quinta-feira, 21 de junho de 2018

DEUSAMÚSICA - UM OLHAR RELATIVO SOBRE DISCOS ABSOLUTOS

Por Ricardo Moreira






Zé Ramalho (1978)


Mais do que representar uma novidade vinda do Brejo da Cruz – sua cidade natal na Paraíba, Zé Ramalho surgiu causando verdadeiro espanto na cena musical brasileira de 1978. Depois de arrastar correntes por longos corredores multinacionais no tempo em que essa era a única saída ou porta de entrada para o sucesso, foi a CBS - hoje Sony Music - a gravadora que teve coragem de encarar sua combinação extravagante de letras proféticas em melodias e timbres lúgubres aparentando alertar que algo muito importante que estava para acontecer. Pura premonição. 

Na complexa trama litero-musical de seu primeiro álbum, era como se o artista, oitenta anos depois de exterminado o Arraial de Canudos, exumasse Antonio Conselheiro prum tête-a-tête com o fantasma de Aldous Huxley ao som do aço afiado de Dylan e do resfôlego de Luiz Gonzaga. Simples assim (!). Colisões estéticas como estas e outras osmoses ainda mais insondáveis brotavam com bravura retirante do chão rachado que ilustra o encarte do primeiro disco de Zé Ramalho. Sua arte parecia brotar do impossível chão com a missão de fazer justiça e não prisioneiros. Sem estar nem aí para os medos de nós mesmos ou do futuro já plasmado por aquela sociedade brasileira refém entre o extremo abandono e o legado de um patriarcado totalitarista, Zé Ramalho era o bicho pegando e correr parecia ser a pior opção. 

O artista recompunha com seu aparecimento a trova nordestina encabeçada por Fagner, Alceu, Ednardo, Geraldinho e Belchior desde a metade anterior da década como uma espécie de reforço temporão. Aterrissando mais de 10 anos depois do “Arrastão” de Elis (Hélice) Regina elevar novamente a estética nordestina “à altura” da intelligentsia burguesa, sua música não pretendia servir arte vitalina, carboidrato macaxeiro ou animar o forró da Feira de São Cristóvão carioca, trazia sim, uma nova essência já maculada pelos avanços da linguagem estabelecidos por Raul Seixas e outras moscas na sopa da MPB do N(orte). Como todos os artistas brasileiros da música nascidos na barriga da miséria nordestina, sua carência não era meramente proteica. José Ramalho Neto viera passar o seu chapéu oferecendo em troca a riqueza dessemelhante de seu estilo de compor e cantar como um cidadão do mundo por acaso nascido a pouco mais de 4 graus de latitude no semiárido brasileiro. 

A primeira faixa (ou seria melhor definir aparição?) do disco é “Avôhai” – personagem inspirado num híbrido composto do pai do artista, que morrera afogado em um açude, com avô que o criara em seu lugar. A canção conquistou com sua soturna beleza o tecladista do grupo progressivo inglês Yes que gravava um disco solo no Rio. Patrick Moraz, a bordo de suas naves-sintetizadoras Oberheim e Art Odissey, deixou registrado um solo digno de parceria construindo uma insólita ponte-aérea João Pessoa/Londres que tornaria célebre a canção. A levada limítrofe entre o country defendido pela palheta do violão e o baião estilizado sustentado pelo resto da base instrumental, nos deixam encafifados demais para dançar, mas ao mesmo tempo, tontos o suficiente para receber quase que com naturalidade aquela letra pra lá de subjetiva e transcendente. 

Já à primeira audição, a gente vai se habituando à sensação de não entender direito o que nos prende e faz gostar tanto daquele estranho álbum. Sem tempo pra respirar, mais uma canção confunde tanto quanto perturba. “Vila do sossego”, composição que constaria décadas depois do disco póstumo de Cássia Eller – Dez de Dezembro, exibe novamente a habilidade do paraibano em criar ambientes sonoros surreais com enorme capacidade hipnótica. As cordas e o coro feminino, recorrente quase em todo o álbum do qual participa a prima Elba, nos pegam pela mão como se fora a audição, uma visita a um parque temático de brinquedos inspirados nos traumas, grilos e neuroses do compositor. Desassossego on demand. 

