CAPÍTULO 16
Havia muito eu não morava mais no Leblon. Por um tempo, aluguei um amplo quarto-e-sala de uma moça de costumes mais do que ligeiros, na avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Posto 6, em cima da delegacia. Ela sempre me dizia:
— André, não vá à rua pegar qualquer mulher… Se precisar, lembre-se de que você é meu inquilino... Fale comigo!
Depois, fiquei num “quarto-e-quitinete” na sempre agitada rua Duvivier e, por fim, herdei o confortável apartamento “sala-e-dois-quartos” do maestro Leo Peracchi , na rua Domingos Ferreira, em Copacabana. Aloysio, que estava namorando Sylvinha Telles, era, assim como Caymmi e Dolores Duran , um frequentador assíduo do meu recém-adquirido palácio, além, claro, do pessoal da “turma da bossa nova”.
Pela primeira vez na vida, apaixonei-me. Ela se chamava Jerusa , era amiga da Lila Bôscoli, e pertencia à nova geração de mulheres modernas e liberadas que iria abrir caminho para o nascimento da “Garota de Ipanema”. Fiquei tão apavorado pelo tumulto que esse amor provocou que simplesmente fugi dela, em pânico, para lamentar minha covardia por muito tempo.
A Odeon não vivia só da bossa nova, ainda incipiente no início da década de 1960. Anísio Silva, Trio Irakitan, Dalva de Oliveira, Hebe Camargo, Demônios da Garoa, Gregório Barrios, Elza Soares, Celly e Tony Campelo, sem esquecer o Dorival, ocupavam a maior parte do nosso tempo. Foi através de um deles, o recém-contratado Orlando Dias, que adquiri o conhecimento talvez mais importante da minha carreira.
Em uma certa manhã, o Ismael Correa, gerente de vendas da Odeon Rio, chegou ao estúdio, sentou-se com Aloysio, que me chamou, e nos propôs gravar um protegido do velho Abraão Medina, dono da prestigiosa e poderosa loja O Rei da Voz, a mais importante do país e que patrocinava programas musicais nos horários nobres da TV Rio, sob a direção do controvertido Flavio Cavalcanti .
Era o tipo de proposta temida nos departamentos artísticos e promocionais, por ser um engodo que se voltava contra a gravadora no desenrolar dos acontecimentos: em geral, o artista, muito ruim e sem o sucesso esperado, fazia o lojista atribuir à gravadora o fracasso do seu protegido.
— Porra, Ismael , aí vem você com essa conversa fiada! — disse eu.
Mas era difícil recusar um favor ao gente fina do Ismael. De tanto insistir, ele conseguiu o acordo:
— Ok, Ismael. Vai ter piano, baixo, bateria e acordeom. E só!
Dias depois, ao entrar no estúdio, e na hora de tomar o primeiro cafezinho do dia, passei pela sala de corte de acetatos e vi que todo o pessoal — inclusive o simpático “Nelson do Café” — estava enfurnado na sala, escutando com grande entusiasmo uma gravação de um artista que eu não conhecia, e que me parecia de qualidade mais do que duvidosa.
— Gente, o que é isso?! — perguntei.
— É o cantor do Ismael!!! — responderam com entusiasmo. Pensei:“Isto não vai dar certo, é ruim demais! E o velho Medina vai ficar puto com a gente.”
Depois de algumas semanas, e para meu espanto, a tal música estourou no país inteiro. Era sucesso absoluto em todas as emissoras de rádio e já tinha atingido vendas superiores a cinqüenta mil cópias, de maneira totalmente espontânea, sem ninguém ter promovido o disco de 78 rpm. Evidentemente, pouco depois voltou o Ismael, cheio de moral, com a cara de dever cumprido e o peito estufado:
—Viu, seu francês que não sabe de nada...Viu? Agora vamos gravar outro 78 rpm, não é? Frente a esse sucesso, Aloysio e eu nada podíamos dizer. E lá foi outra vez o cantor para o estúdio. A segunda canção foi lançada no mercado e... pimba! Outro sucesso arrebatador, maior do que o primeiro. O homem se chamava Orlando Dias .
