segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

MÚSICA, ÍDOLOS E PODER (DO VINIL AO DOWNLOAD) - PARTE 28



CAPÍTULO 28 

Sempre fiquei muito atento ao meu redor. Consultava frequentemente meus artistas porque eles eram, e são até hoje, uma fonte inesgotável de ideias, simplesmente porque pensam nas suas carreiras e criações dia e noite. Eu lhes perguntava sobre projetos próprios ainda não realizados, conversava com pessoas de outros setores criativos, e nunca deixava de consultar meus colaboradores para saber se haviam tido alguma ideia original. Meu talento profissional, além de competente administrador de empresas, era saber identificar uma boa ideia e depois trabalhar duro para transformá-la em realidade. 

E o meu saber escutar foi responsável por gravações que hoje fazem parte da história da MPB, e que foram extremamente bem-sucedidas, artística e comercialmente falando. Todos os projetos que reúnem artistas que se admiram pessoal e profissionalmente são fascinantes pela interação, que provoca uma atmosfera excitante, e seus resultados são surpreendentemente mágicos. Algumas vezes esses momentos eram o resultado dessa minha busca, mas outras vezes chegavam a mim em formas inusitadas... de desafios. 

Um dia, em Salvador, almoçava com um grupo grande de amigos da Maria Bethânia e do Caetano, quando um arquiteto ou advogado — cujo nome não me recordo — sentado ao meu lado me provocou com certa ironia, como sabem fazer tão bem os baianos: 

—Você, que é o tal todo-poderoso do disco... Quero ver você reconciliar o Caetano e o Chico... Quero ver você botar os dois no palco juntos! 

— Por favor, você deve estar brincando! — respondi. 

É bom lembrar que, naquela época, os fãs de um detestavam os fãs do outro, de tal maneira que uma rivalidade se estabeleceu entre Caetano e Chico, sem que eles mesmos tivessem algo a ver com a situação, e a imprensa alimentava a suposta rixa. 

Uns meses depois do almoço, pensei na sugestão louca de reconciliar os dois, o que na verdade significaria desmistificar aquela bobagem entre dois artistas da maior importância e da maior seriedade. Num jantar com Caetano, papo vai, papo vem, e acabei perguntando: 

— Caetano, estive pensando que talvez seja a hora de acabar com esse mal-estar com o Chico, o que você não acha? 

— André, eu não tenho nada contra o Chico, bem pelo contrário. Gosto muito dele e também concordo que essa história é uma bobagem. 

Posso falar, então, com Chico ? 

Pode, sim... 

Jantei com o Chico, acompanhado da Marieta Severo, e rolou a mesma conversa: 

Não tenho nada contra o Caetano. Mas depende dele. Se ele quiser, por mim tudo bem… 

Chico, fique sabendo que eu já falei com Caetano e ele concorda inteiramente em acabar com essa estupidez... 

Após várias reuniões com Guilherme Araújo e Roberto Santana, chegamos à conclusão de que a chamada reconciliação deveria acontecer publicamente num concerto, na Bahia, no Teatro Castro Alves. No dia 10 de novembro de 1972, estávamos todos nervosos: o ensaio havia sido tumultuado; a passagem de som, incompleta; Chico e o MPB4 beberam bastante durante o almoço; e eu, como para esquecer, dormi a tarde inteira numa rede, ali mesmo num jardim onde estávamos almoçando... Só Caetano estava sereno. 

À noite, Caetano e seus músicos, e Chico com o MPB4 , cada um instalado de um lado do palco, deram partida ao concerto com o teatro repleto, numa atmosfera cada vez mais entusiasmada. A gravação, por milagre, transcorreu normalmente; sua qualidade excelente, pelos padrões da época, nos proporcionou um disco memorável: Caetano e Chico juntos e ao vivo. 

