Orfã de pai e mãe desde os seis anos de idade, caçula da prole de seis filhos de Manoel Pereira de Araújo e Amélia Gonçalves Nunes, Clara Francisca Gonçalves foi criada pelos irmãos mais velhos, José Pereira Gonçalves e Maria Pereira Gonçalves, mais conhecidos na pequena Caetanópolis como Zé Chilau e Mariquita. Na noite de 3 de setembro de 1957, em defesa da honra da irmã, ele assassinou a facadas o menor Adilson Alvarez da Costa, cujo pecado mortal foi expor a amigos supostas intimidades que havia tido com a bela menina Clara. Delatado pela vítima antes de desfalecer, não restou outra alternativa a Zé Chilau a não ser fugir. Na ausência do verdadeiro culpado, Clara assumiu a condição de ré perante o julgamento moral infligido pela população de Caetanópolis. O verdito? Foi condenada sem direito a apelação, excluída de toda e qualquer atividade social, e se viu obrigada a partir para Belo Horizonte. Se os primeiros tempos na capital foram de dificuldades e privações - trabalhava o dia inteiro em uma tecelagem e morava de favor em um barraco de três cômodos dividido com parentes distantes -, a tragédia que se abateu sobre a sua vida, e que ainda a acompanharia por alguns anos, foi decisiva para que ela viesse a ter a oportunidade de tentar a sorte como artista.
O primeiro do capítulo do livro do jornalista Vagner Fernandes emprega artifícios literários para colocar o leitor no centro do furacão que tomou de assalto a vida da menina Clara, então com 15 anos recém completados. Evento que, por vias tortas, foi definitivo para que ela se tornasse Clara Nunes, a cantora brasileira mais popular de sua época.
Clara Nunes - Guerreira da Utopia narra os primeiros anos da vida da cantora com riqueza de detalhes. O autor reporta os fatos como se tivesse acompanhado a gênese da família Pereira Gonçalves e a juventude de Clara. Em um segundo momento, a partir da mudança para Belo Horizonte, a narrativa abandona eventuais pretensões literárias e assume a objetividade jornalística que vai pautá-la até o fim. Vagner Fernandes dá voz a testemunhas fundamentais do ingresso da jovem no ambiente musical capital mineira, aos avalistas de seus primeiros contratos radiofônicos e àqueles que apostaram em sua consagração regional definitiva no concurso "A Voz de Ouro ABC". Os depoimentos de Aurino Araujo, primeiro namorado sério de Clara e que seria o responsável por facilitar sua mudança para o Rio de Janeiro, revelam a insegurança e os dilemas vividos pela cantora em sua chegada à antiga capital federal. Foi na casa que ele mantinha no Rio de Janeiro que Clara conviveu com Carlos Imperial, que, embora não acreditasse no potencial daquela "caipira", como ele costumava se referir a ela em conversas com o amigo, foi o autor de seu primeiro sucesso: "Você passa, eu acho graça". A essa altura, Clara já tinha contrato assinado com a Odeon, gravadora que lançou seu primeiro LP - A Voz Adorável de Clara Nunes -, cujas vendas foram um fracasso absoluto.
Estes são fatos mais ou menos notórios. As revelações mais interessantes que o autor faz a respeito deste período dizem respeito ao flerte indeciso que Clara travou com a Jovem Guarda - mais uma escolha infeliz haja visto que a febre musical do momento era a Tropicália, capitaneada por Gil e Caetano, cujas propostas estéticas e intelectuais ousadas empurraram para o limbo midiático os roquinhos de Roberto, Erasmo e sua turma -, às suas participações sem destaque nos diversos festivais da época, ao rolo com a ditadura por ter gravado "Apesar de Você" - em contrapartida teve que gravar o Hino da Olímpiado do Exército -, e à descoberta da umbanda, evento que de alguma forma seria um primeiro passo inconsciente rumo à consolidação da identidade artística e espiritual da cantora, até então kardecista.
