domingo, 4 de janeiro de 2015

CULTURA, POLÍTICA E MODERNIDADE EM NOEL ROSA - PARTE 02

Por Antonio Pedro Tota*



Resumo: A produção musical de Noel Rosa, embora importante, é pouco notada pelo meio acadêmico. A obra deste artista demonstra (evidencia ou participa das) as mudanças na estrutura estética da música popular e, principalmente, consegue captar as transformações da sociedade em época de transição.

Palavras-chave: modernidade; urbanização; samba.


A dívida externa, a nossa dependência e o sentido do progresso foram objetos de várias outras composições do autor em vôo solo ou em parceria. Em 1933, Noel compôs com Orestes Barbosa Positivismo que, como pode ser depreendido pelo título, não tinha como fonte de inspiração nenhum objeto mais prosaico:

A verdade meu amor mora num poço/ É Pilatos lá na bíblia quem nos diz/ e também faleceu por ter pescoço/ O inventor da guilhotina em Paris Vai orgulhosa querida/ Mas aceita esta lição:/ No câmbio incerto da vida/ A libra sempre é o coração/ O amor vem por princípio/ A ordem por base/ O progresso é que dever vir por fim/ Desprezaste esta lei de Augusto Comte/ E foste viver feliz longe de mim/ Vai coração que não vibra/ Com teu juro exorbitante/ Transformar mais esta libra/ Em dívida flutuante.

O progresso enaltecido pelo positivismo liga-se à guilhotina jacobina. O nosso jacobinismo, o da República da Espada, não conseguiu livrar-nos da dívida externa em libra acumulada pelos vários empréstimos. Os juros eram exorbitantes. A Revolução de 1930 retomou a política de valorização do café, produto em queda no mercado consumidor internacional arrasado pela profunda crise do capitalismo. A política de valorização do café, pela queima ou destruição da safra, alterou, ainda que não profundamente, o quadro. A dívida foi postergada: o governo Vargas tomou algumas medidas que contrariavam os interesses dos credores internacionais.

A destruição do café e a crise geral brasileira foram mote para outra canção de Noel. Em Samba da boa vontadecomposto em parceria com João de Barro, em 1931, são apontadas, por meio de uma fina ironia, as mazelas de país dependente em época de crise internacional. A música composta por Braguinha e Noel era contemporânea dos acontecimentos decorrentes da Revolução de 1930:

(...) Viver alegre hoje é preciso/ conserva sempre o teu sorriso/ Mesmo que a vida esteja feia/ e que vives na pinimba/ Passando a pirão de areia 

(...) Comparo meu Brasil/ A uma criança perdulária/ que anda sem vintém/ Mas tem a mãe que é milionária/ E que jurou, batendo o pé/ Que iremos à Europa/ Num aterro de café.

Clara referencia à malversação de nossas riquezas. Riqueza e pobreza eram temas presentes em praticamente toda obra de Noel. Filosofia, samba de 1933, é um dos muitos exemplos: “Mas a filosofia/ Hoje me auxilia/ A viver indiferente assim/ Nesta prontidão sem fim/ vou fingindo que sou rico/ Pra ninguém zombar de mim.” Porém, a riqueza e a pobreza, em Samba da boa vontadereferiam-se ao país e não ao indivíduo. A riqueza jogada no mar, ou seja, o café faria um aterro que daria para chegar na Europa (Jubran, 2000:24). Riqueza de país monocultor-colonial em meio à pobreza generalizada.

Para além da crítica social, a obra de Noel está cheia de signos pessimistas. Mesmos nas canções compostas com certo humor, percebe-se o crescente uso de temas como tristeza, pobreza, felicidade, infelicidade, saúde, paixão, etc. Já em Cordiais saudações, samba de 1931, cantado por Noel acompanhado pelo Bando de Tangarás, o tratamento melancólico da melodia é acentuado pela interpretação do autor:

Estimo que este mal traçado samba/ Em estilo rude, na intimidade/ Vá te encontrar gozando saúde/ Na mais completa felicidade.

O defeito físico de Noel – o queixo afundado – ficava mais notável com a fase adulta e, por isso, evitava grandes reuniões sociais. Entretanto, ele tornava-se cada vez mais conhecido pelas suas músicas. Aos 22 anos já era uma figura pública. Como flaneur buscava nos bares, botequins e cabarés, cada vez mais, seu refúgio. Nestes lugares há uma certa identidade de objetivos dos frequentadores: a busca da felicidade mesmo que efêmera, como pode ser visto em Quem ri melhor, samba de 1936:

Pobre de quem já sofreu nesse mundo/ a dor de um amor profundo/ Eu vivo bem sem amar a ninguém/ Ser feliz é sofrer por alguém/ Zombo de quem sofre assim/ Quem me fez chorar hoje chora por mim/ Quem ri melhor é quem ri no fim.