— Existe um artista com quem você sonha gravar? — perguntei, um dia, a Maria Bethânia . A resposta foi imediata e contundente: 

— Com o Chico, sem dúvida! Adoro ele, mais do que qualquer outro artista. Menos do que o Caê, claro... 

Poucos dias depois, nessa deliciosa rotina de jantares, contei ao Chico minha conversa com a Bethânia e deixei a pergunta no ar: 

E você, Chico, gostaria de gravar com Maria? Ao que Chico, sem a menor hesitação, respondeu: 

Na hora que ela quiser... 

Na semana seguinte, por acaso, encontrei Mário Priolli , que estava em busca de um artista ou de uma ideia para um espetáculo no Canecão. Evidentemente, a visão de uma temporada “Chico Bethânia ” foi forte demais para ele pensar em outra alternativa. Ruy Guerra, Perinho Santana e Osvaldo Loureiro puseram a mão na massa para dirigir o show e a Companhia de Discos se instalou na mesa de gravação, os ensaios correram normalmente e a noite de estreia reuniu todo o Rio de Janeiro. A censura proibiu Chico de cantar “Tanto mar”, música inédita, os microfones pifaram algumas vezes, sem por isso afetar o entusiasmo dos artistas e sobretudo do público, e o espetáculo terminou com a entrada da escola de samba Mocidade Independente. O disco Chico Buarque e Maria Bethânia ao vivo foi um dos maiores sucessos da história da MPB. 

Elis ia celebrar dez anos de carreira em 1974, aniversário que merecia de todos nós a maior atenção. Menescal e Armando Pittigliani, em particular, queriam produzir um disco espetacular, memorável! Porém... Qual? Essa era a questão. 

Aqui entra em cena Roberto Oliveira, que eu conhecera alguns anos antes, recém-formado, quando ele me propôs vender discos em universidades de São Paulo. De nossas conversas nasceu o “Circuito Universitário”, inicialmente com venda de discos e produção de shows nas faculdades da capital e do interior do estado. Agregamos ao projeto Benil Santos , empresário de Vinicius e Toquinho, que acabou sendo de uma importância capital para os estudantes naquela época de ditadura. 

Reaparece, então, Roberto Oliveira, sob a figura de administrador da carreira de Elis Regina. Cansada de ter muito sucesso popular e nenhum prestígio dentro da classe, Elis pensou, com razão, que o primeiro passo era separar-se do Marcos Lázaro, seu empresário de muitos anos, e convidar o Roberto Oliveira para o posto. 

Voltando aos dez anos de carreira da Elis, em consenso com Roberto Oliveira, Menescal, Armando e eu pensamos que Tom Jobim seria o parceiro ideal para a celebração. “O maior compositor do Brasil em dueto com a maior cantora do Brasil.” Elis e Tom . Roberto Oliveira e Menescal ficaram responsáveis por falar com Elis, e eu, com Tom, que vivia em Los Angeles. A gravação inesquecível da Elis em “Águas de março” tinha aproximado os dois pouco antes. De tal maneira que a resposta foi imediata, entusiasta. Por sorte, Aloysio de Oliveira, que também residia em Los Angeles, era o produtor ideal da gravação do disco, enquanto Roberto providenciava a filmagem do acontecimento. Dois concertos com Elis e Tom , um no Rio e o outro em São Paulo, celebraram o lançamento desse disco, um dos mais importantes marcos da música popular brasileira. 

É natural que nem todos os projetos dessem certo. Porém, lamento particularmente o fracasso de um encontro musical proposto por João Gilberto, que previa a gravação ao vivo de um especial de TV, na então ainda poderosa Tupi, em co-produção com a nossa gravadora, com a participação da Gal e do Caetano. O LP seria lançado simultaneamente com a apresentação do programa na televisão. Em 1972, creio que João Gilberto morava em Roma. Caetano, ainda exilado, estava em Londres. Gal era a única a viver no Brasil. Tia Léa, responsável pelos contratos e prestação de contas de muitos artistas, e João Carlos Müller, diretor jurídico da companhia, conseguiram com grandes dificuldades que os militares deixassem Caetano vir ao Brasil por poucos dias. 

