segunda-feira, 31 de outubro de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



As Frenéticas começaram a gravar o seu primeiro disco, como as primeiras contratadas da nova gravadora Warner, dirigida por André Midani, na primeira produção do ex-Mutante Liminha. Pensando nelas, escrevi uma letra de música e mandei para Rita Lee e Roberto de Carvalho em São Paulo: “Eu sei que eu sou bonita e gostosa e sei que você me olha e me quer eu sou uma fera de pele macia cuidado, garoto, eu sou perigosa...” Alguns dias depois, eles mandaram uma fita com a música pronta, um rock’n’roll básico e suingado, com riffs rolling-stonianos e uma preciosa contribuição de Rita no final da letra. A que mandei a eles terminava assim: “Eu posso te dar um pouco de fogo, eu posso prender você meu escravo, eu faço você feliz e sem medo, eu vou fazer você ficar louco, muito louco, muito louco...” E Rita acrescentou, femininamente: “... dentro de mim!” Só por isso já mereceria entrar na parceria, mas a Censura jamais aprovaria uma letra assim. Então, quando mandamos o pedido de autorização, só com a letra escrita, colocamos “dentro de mim” não como o último, mas como o primeiro verso da letra: “Dentro de mim eu sei que eu sou bonita e gostosa...” Deu certo. “Perigosa” foi liberada e na gravação as Frenéticas “esqueceram” de cantar “dentro de mim” na abertura e cantaram todas as outras vezes, até o final, quando ficavam repetindo “dentro de mim” entre gemidos lúbricos e toda sorte de sacanagens.

Assim que chegou às rádios a música explodiu: homens, mulheres e crianças, feios e bonitos, cantavam alegremente “eu sei que eu sou bonita e gostosa” e diziam com entusiasmo que iam fazer alguém “ficar louco, muito louco, dentro de mim”, as bichas iam à loucura, as velhotas assanhadas desreprimiam geral. A música foi uma das mais tocadas do verão e das mais cantadas no carnaval de 1977, de norte a sul do Brasil. Na Bahia, tocada pelo Trio Elétrico de Dodô e Osmar em ritmo de frevo acelerado e cantada por milhares de vozes, levava a Praça Castro Alves ao delírio e me fazia chorar de felicidade em frente à televisão: é a maior alegria que um compositor pode ter. No final do verão, as Frenéticas tinham vendido mais de 100 mil discos e explodiam nos programas de televisão com seus espartilhos e cintas-ligas, sua sexualidade esfuziante, sua alegria e irreverência. Tornaram-se também as favoritas das crianças, que cantavam e dançavam suas músicas e imitavam os seus movimentos sensuais. As Frenéticas não eram uma imitação das estrelas internacionais de disco music, eram uma versão pop das vedetes de teatro de revista, das estrelas de cabaré e de chanchadas da Atlântida, em ritmo de rock e discoteca.

Uma de suas primeiras músicas define bem a sua atitude artística: “Dançar para não dançar”, de Rita Lee, um jogo de palavras com a liberdade da dança e o perigo de “dançar”, irônica e terrível gíria da época para “ser preso, desaparecer, morrer”. Tudo que elas cantavam ganhava novo sentido, ambíguo e sacana, alegre e libertário. Até uma música do angry young man Gonzaguinha, recordista de músicas censuradas e um compositor político militante e agressivo, ganhou uma nova ironia e se transformou num hit das Frenéticas. Com esfuziante arranjo disco de Dom Charles, da turma de Tim Maia, o samba de Gonzaguinha que ironizava o “milagre brasileiro” virou disco music e se tornou o seu primeiro grande sucesso popular. 

“O trem da alegria promete — elas davam uma pausa, rebolavam lubricamente e repetiam: mete, mete, mete e garante que o riso será mais barato agora, agora, agora em diante...” O “Trem da alegria” das Frenéticas partia da Rádio Nacional para a Central do Brasil, carregado de ioiôs, miçangas, tangas e bugigangas, como dizia a letra de Gonzaguinha, e fazia o Brasil dançar como Rita Lee. Ao contrário da música do Led Zepellin que deu nome à casa, os dias de dança não estavam de volta: para mim estavam apenas começando. Embora eu não gostasse de dançar e raras vezes tenha me aventurado na pista do Dancing Days. Com a aventura do Dancing e o espetacular sucesso nacional das Frenéticas, minha vida ganhou um novo ritmo, noturno e acelerado, além das minhas obrigações diárias e diurnas no jornal e na televisão. O casamento entrou em crise.

