dos dois:


Dizem que Assis Chateaubriand, ao vê-lo, duvidou que fosse capaz de escrever e aplicou-lhe um teste: trancou-o numa sala com algumas folhas de papel em branco e uma máquina de escrever, depois de lhe dar um tema para que desenvolvesse. Meia hora depois, ele entregava àquele que depois passaria a chamar de “Velho Capitão” um texto excelente e limpo, sem qualquer rasura. Foi contratado na hora.

A permanência em O Jornal, contudo, foi breve. Após desentendimento com o irmão de Chateaubriand, Urbano Ganot, diretor do diário, foi demitido. Em 1936, Nasser foi contratado por Roberto Marinho, diretor de O Globo e filho de Irineu Marinho, fundador do jornal onde atuou por quase nove anos. Data desse período o início de sua carreira como letrista, época em que passou a frequentar o Café Nice, ponto de encontro de compositores e intérpretes, que ficava próximo à redação de O Globo.

Seu primeiro sucesso foi “Nega do cabelo duro”, de 1940, em parceira com o lutador de boxe Rubens Soares, também frequentador do Nice: “Nega do cabelo duro / qual é o pente que te penteia?”. No ano seguinte, compôs “Canta, Brasil” em parceira com Alcyr Pires Vermelho, inspirada em “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, sucesso absoluto no carnaval de 1939. Francisco Alves foi o primeiro intérprete de “Canta, Brasil”:

Brasil / Minha voz enternecida / já dourou os teus brasões
Na expressão mais comovida / das mais ardentes canções...
Também, / a beleza deste céu
Onde o azul é mais azul / na aquarela do Brasil,
Eu cantei de norte a sul,/ mas agora o teu cantar,
Meu Brasil, quero escutar / nas preces da sertaneja
Nas ondas do rio-mar...
Herivelto Martins foi outro dos muitos parceiros musicais que encontrou nas noites de boemia do Café Nice. Com Herivelto escreveu inúmeras canções: “Camisola do dia”, “Pensando em ti”, “Ave-Maria no Morro” e, entre tantas outras, “Atiraste uma pedra”:

Atiraste uma pedra no peito de quem só te fez tanto bem
E quebraste um telhado, perdeste um abrigo
Feriste um amigo
Conseguiste magoar quem das mágoas te livrou
Atiraste uma pedra com as mãos que essa boca
Tantas vezes beijou
Quebraste um telhado
Que nas noites de frio te servia de abrigo
Perdeste um amigo que os teus erros não viu
E o teu pranto enxugou
Mas acima de tudo atiraste uma pedra
Turvando esta água
Esta água que um dia, por estranha ironia
Tua sede matou

Herivelto foi casado com a cantora Dalva de Oliveira. Quando o casal se separou, no início da década de 1950, começou entre os dois uma intensa “polêmica musical” em que um rebatia o outro por meio de canções. David Nasser entrou na briga defendendo Herivelto e deu o tom da campanha na qual procurou desmoralizar a cantora. Dalva pôs fim à discórdia com a música “Bandeira branca”, de autoria de Laércio Alves e Max Nunes, em 1970.


ESQUADRÃO DE OURO

A revista semanal O Cruzeiro integrava os Diários Associados, império jornalístico construído pelo paraibano Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello. Adquirido em 1924, O Jornal foi o primeiro veículo de comunicação de sua empresa jornalística. Chateaubriand deixou no Nordeste a carreira de professor universitário para continuar exercendo as atividades jornalísticas, às quais se dedicava desde a juventude. Formado em Direito, chegou a ser aprovado no concurso da Faculdade de Direito de Recife para a cátedra de professor de Direito Romano e de Filosofia do Direito.

Lançada em novembro de 1928, O Cruzeiro foi a revista que mais tempo permaneceu em circulação no mercado brasileiro: cinco décadas. Foi o primeiro veículo de informação com circulação nacional e, para sua criação, foi decisiva a influência de Getulio Vargas, então ministro da Fazenda do governo Washington Luís.

Quinze anos após o lançamento, O Cruzeiro ainda não havia se consolidado no mercado editorial brasileiro e esteve a ponto de fechar. No início dos anos 1940, a circulação da revista era de 11 mil exemplares. Em 1954, com a notícia do suicídio de Getulio Vargas, a tiragem saltou para 720 mil exemplares em outubro daquele ano, quando a população brasileira estava em torno dos 45 milhões de habitantes. Em 1957, atingiu os 887 mil exemplares, estabilizando-se em 550 mil no restante dos anos 1950 e início dos 1960, quando entrou em declínio.

O sucesso de O Cruzeiro é comparável ao da TV Globo, décadas mais tarde, em termos de faturamento e inserção junto à população. A comparação dá a noção do que representava a presença da revista O Cruzeiro no dia a dia dos leitores nas décadas de 1940 e 1950. Embora a primeira emissora de televisão brasileira, a Tupi de São Paulo, tenha sido inaugurada pelo próprio Assis Chateaubriand, em 1950, é importante lembrar que a televisão ainda não fazia parte do cotidiano das pessoas nos anos 1950. O rádio, as revistas e os jornais eram os principais veículos de comunicação. Só nos anos 1970, o veículo se consolida pela forte presença no cotidiano dos telespectadores (HAMBURGUER, 2000, p. 454).