A TV Tupi de São Paulo tinha disponibilizado totalmente um de seus estúdios principais durante três dias e três noites para os artistas trabalharem sem interrupção e com toda a tranqüilidade, protegendo, assim, o caráter intimista do encontro. Até mesa de pingue-pongue havia. As câmeras ficaram permanentemente ligadas, assim como os equipamentos de gravação de áudio, para registrar tudo o que fosse acontecer — inclusive as conversas entre os artistas, que poderiam ser interessantes para reprodução no programa e no disco. 

As gravações se desenrolaram normalmente. Caetano voltou para Londres. Manoel Barenbeim e os produtores de TV fizeram uma primeira edição, e Manoel me mandou uns dez rolos de fita para que eu selecionasse o material que me parecesse mais interessante. Sendo de João Gilberto a autoria do projeto, mandei uns cinco rolos para sua aprovação e seleção final. João me devolveu um mero meio rolo de fita. Nada tinha sobrado dos registros do Caetano — nem o canto, nem os ótimos comentários e conversas. E da Gal , somente uma canção em dueto com João. Supondo que João estivesse certo na sua apreciação do resultado musical do encontro, lamentei profundamente que ele não tivesse considerado a importância simbólica que aquele programa de TV, em horário nobre, com a presença de um Caetano exilado, pudesse significar em plenos tempos de ditadura militar. 

Robert Stigwood, naquele momento um dos homens mais bem-sucedidos do music business mundial, produtor de Jesus Christ Superstar, de Saturday Night Fever e de Evita, além de manager dos Bee Gees e do Eric Clapton , me ligou de Londres, informando que ele e o Clapton viriam passar uns dias de férias no Rio, naquele ano de 1975. Robert disse que o Eric gostaria de participar de uma reunião para encontrar os artistas brasileiros que eu achasse oportuno. Convidei Gil, Erasmo, Rita Lee, Caetano, Jorge Ben , Nelson Motta e Cat Stevens para um jantar em minha casa. 

O Eric chegou com uma magnífica guitarra branca. Gil, Jorge e Stevens estavam com seus violões ou suas guitarras. Sentados em círculo no chão, Jorge, Gil, Stevens e Clapton deram início a uma incrível jam session. (Não creio que Rita e Caetano tenham participado. E, se participaram, foi bem no início.) Cat Stevens foi o primeiro a sair: 

— Eu não sou guitarrista para enfrentar isso — disse. 

Pouco depois, foi a vez do Clapton largar sua guitarra e se transformar num espectador fascinado. 

De tal maneira que ficaram o Jorge e o Gil tocando um frente ao outro, visitando mundos musicais estranhos e desconhecidos para mim, um comum mortal que assistia ao concerto como a um desafio entre cavaleiros medievais africanos. O Gil improvisava, dava voltas e voltas de assustadora virtuosidade, enquanto o Jorge, impávido, conservava a sua essência fundamental, que é o ritmo. De vez em quando, à custa de vertiginosas manobras, Gil se apoderava do ritmo por minutos, que Jorge retomava; outras vezes, seguravam o ritmo juntos. Minha sensação era que tinham se fundido por uma força magnética poderosa. 

Ao final, encharcados de suor da cabeça aos pés, exaustos, aterrissaram de volta ao planeta, mais do que felizes com a viagem que tinham feito, aliviados por terem tido a generosidade de atingir, por instantes, lugares que devem compor o verdadeiro e real Paraíso... Minutos depois, antes que todos fossem embora, e ainda celebrando aquela festa, pedi aos dois que entrassem em estúdio o mais rápido possível para registrar aquela importante colaboração artística, sob a supervisão de seus produtores, Paulinho Tapajós e Perinho Albuquerque. Dali nasceu o antológico álbum duplo Gil e  Jorge.

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