Numa festa, a anfitriã não conseguiu esconder o espanto diante do defeito físico do compositor. Noel sentiu, e compôs a canção, já mencionada, Mentir (Mentira necessária):

Mentir, mentir somente para esconder/ A mágoa que ninguém deve saber/ Mentir, mentir, em vez de demonstrar/ a nossa dor num gesto ou num olhar/ Saber mentir é prova de nobreza
Para não ferir alguém com a franqueza/ Mentira não é crime/ É bem sublime o que se diz/ Mentindo pra fazer alguém feliz.

A máscara e a face. Uma saída afetiva para serem contornadas as mazelas de uma alma ferida. Em Fita amarela, o conflito entre os opostos inseparáveis, isto é, a vida e a morte:

Quando eu morrer/ não quero choro nem vela (...) Se existisse alma/ si há outra encarnação/ eu queria que uma mulata/ Sapateasse no meu caixão.

Morte anunciada atenuada pela sensualidade. A mulata dançando sobre o caixão representa a vida erotizada. A música de Fita amarela não chega a sugerir algo melancólico, imprimindo vida à letra que fala da morte.

Depois que Noel encontrou Oswaldo Gogliano, o Vadico, as composições ficaram ainda mais melancólicas e pessimistas. É o que acontece com Feitio de oração, a primeira canção que fizeram juntos, música de Vadico e letra de Noel:

Quem acha vive se perdendo/ Por isso agora eu vou me defendendo/ Da dor tão cruel desta saudade/ Que por infelicidade/ O meu peito invade.


cada dia Noel consumia mais álcool. Cervejas e biritas, na expressão de Aracy de Almeida, eram lenitivos e anestésicos para a alma perturbada do poeta. Boêmio, ia dormir muito tarde. Chegava em casa com o sol nascendo. Alimentava-se mal. Começava a trabalhar por volta das 5 horas da tarde. Ia para um bar encontrar outros compositores, ou a uma estação de rádio ou gravadora. A vida amorosa do boêmio Noel era coerente com a busca angustiante de si mesmo: de namoricos no portão às paixões arrrebatodoras pelas damas de cabarés. Uma tocou fundo seu coração, tratava-se de Ceci. Porém, o namoro “sério” foi com Lindaura, mulher de 17 anos, cuja mãe acusou Noel de sedução de menor de idade: ou casa ou vai para a cadeia. Noel preferiu cadeia (Máximo e Didier, 1990:280).


O artista parecia responder, aos que exigiam dele uma satisfação, com sambas como Capricho de rapaz solteiro:

Nunca mais essa mulher/ me vê trabalhando/ Quem vive sambando/ Leva a vida para o lado que quer/ De fome não se morre/ Nesse Rio de Janeiro/ Ser malandro é capricho de rapaz solteiro/ A mulher é um achado/ Que nos perde e nos atrasa/ Não há malandro casado/ Pois malandro não se casa.

A pressão familiar, de ambos os lados, não deixou outra saída senão o casamento. Aos 23 anos, sem festas, Noel parecia entrar em contradição, pois malandro não se casa. Talvez Noel fosse um malandro às avessas, como as letras de suas canções Malandro medroso e João Ninguém. Mesmo assim, encarava o casamento como simples acidente.

Na luta interna que se travava no interior de sua alma, Tanatos parecia levar a melhor sobre Eros. Noel tinha seus pulmões tomados pela tuberculose, doença que atingia parcela considerável dos boêmios. Na mesma proporção que a doença avançava, a situação na casa parecia cada dia mais insuportável. Dinheiro cada vez mais escasso e Lindaura, a esposa, queria trabalhar. Noel respondeu:

Você vai se quiser/ Pois a mulher/ Não se deve obrigar a trabalhar/ mas não vá dizer depois/ que você não tem vestido/ E o jantar não dá pra dois (...).

O médico de Noel, Dr. Graça Melo, sabia que a única saída era a mudança radical de estilo de vida. Isto era impossível para o poeta/moderno/esgrimista que se entregava à boemia, em especial onde trabalhava Ceci, sua amada do cabaré. Eram atitudes suicidas afinadas com a posição do “herói moderno”. Mesmo assim, fez a tentativa: seguiu o conselho do médico e mudou de ares. Foi para Belo Horizonte e, da capital mineira, escreveu ao Dr. Graça Melo:

Já apresento melhoras,/ Pois levanto muito cedo/ E ...deitar as nove horas/ Para mim é brinquedo A injeção me tortura/ E muito medo me mete/ Mas minha temperatura/ Não passa de trinta e sete! (...)

