sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

CULTURA, POLÍTICA E MODERNIDADE EM NOEL ROSA - PARTE 01

Por Antonio Pedro Tota*



Resumo: A produção musical de Noel Rosa, embora importante, é pouco notada pelo meio acadêmico. A obra deste artista demonstra (evidencia ou participa das) as mudanças na estrutura estética da música popular e, principalmente, consegue captar as transformações da sociedade em época de transição.

Palavras-chave: modernidade; urbanização; samba.


No plano estético, Noel de Medeiros Rosa, ou simplesmente Noel, foi um dos que livrou o samba do ritmo amaxixado, dando uma pontuação mais elaborada e em sintonia com o processo de urbanização. No plano das representações, sua obra pode ser um adequado instrumento para se pensar o paradoxo tradicional/moderno em nosso país. Por exemplo, quando o cinema falado tomava o lugar do mudo, Noel compôs, em 1932, São coisas nossas, uma clara referência ao primeiro filme falado brasileiro – Coisas nossas (Catani e Souza, 1983). A letra do samba revela a tensão entre o moderno e o tradicional, num quase lamento pelo processo de urbanização da sociedade brasileira: Queria ser pandeiro/ prá sentir o dia inteiro/ a tua mão na minha pele a batucar/ Saudade do violão e da palhoça/ Coisa nossa... coisa nossa (...). A sensualidade e a musicalidade da mão tocando na pele do pandeiro/corpo brasileiro despontam a saudade daquilo que está distante e impossível de ser revertido, isto é, o Brasil do sertão, da vida simples e do bucólico da palhoça. A repetição enfatiza a nossa peculiar modernização. Os versos seguintes desnudam a razão básica de nossas contradições: O samba, a prontidão e outras bossas,/ São nossas coisas... São coisas nossas!

Além da bossa e do samba, a prontidão também é coisa nossa. No jargão popular, a palavra pronto significa sem dinheiro e, na música de Noel, o termo prontidão é usado com um claro sentido indicador da miséria, condição da maioria da população brasileira.

Baleiro, jornaleiro/ Motorneiro, condutor e passageiro/ Prestamista e vigarista/ E o bonde que parece uma carroça/ Coisa nossa, coisa nossa (...).

Personagens urbanos, vivendo no limite do miserê (miséria), corporificados nas “profissões”, no cotidiano. Profissões de deserdados, de um lumpenproletariado subproduto da modernidade. Baleiro e jornaleiro – “profissões” de homens sem profissão.

A ideia de que o Rio de Janeiro é a cidade do ócio (sempre tendo como contraponto São Paulo, a cidade do trabalho) (Fausto, 1976) parece se confirmar naquele começo da década de 30: Noel coloca sentados, lado a lado, no bonde da modernidade, o prestamista e o vigarista. O primeiro pode ser identificado tanto com aquele que compra a prestação como com o agiota que empresta a juros extorsivos, explorando os já explorados, enquanto o vigarista, com sutis diferenças, tem aqui quase que o mesmo sentido do agiota: tanto um como outro evitam o caminho mais árduo do batente, para a sobrevivência. Nada de labuta. Nada da inserção no conflito capital-trabalho. O bonde e a carroça. O primeiro é o próprio ícone da modernidade coletivizadora lembrado por um João do Rio, na realidade carioca, ou cantado por um Mário de Andrade, na sua pauliceia desvairada. Eletricidade, apitos de fábricas, chaminés madrugadoras, gramofones e rádios são, afinados ao bonde, os elementos da modernidade. Já é o segundo ícone – a carroça – simboliza o Brasil-sertão-colonial e essencialmente agrário.

Menina que namora/ Na esquina e no portão/ Rapaz casado com dez filhos, sem tostão/ Se o pai descobre o truque dá uma coça/ Coisa nossa, muito nossa!

Tensão no mundo material, tensão no mundo afetivo. Menina que namora no portão guarda restos do namorico inocente, em que o toque de mão seria o gesto mais lúbrico e sacana (tua mão na minha pele a batucar). Esse namorico inocente de portão é posto em cheque com a revelação do namorado rapaz casado com dez filhos (e o que é pior, sem tostão).