Que uma música medíocre pudesse vender muitos discos não era realmente uma novidade. Porém, nesse caso, a música e seu intérprete eram demasiadamente estranhos para justificar a febre do público. Devia ter um motivo. E qual era o segredo? De qualquer maneira, era hora de conhecer pessoalmente o Orlando, uma vez que ele se consolidava como um dos campeões de vendas do mercado. Convidei-o para um papo na Odeon. Na hora marcada, o “Nelson do Café” apareceu à minha porta e, com satisfação espelhada no rosto e o sorriso estampado, disse:
— Chefe, aí está o Orlando …
Orlando entrou humildemente, como se estivesse assustado de conhecer uma autoridade. Era muito baixinho, os olhos enormes, o da direita quase que pulando para fora, calvo, seboso e vestido com uma pobreza que dava pena. Fiquei tão estupefato que, para esconder meu embaraço e sem saber como introduzir a conversa, pedi que contasse algo de sua vida, de onde vinha, como tinha chegado ao Rio, e que falasse também de suas canções. Ele contou essa comovente história, com o forte sotaque particular do nordeste pernambucano:
— Bem, doutor, lá no sertão, no interior de Pernambuco, éramos 12 filhos, o pai e a mãe. Meu pai morre, minha mãe, coitada, morre também. Morrem em pouco tempo seis dos meus irmãos. Eu, com 16 anos, o mais velho, tive que cuidar dos irmãos que sobraram. Aí, casei com uma moça para ela me ajudar em casa. Ela tinha uns 13 anos. Acontece que ela ficou logo grávida, e não é que, nove meses depois, morre ela também ao dar à luz meu filho, que afinal morre também... Desse dia em diante, doutor, não tive mais sossego… Não é que ela voltava toda noite e me acusava de ter matado ela por causa do meu sexo?! Fiquei desnorteado! Eu chorava, implorava, jurava meu amor.... E de nada adiantava. Na noite seguinte, para meu desespero, ela aparecia de novo, doutor, com a mesma queixa.
Depois de viver um longo tempo com esse tormento, uma noite fiz um trato com ela:“Eu vou te fazer canções, para te provar o meu amor e acalmar a tua dor. Em troca, você não me maltrata mais.”Assim, fiz muitas canções, que eu cantava para ela durante as noites. E creio que ela deve ter gostado, porque se tranqüilizou e nunca mais voltou a me atormentar…
Eram quatro dessas canções que ele tinha gravado. E que se tornaram grandes sucessos. Fiquei petrificado ao ouvir tão triste relato, impressionado e transtornado pela simplicidade e naturalidade da sua fala, sobretudo intrigado para entender por que o público gostava das melodias medíocres, das letras desesperadas e rudimentares, no cantar desafinado do Orlando.
Eu contava essa história para todos, esperando encontrar alguém que me desse alguma luz para compreender o que, há cinqüenta anos, entre 1958 e 1959, me parecia incompreensível: por que vendiam espontaneamente Orlando Dias ou Anísio Silva e não vendiam Sylvia Telles ou Lúcio Alves , nem com todo o esforço de promoção?
De vez em quando, eu jantava com um amigo do Chico Pereira chamado Aldyr Nunes, um publicitário carioca de renome que cuidava das campanhas publicitárias da Ducal. Uma noite se juntaram a nós Gabriel , um conhecido psicólogo, e mais algumas pessoas, entre as quais o jovem e exuberante psicanalista Hélio Pellegrino. Contei mais uma vez a perplexidade que o “episódio Orlando ” me causava e, dessa vez, em vez de escutar explicações esdrúxulas, saí do jantar fascinado pelas viagens estranhas e fascinantes nos meandros do consciente, do subconsciente e do inconsciente coletivo, que Hélio e Gabriel fizeram desfilar entre o prato principal e o cafezinho.
