domingo, 15 de fevereiro de 2015

CARNAVAL DO RECIFE: A ALEGRIA GUERREIRA - PARTE 02

Por Rita de Cássia Barbosa de Araújo*




Raça, frevo e nacionalidade

Múltiplo em seus folgares, ritmos, bailados, indumentárias, símbolos e ornamentos, o Carnaval popular do Recife da virada do século foi vítima do preconceito de classe das elites urbanas. Da mesma forma que os mascarados ébrios e maltrapilhos e, antes deles, o brinquedo d'água, os clubes sofreram duras críticas da imprensa. Vistos como andrajosos e repetitivos, sem possuírem espírito algum, foram igualmente considerados como sinais de atraso e ignorância. Os ensurdecedores maracatus, que se conservaram mais próximos das raízes africanas, pareciam surgidos das podridões da cidade, tal o modo pelo qual, muitas vezes, a eles se referiam.

No entanto, pelo que indicam os noticiários dos jornais da época, a visão e o tratamento dispensados pelos membros das elites e pelas autoridades públicas às manifestações populares de rua, que tinham curso no Carnaval, começaram claramente a mudar a partir ano de 1904.

Já se notava, em algumas folhas, um tom mais conciliador ao se referir aos dois Carnavais: o da elite e o popular. O Jornal Pequeno assumiu inovadora postura ao procurar divulgar e incentivar os folguedos populares na cidade. Mas não sem antes lhes propor algumas modificações, de modo a melhor ajustá-los ao modelo de civilização que se desejava para o Recife. A palavra frevo, por exemplo, oriunda do vocabulário popular, foi primeiramente publicada na coluna diária que o jornal dedicava aos festejos, difundindo-a e consolidando-a como expressão de forte significado social e cultural.

Em suas páginas também, no ano de 1910, foram retratadas as primeiras figuras representativas das camadas populares e de cor. Negros e índios passaram a dividir o espaço destinado ao registro iconográfico da festa carnavalesca com personagens do Carnaval europeu: pierrôs, arlequins, dominós, pastoras e bobos da corte.

Os indivíduos da elite e da classe média buscaram isolar-se e manter-se afastados daquela turba de miseráveis carnavalescos, refugiando-se nos bailes ou desfilando em carros ornamentados, entre familiares e amigos. Por volta de 1909, um grupo ligado aos clubes de alegoria e crítica tentou, inutilmente, construir um Carnaval de rua só para si, mas numa outra data, durante a Mi-Carême. Pouco depois, porém, os clubes pedestres passaram a fazer uso da festa, e com muito mais êxito.

A polícia, instância do poder público mais presente no cotidiano das camadas populares, adotou uma nova orientação: passou de violenta, arbitrária e repressora à guardiã dos préstitos das agremiações carnavalescas, ao menos daquelas que se dispunham a colaborar. Os representantes do poder público tencionavam, assim, aproximar-se do povo, do cidadão comum, especialmente da classe trabalhadora, e conquistar-lhe a confiança.

As agremiações carnavalescas populares despontaram como um dos canais mais eficazes para objetivar tal intento. Em parte, por contarem com uma estrutura organizacional pronta, baseada em princípios hierárquicos e consolidada pela tradição. Foram diferenciados, também, por estarem culturalmente mais próximos dos referenciais europeus: lembremos os cortejos processionais, os estandartes, os uniformes dos cordões e das orquestras e a própria música de influência européia, na qual os instrumentos metálicos prevaleciam e davam o tom da festa.

A estratégia política das autoridades, nesse período inicial da República, alcançou uma de suas formas mais maduras com a criação do Primeiro Congresso Carnavalesco em Pernambuco. Idealizado em setembro de 1910 e instalado significativamente no dia do aniversário natalício da República, 15 de novembro do mesmo ano, o Congresso reuniu os jornalistas, a polícia, inclusive o chefe da repartição, Dr. Ulysses Costa, os clubes carnavalescos de alegoria e crítica e os pedestres.

O povo era "a força do poder público", afirmou o Chefe de Polícia por ocasião da sua instalação, e deveria ser respeitado e tratado sem violências. O discurso repercutiu favoravelmente. Buscava-se estabelecer uma nova relação entre o povo e o poder, mais condizente com os princípios republicanos. A polícia, dizia o cronista Dominó Branco, mostrava-se boa e generosa para com o povo, garantindo-lhe o direito de divertir-se e folgar nos três dias dedicados à folia (12).