Na noite, tudo estava dando certo e ninguém queria parar. A equipe vitoriosa do Dancing , do DJ aos músicos, produtores e seguranças (todos tinham participação nos lucros), os amigos, os artistas, o público queria mais, todo mundo queria mais, no escritório de Ipanema choviam telefonemas perguntando quando e onde iria (re)abrir o Dancing. “Só se for no Pão de Açúcar”, eu dizia brincando, como se falasse do Coliseu de Roma ou da Torre Eiffel. Porque não imaginava fazer um novo Dancing Days em lugar nenhum e queria preservar a sua memória gloriosa, a história e a lenda, a marca da casa. Não ia abrir em qualquer lugar, correndo, só para aproveitar a onda e a popularidade do nome. Estava feliz por tudo ter sido tão bom e em tão curto tempo, pelo Dancing ter terminado em seu melhor momento, por não ter sofrido as humilhações da decadência. Por ter me ajudado a pagar minhas dívidas. Dois meses depois do fim do Dancing, fui procurado pelos diretores da companhia que operava os bondinhos e explorava as lojas e restaurantes do Morro da Urca e do Pão de Açúcar. Almoçamos no The Fox, na Praça General Osório, e o presidente, um enérgico velhinho, Dr. Christovam Leite de Castro, e seu filho, engenheiro Antero, em nome da companhia, me ofereceram seus 20 mil metros quadrados de floresta no alto do morro, com bar e restaurante, um anfiteatro de madeira cercado de árvores, com um pequeno palco — e a visão deslumbrante do Rio noturno, a 200 metros de altura. E nos associamos para abrir um Dancing Days no alto do Morro da Urca.

A curta e intensíssima vida do Dancing Days original o tornou conhecido em todo o Brasil, como a grande novidade da vida noturna, a nova moda, a primeira discoteca brasileira, embora algumas semanas antes de nós já funcionasse em Ipanema, num espaço bem menor, a New York City Discotheque, que não tinha música ao vivo e era muito mais comportada. E não tinha as Frenéticas. Em todas as centenas de entrevistas que as seis garotas deram pelo Brasil inteiro em sua turnê triunfal, e que começavam inevitavelmente pelo “como começou a sua carreira?”, tudo que falavam aumentava a popularidade e a lenda do Dancing Days, que se transformou em sinônimo de “discoteca”. Quando Gilberto Braga ambientou sua novela, estrelada por Sônia Braga, na nova onda de música e dança das noites cariocas, não encontrou título melhor nem mais adequado. O diretor Daniel Filho e Boni concordaram entusiasticamente.

Mas “Dancing Days” era uma marca registrada legalmente por mim, quando abri a casa. E a TV Globo precisava ter todos os direitos, já que planejava licenciar uma série de produtos da nova moda a partir da novela. Do contrário, escolheriam outro título. Negociei com Boni a venda para a TV Globo dos direitos da marca por uma besteira em dinheiro e uma série de comerciais para o novo Dancing Days que ia abrir no Morro da Urca. Como se precisasse: teria uma novela da TV Globo, das oito, com o nome de minha discoteca. Além disso, Daniel
pediu que eu fizesse uma música, dançante, disco, para ser o tema de abertura da novela. Cantada pelas Frenéticas, claro. Chamei o pianista Ruban Barra, que tocava com elas desde o primeiro show, e ele me mostrou a base de uma animadíssima disco, de melodia fácil e alegre, irresistivelmente dançante e carnavalesca. Perfeito registro do espírito da época.

Entre goles de uísque e linhas de cocaína, a música ficou pronta em menos de uma hora. As Frenéticas gravaram uma base no Rio com farta percussão e o produtor Mazola levou a fita para Los Angeles, onde acrescentou um arranjo de big band de cordas e metais, tocado pela
fina flor de músicos americanos de estúdio. Mixou e masterizou no melhor estúdio de LA. Ficou sensacional, sem dever nada aos similares estrangeiros. Antes mesmo de a novela entrar no ar, a execução maciça da música nas chamadas da TV Globo detonou saraivadas de telefonemas para as rádios e em poucos dias “Dancing Days” já tocava intensamente no Brasil inteiro e era o terceiro hit consecutivo das Frenéticas em menos de um ano. E o maior de todos. “Abra suas asas, solte suas feras, caia na gandaia, entre nesta festa.”

As Frenéticas convidavam e o Brasil cantava e dançava. “A gente às vezes sente, sofre, dança, sem querer dançar. Na nossa festa vale tudo vale ser alguém como eu como você.” A novela estreou com grande sucesso e passou a ser acompanhada apaixonadamente. No início do verão de 1978, com um show das Frenéticas e uma festa de arromba, o Dancing Days abria sua imensa pista ao ar livre, numa clareira entre árvores exuberantes, num platô no alto do Morro da Urca. Sem vizinhos, sem polícia, sem Administração Regional, entre as nuvens e cercado pelo silêncio e pela floresta tropical. Um sonho de verão. Mas a “volta triunfal” foi um completo desastre.