Creio que fiz muito mal/ Em desprezar o cigarro/ Pois não há material/ Para o exame de escarro! (...).

Em Belo Horizonte começou a trabalhar na Rádio Mineira e entrou em contato com compositores, voltando novamente para a noite boêmia. Belo Horizonte tornou-se pequena para o herói suicida. Voltou para o Rio de Janeiro dizendo-se curado. Tuberculose curava-se com tratamento prolongado e o de Noel foi rapidíssimo, ou seja, não estava curado. Voltou a frequentar os bares e a trabalhar na composição de novas canções. No Bar do Ponto, o Dr. Graça Mello encontrou o compositor e o alertou, mas Noel continuou sua saga. Encontrava-se com mais frequência com Ceci, a dama do cabaré. Ela tentava evitá-lo, pois tuberculose era facilmente transmissível. Noel, sentindo-se rejeitado, compôs:

Provei do amor todo o amargor/ Que ele tem/ Então jurei/ Nunca mais amar ninguém (...)

O pai, que estava internado num sanatório, havia se enforcado. Aliás, o suicídio fazia parte da história da família. Durante a juventude do compositor, a avó havia se enforcado em uma árvore no quintal do “chalé modesto”. Profundamente deprimido, Noel bebia, fumava e emagrecia rapidamente.

Tentou, ainda por duas vezes, mudar de ares, mas a proximidade da morte de um poeta angustiado deixava claro que era inútil. No Rio de Janeiro, no chalé com a família, sentado na cadeira, pouco se movimentava.

Almirante (1977) registrou em No tempo de Noel Rosa – livro clássico para os estudiosos da música brasileira – os últimos momentos do poeta da Vila:

No dia 4 de maio [1937] na rua Teodoro da Silva no 385 festejava-se o aniversário de Dona Emília, esposa do violonista Vicente Gagliano (...) Pela noite adentro ouvia-se o conjunto de Heitor que, entre diversos números populares, não deixava de executar as músicas de Noel (...)

Por volta das 21:30hs, enquanto D. Marta [mãe de Noel] e Lindaura no portão se despediam de amigos da família, seu irmão Hélio, vigilante à cabeceira notou que o doente abria os olhos esgazeadamente (...)

Ao fazer um movimento, a mão de Noel se estendeu para a mesinha da cabeceira, em cujo tampo (...) ficou batendo pancadas surdas, ritmadas, esmorecendo (...) Por fim a mão de Noel se quedou imóvel” (Almirante, 1977:213).


Aracy de Almeida e Benedito Lacerda tinham acabado de gravar, naquela mesma noite, Eu sei sofrer, uma das últimas composições de Noel:

Quem é que já sofreu mais do que eu/ quem é que já me viu chorar?/ Sofrer foi um prazer que Deus me deu/ Eu sei sofrer sem reclamar/ Quem sofreu mais do que eu não nasceu/ Com certeza Deus já me esqueceu

Mesmo assim não cansei de viver/ E na dor eu encontro prazer/ Saber sofrer é uma arte/ E pondo a  modéstia de parte,/ Eu posso dizer que sei sofrer (...)


Conflito, crítica e pessimismo estiveram sempre presentes em grande parte da obra de Noel Rosa. Mesmo nas canções mais hilariantes e humoradas, denota-se um certo pessimismo. Conflito entre a vida e a morte. Os limites entre Eros e Tanatos. A poesia conflituosa do poeta urbanista. 


Noel fraquejava diante das forças superiores da modernidade que pesavam sobre seus ombros. Forças desproporcionais. Baudelaire, Balzac, Nietzche sentiram o mesmo. Suicídio e modernidade. Suicídio não como fuga covarde. Benjamin suicidou-se... Não fazer concessões ao ambiente que é hostil ao artista. Tal suicídio não é desistência, mas heróica paixão (Benjamin, 1985; Berman, 1989).




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. 2ª ed. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1977.
BENJAMIN, W. “A modernidade”. In: KOTHE, F.R. (org.). Paris do Segundo Império em Baudelaire. São Paulo, Ática, 1985 (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar – a aventura da modernidade. São Paulo, Cia. das Letras, 1989.
CATANI A.M. e SOUZA, J.I. de M. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo, Brasiliense, 1983.
FAUSTO, B. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo/Rio de Janeiro, Difel, 1976.
FRANK, W. South American Journey. Nova York, Duell, Sloan and Pearce, 1943.
JUBRAN, O.A.J. Noel pela primeira vez. Brasília, Funarte – Ministério da Cultura, 2000 (livreto).
MÁXIMO, J e DIDIER, C. Noel Rosa, uma biografia. Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1990.


* Antonio Pedro Tota é Professor de História Contemporânea do Departamento de História da PUC-SP.

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