A partir do momento em que Paulo César Pinheiro entra na vida da cantora, o autor afasta a narrativa do núcleo íntimo de Clara para recorrer muito mais à memória coletiva da época, à pesquisa bibliográfica e a pessoas não tão próximas, do que àqueles que conviveram diretamente com ela. Um pouco disso está explicado nas entrelinhas: depois do casamento com Paulo César, muito em respeito ao novo companheiro, Clara torna-se mais reclusa. O autor faz questão de sublinhar que não foi Paulo César, sozinho, o responsável por esta mudança de atitude. Provavelmente não foi mesmo. Sempre muito expansiva, frequentadora da quadra da Portela, das rodas de samba, dos terreiros de candomblé, da casa de amigos, Clara queria ter filhos, constituir uma família e havia encontrado em Paulo César o parceiro ideal.
Mesmo agora, muitos anos depois, ele parece negar-se a uma maior exposição da época em que foram casados. Pouco se fica sabendo deste período pelas palavras do ex-marido. Este escudo em nome de uma privacidade póstuma, mantém algumas lacunas a respeito da atividade musical da cantora a partir do momento em que Paulo César assume a produção de seus discos e, juntos, os dois amplificam a pesquisa de gêneros e estilos musicais brasileiros que Clara já vinha desenvolvendo.
Clara manteve ao redor de si ao longo da carreira um círculo de compositores fiéis como alguns bambas da Velha Guarda da Portela, Nelson Cavaquinho, a dupla Romildo e Toninho, Mauro Duarte, João Nogueira, assim como sempre foi acompanhada em suas apresentações ao vivo pelos músicos do Conjunto Nosso Samba, desde sua adesão ao gênero até os últimos shows. De sua relação com eles pouco se fica sabendo através do livro. É verdade que, por outro lado, o convívio com Chico Buarque ganha bastante espaço em suas páginas, assim como é esclarecedor o depoimento de Paulinho da Viola sobre uma amizade que na verdade se resumiu a encontros ocasionais e a apenas duas músicas dele gravadas pela cantora: "Na linha do mar" e "Coração Leviano".
Não soa verossímil também a idealização da personagem operada pelo autor em afirmações recorrentes subtraindo todo e qualquer defeito ou incongruência que Clara pode ter demonstrado em um ou outro momento de sua vida. Não é algo comum ao ser humano, quanto mais no meio artístico, e a rivalidade com Beth Carvalho, assunto que injustamente é o que tem rendido mais espaço na mídia a propósito do lançamento da obra, mesmo sendo o único contraponto a uma conduta sempre irrepreensível, serve como prova em contrário. Com isso não se pode dizer que Beth tenha razão em suas críticas, pois sempre foi e sempre será uma sambista de menor estatura diante da multiplicidade musical de Clara, independentemente de qual das duas tenha sido a primeira a gravar um samba ou se vestido de branco para cantar. Pelo contrário, soam ainda mais levianas quando se leva em consideração que Clara não está mais aqui para dar a sua versão da história. Beth recorre a fuxicos como esse para não ser esquecida em vida, pois há tempos sua música sobrevive de regravações moribundas. Postas lado a lado, as obras de uma e de outra falam por si. A História com H maiúsculo Clara Nunes escreveu cantando. Historinhas menores como a de Beth existem muitas por aí.
Nos próximos dias, aproveitando o lançamento deste belo documento à memória de Clara Nunes, o Blog do Pindzim prestará a sua homenagem revivendo alguns momentos musicais e curiosidades biográficas daquela que foi em sua época a mais popular entre todas as cantoras e, hoje, sem dúvida, ainda que não seja totalmente reconhecida por isso, é a maior influência, consciente, inconsciente ou, talvez, sobrenatural, sobre a nova geração de mulheres que vai buscar no samba e nos ritmos regionais brasileiros a inspiração para os seus cantos. Guerreira, todas devem reverência a você. E todos nós à sua música.
Oxalá, Clara Nunes.
1 comentários:
Amei a sua definição de Beth Carvalho!
Amei a sua definição de Clara Nunes!
Francisco Carlos.
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