Noel é o crítico da sociedade burguesa e de suas contradições em meio ao impacto da modernidade. Burguesia que carecia de uma verdadeira identidade burguesa, isto é, sem a tradição das burguesias forjadas nas lutas liberais de moldes europeus. Daí sua tendência ao mimetismo. Pode-se dizer que essa classe média só vai adquirir identidade com a futilidade
proporcionada pela mídia impressa, radiofonisada e depois televisiva das décadas de 50 e 60.

Noel, como extraordinário crítico da sociedade, é também o flaneur moderno que atribui à multidão uma alma. O artista valia-se de métodos modernos para denunciar o impacto da modernidade. O moderno, em certos momentos, como limitador das manifestações lúdicas do amor, pode ser combatido com a própria modernidade. É o caso de Três apitos, composição de 1933:

Quando o apito/ Da fábrica de tecidos/ Vem ferir os meus ouvidos/ Eu me lembro de você Pois você anda/ Sem dúvida bem zangada/ E está interessada/ Em fingir que não me vê Você que atende ao apito/ De uma chaminé de barro/ Por que não atende ao grito tão aflito/ Da buzina do meu carro? Sou do sereno/ Poeta muito soturno (...).

O flaneur luta contra o apito da fábrica de tecidos, utilizando outro instrumento da modernidade: a klaxon, isto é, a buzina.

Os duelos baudelerianos davam-se entre o proletariado-esgrimista e a modernidade burguesa que o gestava e o aniquilava de um só golpe (Berman, 1989). No Brasil, Noel se aproxima mais da proposta oswaldiana, que apresenta o boêmio (sou do sereno) como o contrário do burguês e não o proletário clássico, expropriado da mais valia marxista. Daí o automóvel, outro ícone da modernidade individualizadora, símbolo da velocidade amorosa dos modernistas/futuristas, usado contra os apitos das chaminés que ferem os ouvidos do homem sensível às transformações antilúdicas amorosas.

Diz-se que Noel tinha ciúme de um guarda-noturno que namorava Josefina, a musa inspiradora de Três apitos. Noel dividia a tecelã com o guarda-noturno, mas tinha outros amores também numa confusão de paixões e desilusões que, sem dúvida, o inspiraram na composição de várias canções:

Mas você sabe/ que enquanto você faz pano/ Faço junto ao piano/ Esses versos prá você.

Relações afetivas pessoais cruzando com a crítica social. Em 1931, Noel entrou em contato com Erastótenes Frazão, importante homem de teatro do Rio de Janeiro e frequentador da Praça Tiradentes, onde estavam localizados o teatro Recreio, vários bares e cafés, ponto de encontro de compositores, jornalistas, artistas, malandros e trabalhadores do teatro. Frazão foi apresentado a Noel por Nássara, chargista e conhecido compositor-boêmio carioca, campeão de concursos de músicas carnavalescas.

Frazão convidou Noel para trabalhar em Café com música, peça inspirada nos bares que serviam café e incluíam, no cardápio, apresentações de sambas de novos compositores. Para a peça de Frazão, Noel compôs Quem dá mais (ou Leilão do Brasil):

Quem dá mais?/ Por uma mulata que é diplomada/ Em matéria de samba e de batucada/ Com as qualidades de moça formosa/ Fiteira e vaidosa, e muito mentirosa

Cinco mil réis, duzentos mil réis, um conto de réis!/ Ninguém dá mais de um conto de réis?/ O Vasco paga o lote na batata/ em vez de barata/ Oferece ao Russinho uma mulata (...).