Esboçava-se, na consciência da elite local, a tendência para reconhecer a existência social dos segmentos populares e dos indivíduos de cor, da classe trabalhadora urbana em especial, que, expressa no contexto da festa carnavalesca, possuía bases sociais mais concretas e duradouras. Distante da esfera da produção, inscrito no contexto favorável de uma festa que pregava o esquecimento do dia a dia, das dificuldades materiais, dos conflitos, intrigas e rivalidades, o Congresso Carnavalesco representou uma tentativa concreta, por parte das autoridades públicas, de estabelecer uma nova forma de convivência política, enaltecendo a igualdade, a união e a harmonia entre classes, etnias, sexos e idades. Ao invés da via policial e repressora que prevalecera até então, a idéia norteadora dos fundamentos do Congresso privilegiava ações integradoras entre o povo e o Estado.

Nos anos 30 a proposta original do Congresso foi retomada, num contexto inteiramente distinto daquele primeiro. O país vivenciava intenso processo de industrialização e urbanização. Frente às mudanças que ocorriam, fazia-se necessário repensar o Brasil. Redescobrir o país e a nação e, obviamente, construir novos símbolos de identidade. Abandonou-se a postura, até então dominante, de querer assemelhar-se aos países europeus a todo custo. O verdadeiro encontro entre a elite e a nação pressupunha um redirecionamento do olhar, voltado agora para o interior do próprio país e para a reinterpretação da sua história.

Em Pernambuco, particularmente, alguns movimentos culturais surgidos nas décadas de 1920 e de 1930 seguiram tal direção. O Movimento Regionalista de 1926 e, antecedendo-o, o lançamento do livro comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco, em 1925, encontraram sua forma mais elaborada de pensamento em Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre. A noção de que o Brasil formou-se da fusão de três grupos étnicos – o branco europeu, o negro africano e o índio brasileiro – encontrou, na obra de Freyre, níveis de insuperáveis requinte e expressão.

Em 1934, realizou-se, no Recife, o I Congresso Afro-brasileiro, que representava um desdobramento concreto e institucionalizado das idéias contidas em Casa grande & senzala. Intelectuais, artistas, cientistas das mais diversas áreas do conhecimento, pais e mães de santo nele tiveram voz e assento. O Congresso, entretanto, foi alvo de críticas e de acusações por parte de outros intelectuais, que o denunciaram como fomentador de idéias comunistas. Muitos desses intelectuais – tendo à frente o jornalista Mário Melo –, de comum acordo com empresários e altos executivos de grandes firmas estrangeiras prestadoras de serviços, como a Pernambuco Tramways e a The Great Western, conceberam, por sua vez, o projeto de criação da Federação Carnavalesca Pernambucana.


Fundada em 3 de janeiro de 1935, a Federação tinha por explícito e principal objetivo trabalhar a favor da elevação do Carnaval de Pernambuco. Mas, assim como em 1911, renovava a intenção de promover um congraçamento entre as classes sociais, servindo-se mais uma vez das agremiações carnavalescas populares e da possibilidade de manipular o desejo de seus associados de obterem reconhecimento social.

A Federação Carnavalesca também tomou a si a tarefa histórica de reelaborar e difundir símbolos de identidade cultural representativos da nacionalidade brasileira, dando à questão uma dimensão regional.

O Carnaval, enquanto festa pública, forneceu os ingredientes necessários à construção da identidade pernambucana calcada no binômio do nacional-popular. Clubes alegóricos, máscaras avulsos, caninhas verdes e bailes elegantes eram contribuição do branco europeu para a construção do elemento nacional. Os caboclinhos, por sua vez, evocavam os primitivos habitantes da terra. Os maracatus representavam os negros africanos. Os blocos de pau e corda lembravam o Carnaval carioca. Por fim, os clubes pedestres representavam a "união dos três elementos étnicos e tomaram um caráter puramente pernambucano, com a criação do frevo, que é tipicamente nosso", segundo declarou em discurso, na Assembléia Legislativa do Estado, o senhor Fish, primeiro presidente da Federação Carnavalesca e superintendente da Great Western (13).

O frevo mulato era consagrado símbolo de identidade cultural e proclamado fonte de toda a pernambucanidade.


Notas
12 Jornal Pequeno. Recife, 16 nov. 1910, p. 3.
13 Anuário do carnaval pernambucano: 1938. Recife, Federação Carnavalesca Pernambucana, 1938.


* Rita de Cássia Barbosa Araújo é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, Recife (PE), e doutoranda no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo.

0 comentários:

LinkWithin