Comecei, então, a entender que o que o cantor e sua música diziam não era tão importante quanto a maneira como o diziam, e como o que diziam dependia da genuinidade do sentimento que vinha do fundo da alma. Quando o público carregava um sentimento similar, identificava se com o cantor através do inconsciente coletivo. E a canção, como tal, se restringia a um pretexto, e era meramente um fio condutor da empatia entre o cantor e o público. Visto através desse prisma então revolucionário, a gente podia compreender que o espiritismo e o tormento expressados pelo Orlando Dias através da sua música e do seu cantar eram porta-vozes do inconsciente coletivo do povo nordestino emigrado do sertão para as cidades. Essas eram as razões do seu sucesso.
Foi a partir desse momento, através de um longo aprendizado, que me exercitei pouco a pouco a ouvir muito mais a alma do artista do que propriamente escutar a beleza de sua canção e de sua voz. Anos mais tarde, deixaria aos meus diretores artísticos e seus talentosos produtores o cuidado de avaliar a estética das melodias, das poesias e das vozes, cabendo a mim o cuidado de penetrar na personalidade do artista e avaliar seus atributos de narcisismo, de sofrimento, de raiva, de doçura, de ódio, de ternura, de agressividade, de determinação, de ambição, de liderança. A compreensão desse meu papel iria se tornar cada vez mais preponderante na condução da estratégia da(s) companhia(s) que eu viria a dirigir ao longo dos anos.
Assim, de imediato, meus psicanalistas e eu nos encontramos diversas vezes com alegria e crescente entusiasmo, conscientes das possibilidades que se abriam diante de nós por meio desse novo brinquedo de poder; talvez avaliar a possibilidade de um artista se tornar uma estrela ou um líder logo no início da carreira. A gente quis também comprovar se era possível orientar de maneira mais adequada e certeira a imagem do artista perante o público. Estava para nascer o marketing psicanalítico!!!
A primeira experiência aconteceu semanas mais tarde, sob a batuta do Ronaldo Bôscoli, ao lançarmos o primeiro LP do próprio Orlando. Anunciamos na Rádio Nacional que Orlando iria pagar uma promessa para sua mulher no sábado seguinte, a partir das onze da manhã, andando da avenida Rio Branco, em frente ao edifício São Borja, até a Rádio Nacional, na praça Mauá. No dia e na hora determinados, Orlando, pagando sua promessa, começou a varrer o chão da calçada da avenida, e logo apareceram várias pessoas, com velas na mão, rezando a Deus. Duas horas mais tarde, ao chegar à Rádio Nacional para participar do importante programa de César de Alencar em cadeia nacional, Orlando estava acompanhado triunfalmente por mais de mil pessoas, todas rezando, cantando suas canções, com velas na mão. Essa primeira experiência foi um sucesso.
A segunda tentativa foi um fracasso total. Bôscoli queria trabalhar com o racismo latente na sociedade brasileira ao lançar o LP da Elza Soares.
Vestimos Elza com roupas adequadas, arranjamos um jovem mulato bem simpático e bem vestido para acompanhá-la ao bar Sacha’s, reduto da grã-finagem carioca, onde provavelmente pessoa alguma de cor já tinha entrado como cliente, naqueles idos do final de 1959. Colocamos vários fotógrafos da Manchete e da Última Hora a postos para flagrar a expulsão dos dois.
Foram recebidos pacificamente pelo leão-de-chácara e, primeira surpresa: entraram! Daí, Bôscoli e eu ficamos esperando por um longo tempo e nada da Elza sair da boate... Até que a gente, já impaciente, decidiu entrar no Sacha’s e ver qual era a situação. Para nossa decepção, Elza estava cantando e dançando no meio da pista, sob os aplausos entusiasmados dos grã-finos... Uma festa incrível. E Elza, minha Deusa de Chocolate, era a Rainha da Noite!
0 comentários:
Postar um comentário