O primeiro “artigo” brasileiro a ser oferecido é a mulata, logo na primeira estrofe. Noel dá um tratamento à temática que faria arrepiar os estudiosos de gênero e, principalmente, os de etnias, num momento em que o chamado multiculturalismo está em voga. Será fácil fazer uma crítica ao compositor de Vila Isabel sem levar em conta sua época. Mas o tom absolutamente melancólico do leiloeiro que apregoa o “artigo” (tento relativizar o Noel politicamente incorreto com as aspas) sugere ao ouvinte que ele não quer se “desfazer” do “produto”. A mulata metamorfoseada em Brasil insere-se na economia de mercado numa antecipação às privatizações feitas, sintomaticamente, em leilões multinacionais: as qualidades são anunciadas e os lances são repetidos monotonamente. Diplomada em matéria de samba e de batucada. A sensualidade da mulher brasileira é, mesmo num samba mais “político”, tema recorrente: feiticeira, vaidosa... Foram essas qualidades das brasileiras que fizeram Waldo Frank, o intelectual socialista americano da Política da Boa Vizinhança (Frank, 1943), repensar, 11 anos depois, as relações de gênero que trazia de seu país. Claro que às qualidades referidas somava-se a mentira que, para Noel, era positivo (A mulher que não mente não tem valor, do samba Mentir [Mentira necessária] de 1932 gravado por Mário Reis). Quem levou a mulata foi o português do Vasco. Segundo Omar Jubran (2000), no irrepreensível trabalho de recuperação da obra do Poeta da Vila, Russinho, “jogador de futebol mais popular do Brasil”, havia sido premiado com uma barata da Chrysler, como eram chamados os automóveis esportivos na época. Mas Noel troca semanticamente a barata por uma mulata, e passa na segunda estrofe a oferecer outro produto, marca da brasilidade: 

(...) Quem dá mais.../ Por um violão que toca em falsete,/ Que só não tem braço, fundo e cavalete/ Pertenceu a dom Pedro, morou no palácio/ Foi posto no prego por José Bonifácio

Vinte mil réis, vinte e um e quinhentos, cinqüenta mil réis!/ Quem arremata o lote é um judeu/ quem garante sou eu/ Pra vendê-lo pelo dobro no museu (...).

Noel sugere nossa desestruturação cultural: o violão tocando em falsete, um violão que só existe na metáfora. O artigo foi posto no prego pelo patriarca da independência, como forma de levantar fundos para tapar os buracos da nossa dívida externa feita por D. Pedro. O lote, talvez de violões que pertenceram ao imperador, foi arrematado por um judeu. Só mesmo ignorando a História e a  historicidade de Noel para acusá-lo de anti-semita, como fez “Jorge Mautner, romancista de Kaos e músico de uma indefinida vanguarda pop [que] preferiu esquecer o Noel compositor e letrista” (Máximo e Didier, 1990:491). Isto porque, em Cordiais saudações, Noel já havia se empenhado nas mãos de um judeu: “Estimo que este mal traçado samba/ Em estilo rude na intimidade/ (...) A vida lá em casa está horrível/ Ando empenhado nas mãos de um judeu”. E o leilão do Brasil continua:

Quem dá mais.... quem dá mais?/ Quem dá mais de um conto de réis?/ Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três/ Quanto é que vai ganhar o leiloeiro/ Que também é brasileiro/ Que em três lotes vendeu o Brasil inteiro/ Quem dá mais?????

À venda estava o Brasil lúdico, do samba que exprime dois terços do Rio de Janeiro, expressão da singularidade cultural brasileira. Assim, Noel aponta, seguindo uma tradição de pensadores do porte de Dunshee de Abraches, Manoel Bomfim, Silva Jardim e Lima Barreto, a submissão de uma classe dominante em relação ao capital estrangeiro.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. 2ª ed. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1977.
BENJAMIN, W. “A modernidade”. In: KOTHE, F.R. (org.). Paris do Segundo Império em Baudelaire. São Paulo, Ática, 1985 (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar – a aventura da modernidade. São Paulo, Cia. das Letras, 1989.
CATANI A.M. e SOUZA, J.I. de M. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo, Brasiliense, 1983.
FAUSTO, B. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo/Rio de Janeiro, Difel, 1976.
FRANK, W. South American Journey. Nova York, Duell, Sloan and Pearce, 1943.
JUBRAN, O.A.J. Noel pela primeira vez. Brasília, Funarte – Ministério da Cultura, 2000 (livreto).
MÁXIMO, J e DIDIER, C. Noel Rosa, uma biografia. Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1990.



Antonio Pedro Tota é Professor de História Contemporânea do Departamento de História da PUC-SP.

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