terça-feira, 20 de janeiro de 2015

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



No disco Ana Rita Joana Iracema e Carolina(2001), Ana Carolina imprime um claro gesto autoral: a feitura de um rock-samba-trágico que, atravessado pela potência da voz da cantora, que em si guarda o poder de divas dadivosas do passado, desliza entre belezas e delírios de eus múltiplos.

A canção "Violão e voz", de Ana Carolina, é metacanção na medida em que condensa filigranas de outras tantas canções que povoam o imaginário do ouvinte: de Noel Rosa e Geraldo Pereira a Chico Buarque, para ficarmos nas referências mais visíveis.

Aliás, o cancioneiro de Chico Buarque atravessa todo o disco, a partir do título, já que todas as mulheres ali citadas foram cantadas por ele. Ana, Rita, Joana, Iracema e Carolina são mulheres de Chico que Ana Carolina toma como mote para se multiplicar em outras a cada canção, sugerindo que não somos um só, mas muitos: cada um é uma legião.

Se Chico sempre soube combinar-se com Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, Dorival Caymmi, Ana recolhe todos e compõe um samba ao estilo batucada informal em caixa de fósforo. Ela agrega a isso tudo a voz não menos poderosa de Alcione. O resultado são duas vozes em acordo íntimo na busca da alegria-trágica do canto e do cantar.

Se em "Samba e amor", de Chico Buarque, o sujeito faz "samba e amor até mais tarde", em "Violão e voz" o sujeito faz "samba e amor a qualquer hora": desconstrói tempo e espaço, suspende o juízo para desenhar sua condição solitária. Para tanto faz uma bonita citação literária: a presença fantasmagórica do livro Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marquez.

"Ficar sozinho é pra quem tem coragem", diz o sujeito. Corajoso, ele assume sua condição e faz do canto um diálogo singular com a vida: "Não quero viver a exemplo da vida dos santos". O sujeito se entrega à canção: torna-se instrumento da paz do outro: nós, ouvintes.

Instrumento de quereres diversos, o sujeito é o tambor: pulso e tradição de si, do samba, de muitos. Por isso ele faz samba e amor a qualquer hora. Ele une e canta versos de "Pisei num despacho", de Geraldo Pereira e Elpídio Vianna, com Noel Rosa - o samba com feitiço aliado ao samba sem farofa e vela - procurando a cadência perfeita para dizer: "Eu sou como um tambor que ressoa mas dentro dele que dá pessoa".


***

Violão e voz
(Ana Carolina)

Eu faço samba e amor a qualquer hora
De madrugada tem batucada
E eu tô afim de você
Ficar parado eu não aguento
Não quero viver a exemplo da vida dos santos
Eu não moro em São Francisco
Eu não moro em São Francisco
E você faça de mim um instrumento de sua paz
E sabe do que mais
Eu sou como um tambor que ressoa mas dentro
Dele
que dá pessoa

Eu faço samba e amor a qualquer hora
Porque não agora
Eu não posso perder você
Como quem perde um real e não nota não vê
Sem querer pisei num despacho
E saí cantando
Geraldo Pereira
Sem querer eu pisei num jardim
E saí cantando
Noel Rosa

Eu tenho você no coração
Ficar sozinho é pra quem tem coragem
Eu vou ler meu livro Cem anos de solidão
E nada melhor que ficar a sós com a voz e o violão
E nada melhor que ficar a sós com violão e voz



* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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