David Nasser foi para O Cruzeiro em 1943, em meio a uma importante reforma gráfica e editorial que fez do semanário uma revista de fotorreportagem. Jean Manzon, experiente fotógrafo francês, foi o expoente dessa modernização. Veio para o Brasil em 1940 quando, na Europa, a França sofria a invasão alemã. Aqui, trabalhou no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão de controle e censura à imprensa do Estado Novo (1937-1945). Suas fotos agradaram Getulio Vargas, como agradariam posteriormente os leitores de O Cruzeiro. O Brasil nunca vira fotos produzidas como as de Manzon, a não ser quem comprava as revistas ilustradas estrangeiras. Enquadramento perfeito, ângulos novos, closes de arrepiar, caras e bocas que pareciam em movimento, um estilo completamente novo se comparado ao da imprensa brasileira, incluindo O Cruzeiro (CARVALHO, 2001, p. 67).

O encontro de David Nasser e Jean Manzon aconteceu na redação de O Cruzeiro, de acordo com Freddy Chateaubriand, que dirigiu a reformulação editorial e convidou Nasser para fazer parte da equipe do semanário. Prometeu-lhe que suas matérias seriam assinadas, o que não ocorria em O Globo, de onde saiu definitivamente em 1944.

Manzon trouxe para O Cruzeiro a sua experiência na revista francesa Match, na qual foram publicadas diversas reportagens fotográficas repletas de imagens raras e exclusivas, obtidas com espertezas, como ofertas de retratos a funcionários do segundo escalão, formando assim uma rede de informantes ou ainda forjando situações. Nasser logo “pegou o jeito” como ele mesmo lembrou no artigo “O Rei Davi” na revista Manchete, edição de outubro de 1965, em matéria citada por Carvalho (2001, p. 75):

Naquele tempo, ninguém fazia reportagens, no sentido literal da palavra. [...] Quando o Manzon chegou aqui, era como um tenista de primeira classe ensinando um tenista de província – eu. Aprendi muito. Em primeiro lugar, aprendi a vencer a timidez, depois iniciei-me nos truques da profissão. O Manzon, embora não sendo um homem de cultura, possui extraordinária sensibilidade jornalística, acima do comum.

Uma das reportagens mais famosas da dupla foi “Barreto Pinto sem máscara”, publicada em 29 de junho de 1946. Exibia o deputado federal Edmundo Barreto Pinto, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), trajando cueca samba-canção e fraque. De acordo com Luiz Maklouf Carvalho (2001, p. 156):

Nasser mantinha uma relação promíscua com o deputado, pois o mesmo escrevia também no Diário da Noite, o folhetim em que o parlamentar narrava suas memórias. Era Barreto que assinava o folhetim – mas o próprio Nasser confessou na Manchete, que a obra era de sua autoria, sem esclarecer se remunerada ou não. É fato indiscutível que o deputado pagou aos Diários Associados pelas memórias, como comprova o recibo que Nasser guardou em seu arquivo pessoal. É de 12 de abril de 1949 e está assinado por Barreto Pinto. Não cita o valor, mas dá o número do cheque. 

A parceria com Manzon durou quase uma década. Em 1954, Nasser foi homenageado por Chateaubriand, seu admirador, por quem era chamado afetuosamente de “beduíno de uma figa” ou “turco louco”, com uma matéria de oito páginas em O Cruzeiro, ilustrada com 81 fotos e muitos adjetivos sob o título “David, o repórter”, um registro da importância e do prestígio daquele que apareceria dali em diante no expediente da revista como “repórter principal”, como lembrou Augusto Nunes (2001). 

Segundo Accioly Netto (1998, p. 106), O Cruzeiro transformou a imagem dos repórteres, antes considerados “cidadãos de segunda classe, quase marginais cujo estereótipo era um homem mal barbeado, bebendo no bar embaixo da redação, em plena madrugada”:

Em O Cruzeiro, os repórteres foram alçados à condição de estrelas [...]. E foi um grupo desses brilhantes repórteres, expoentes da fase mais espetacular da revista – ao longo dos anos 40 e 50 –, que recebeu de David Nasser (aliás, um dos componentes do grupo) o nome de “esquadrão de ouro”. Eram grandes repórteres, capazes de trajar um smoking com naturalidade, beber uísque com elegância e freqüentar os mais requintados salões sem qualquer constrangimento. Eles produziam histórias sensacionais, sendo por isso, admirados e queridos por seus leitores.


REFERÊNCIAS
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ACCIOLY NETTO, A. O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina, 1998.
AQUINO, M. A. de. A especificidade do regime militar brasileiro: abordagem teórica e exercí-
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BICUDO, H. P. Meu depoimento sobre o esquadrão da morte. 2. ed. São Paulo: Pontifícia Comissão
de Justiça e Paz de São Paulo, 1976.
CARVALHO, L. M. Cobras criadas: David Nasser e O Cruzeiro. 2. ed. São Paulo: Senac, 2001.
CHATEAUBRIAND, F. de A. Nem Camões escapou deste peste! O Cruzeiro, Rio de Janeiro,
1967.
DREIFUSS, R. A. 1964 – a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. 6. ed.
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HAMBURGUER, E. Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano. In: SCHWARCZ,
L. M. História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo:
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MACIEL, W. A. O capitão Lamarca e a VPR. São Paulo: Alameda Editorial, 2006.
NASSER, D. Um trio desafinado. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 4-5, 2 fev. 1963a.
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_______. O coice do pangaré. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 6-7, 18 jan. 1964a.
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SOUZA, P. de. Autópsia do medo. São Paulo: Globo, 2000.



* Mestra e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Autora do livro Leituras da revista Realidade (1966-1968), publicado pela Alameda Editorial.

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