A terceira faixa nos dá a sensação de que Zé Ramalho e seu produtor Carlos Sion planejaram com a montagem do álbum, nocautear o ouvinte logo nos primeiros rounds. Talvez a mais intensa do disco, “Chão de giz” ajudou a desenhar a trajetória do paraibano na direção do reconhecimento nacional, ironicamente, com sua canção talvez mais delirante. Por aparentar rondar o amor, a solidão e a saudade, não há como não classifica-la como uma canção romântica. Mas a percepção disso é, como toda a poesia zeramalhiana, semi-subliminar. Na verdade a principal linguagem de Zé Ramalho parece ser a antilinguagem cognitiva. Ou será que alguém se identifica instantaneamente com a dúvida entre usar “uma camisa de forças ou de vênus”? Quando a obsessão de possuir o objeto da paixão empurra para o precipício da insanidade, talvez somente aí, fique fácil perceber e deparar-se com essa ambiguidade. 

O disco segue a galope através da “Noite preta” - faixa quatro do vinil onde a sanfona de Dominguinhos valentemente montada na levada iêiêiê rabisca um storyboard macabro quatro anos antes de Thriller de Michael Jackson assombrar o mundo. O dia nasce com as borboletas invadindo e rachando ao meio o disco com o sabor apocalíptico - especialidade da casa. “A dança das borboletas” entregam o céu do vinil para “Bicho de 7 cabeças” que cumpre a função de uma espécie de godzilla mudo. O choro nordestinizado pela zabumba, nada menos do que, dele: Bezerra da Silva, somente ganharia letra com a adesão de mais uma cabeça no bicho, a do poeta Renato Rocha, para ser gravado pelo dueto de Geraldo Azevedo com Elba Ramalho, dois anos depois. A beleza chorona surge novamente dando “Adeus segunda-feira cinzenta” aos nossos ouvidos céticos de que a colisão de frente entre interpretação/melodia/arregimentação clássicos do estilo com a letra praticamente autista àquele ambiente, venha arrebentar em uma terceira onda. Contudo, à altura da sétima faixa, o ouvinte já chegara à conclusão de que era esse antagonismo o centro da proposta estética de Zé Ramalho. 

O metal viajandão a la Mr. Miles Davis (cortesia do mestre Paulo Moura) desperta as “Meninas de Albarã” reforçando o mistério ibérico-peninsular passado de árabes a espanhóis. A faixa confere ao final do disco um ar cosmopolita que só acaba quando termina “Voa voa” rachando o chão com um xaxado que pega o caminho de volta às raízes encerrando a viagem ao centro de tudo. 

Elba Ramalho em 1984 gravaria um belo poema de Bráulio Tavares musicado por Ivanildo Vilanova que sonha com um “Nordeste Independente”. Se apenas alguns dos Zés lá na Paraíba forem como Jackson do Pandeiro e Zé Ramalho, teríamos já aí uma elite de pensadores do mais alto grau de inteligência emocional sem sequer recorrer à literatura para conduzir essa nova Nação. O flagelo da seca e suas covardes consequências como a fome e o abandono geraram renitentemente, décadas a fio, riqueza diametralmente inversa a sua cota de sofrimento. Se por um lado os amantes da música absolutamente não compactuamos com essa crueldade forjada na incompetência, indiferença, preconceito e vampirismo políticos. Por outro, acabamos recebendo generosamente de nossos irmãos nordestinos como resposta lúdica, a outra face de sua grande arte sem que sequer realmente a mereçamos. Só restam mesmo os Deuses comprometidos com a benção da música para decifrar a santidade missionária de Gonzagas, Jacksons e de toda a geração de Alceus, Geraldos e Josés. Nós, oramos.

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