Deslumbrados com a imensidão da área, calculamos mal e convidamos muito mais gente do que as três mil pessoas que poderíamos. O pessoal da velha e pacata companhia do bondinho, acostumado a atender turistas, calculou pior ainda e pouco depois de meia-noite os bares não tinham mais nem água mineral. Os bufês foram devastados em minutos. Mais de cinco mil pessoas, entre artistas, celebridades, habitues do velho Dancing, populares e penetras subiram o morro. Os novos bondinhos italianos eram grandes, modernos e seguros. Mas lentos. Subiam 70 passageiros de cada vez, em dois bondinhos, com uma longa e cuidadosa manobra de embarque e desembarque, cada viagem levando quase dez minutos.
Filas monstruosas se espalhavam pela Praia Vermelha e desembocavam na estação do bondinho. 

Lá em cima, o caos. Com o anfiteatro e a pista abarrotados, gente pendurada nas árvores e metade do público sem poder ver o palco, as Frenéticas fizeram um show sensacional e levaram o público à loucura. E depois todos pularam feito pipoca com os hits de Donna Summer e de “Saturday Night Fever” que Dom Pepe detonava nas caixas. Mas sem bebida, com os banheiros em colapso e a pista superlotada, os excedentes e excluídos queriam ir embora (para nunca mais voltar) e filas monstruosas se formavam na estação do bondinho para a batalha da descida. Muita gente levou mais de uma hora esperando e nos xingando, entre eles muitos amigos e habitues do velho Dancing. Nenhum de nós foi à praia no dia seguinte. Ao contrário do que esperávamos, quando abriu para o público, o novo Dancing não partiu de onde tinha terminado o velho, com seu público habitual de artistas e garotada da praia. Todas as sextas e sábados três mil pessoas lotavam os bondinhos, vindos não mais da Zona Sul mas principalmente da Zona Norte e dos subúrbios, muita gente que confundia a novela com a discoteca, que imaginava “estar” na novela, que esperava encontrar a Sônia Braga dançando na pista. Um público completamente diferente da Gávea, quando se conhecia todo mundo: agora não conhecíamos mais ninguém. A casa era um sucesso absoluto de público, estávamos ganhando mais dinheiro, mas todo mundo estava se divertindo muito menos.

Divertida mesmo foi a festa que Rod Stewart deu no Copacabana Palace, por conta da Warner. Estrelíssima internacional, ele era alucinado por futebol e não veio para cantar, mas para ir ao Maracanã. Para aproveitar a oportunidade e fazer uma promoção do seu novo disco, a gravadora convidou para jantar com Rod a imprensa especializada e alguns artistas e VIPs, coisa de 40 pessoas. Mas a notícia se espalhou na praia do Posto 9 e a suíte presidencial do Copa recebeu mais de 250 (não) convidados, de todos os sexos, animados ààà beça. Rod e seus amigos adoraram e a noite terminou com um disputado futebol de salão de três contra três na “quadra” de mármore da suíte, com resultado de alguns abajures e cadeiras quebrados. Rod foi expulso do hotel, mas gostou tanto do Rio que alugou um apartamento no vizinho e chiquissimo Edifício Chopin, na Avenida Atlântica. Na festa de réveillon de Guilherme Araújo, no Morro da Urca, o escocês se esbaldou. Seu amigo Elton John, vestido de marinheiro, também, os dois cheirando cocaína como aspiradores humanos.

O grande acontecimento do Dancing Days foi a festa de arromba que a gravadora Ariola ofereceu para dois mil convidados, em homenagem a sua estrela Bob Marley, que fazia sua primeira viagem ao Brasil para lançar o novo disco. Marley chegou como um rei, fumou diversos baseados, dançou e tomou guaraná, ficou louco com o visual do Rio de Janeiro iluminado, da ponte Rio-Niterói ao Leblon. Nessa noite, o público foi o do antigo Dancing. Com a novela, a febre mundial da discoteca se espalhou por todo o Brasil, o segundo Lp das Frenéticas, puxado por “Dancing Days”, estourou nas paradas de sucesso, grandes artistas como Tim Maia e Ney Matogrosso gravaram disco-music, todo mundo começou a gravar. Tudo virou discoteca, havia uma discoteca em cada esquina, a moda discoteca, as meias arrastão, os sapatos de plataforma, os ternos brancos, as roupas de lurex, os produtos licenciados pela TV Globo. O disco com a trilha internacional da novela vendeu  quase um milhão de cópias. Era hora de mudar de praia. No final do verão, com o final da novela e o início das aulas, o público começou a diminuir e resolvemos fechar, melhorar o palco e o anfiteatro, que eram precários, fazer novos bares e banheiros, para reabrir no verão seguinte com outro nome, outra decoração e outra música. Eu não aguentava mais disco-music.



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