domingo, 6 de dezembro de 2015

SHIMBALAIÊS E TCHUBARUBAS

Por Francisco Bosco


Alguns dos maiores sucessos da canção popular brasileira nos últimos tempos têm nomes bem estranhos. Há a Tchubaruba de Mallu Magalhães, o Shimbalaiê de Maria Gadú, a Bubuia de Céu e um certo Tchubirundu do cantor de reggae Armandinho. Na verdade, essas palavras sem sentido, esses momentos em que a letra é invadida por puros fonemas têm longa história na nossa canção. Do “Hô-ba-lá-lá” de João Gilberto ao “tê-tê-têtê-têtê-re-tê-tê” de Benjor, passando pelo “le-le-lu-laio-li-lom” de João Bosco, a prática é frequente — e contagiante. O que significa essa prática? E por que ela costuma se tornar o clímax da canção?

Na canção, a melodia tem certa autonomia que a letra não tem (ou só tem raramente). Ou seja, poder-se-ia suprimir as letras de muitas canções e ainda assim restariam belas melodias, que teriam vida autônoma. Várias vezes, senão sempre, recebi melodias e me encantei com elas do jeito como elas vieram, sem letra. Algumas vezes, até temi estragá-las colocando letras. Pegue, por exemplo, uma canção como San Vicente, de Milton Nascimento; ela poderia sobreviver sem a letra. é claro que a letra com a melodia forma a experiência única de sentido que é a canção, e que decorre do entrelaçamento nevrálgico da letra e da melodia, ambas se determinando reciprocamente (mais harmonia, ritmo, dicção do intérprete etc.). Mas, enquanto é comum organizarem-se discos com versões apenas musicais, isto é, sem letra, de canções de algum compositor, o contrário é quase sempre um equívoco: livros com letras de canção, sem a música, costumam ser uma obra que fica num limbo, nem poesia, nem canção. 

Édessa autonomia da melodia que vêm todos os “shimbalaiês” da história da canção, e que são inúmeros. O “shimbalaiê” é uma passagem da palavra ao som, da transitividade do semântico à intransitividade do melódico. é que a linguagem verbal, o que a define, é sua capacidade de representar as coisas, ao passo que a música, ao contrário, talvez seja a mais “irrepresentante” e irrepresentável das linguagens.

Ocorre que representar o mundo é, de certo modo, impossível, porque a linguagem sempre produz o objeto no momento mesmo que acredita o estar conhecendo. é a questão epistemológica, que moveu (ou paralisou) séculos de filosofia: quem vem primeiro, a linguagem ou o objeto? No popular, é o famoso “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”. Não há como saber, pois é como querer pegar a própria sombra. Então, de certo modo, a linguagem verbal é o campo do erro. Mas a música, não. Ela não  representa nada, ela não é outra coisa além de si mesma. Ela é o que é (o que chamo de intransitivo). é por isso, no meu entender, que Nietzsche disse que “sem a música, a vida seria um erro”.

“Shimbalaiê” é um momento em que a linguagem verbal não se aguenta e deseja ser música, deseja livrar-se do fardo de representar, de ser outra coisa que não ela mesma. É como se a linguagem não resistisse à alegria da música e se transformasse em música. É como se ela se desse conta de que aquilo que a música está sentindo não se pode expressar de outro modo, não há palavra que chegue (pois a palavra nunca chega, ela sempre perde o trem). Então ela desiste de ser palavra e vira som, puro som. E se torna feliz, e é por isso que todo mundo fica feliz quando ouve. é uma libertação da palavra. Uma vez me perguntaram se eu sei dizer o que significa “shimbalaiê”. é claro que sei. “Shimbalaiê” significa isso, ou seja, a alegria da música, a pureza da música, o afeto que a música está levando ao mundo. Assim, quando se diz que “shimbalaiê” não quer dizer nada, isso está corretíssimo, mas no sentido contrário do que geralmente se intenciona: “shimbalaiê” não quer dizer nada porque deixou de ser significação e passou a ser. Ponto.

Ou algum verso poderia representar melhor a alegria da melodia de Taj Mahal do que essas sílabas esquecidas de si, em plena folia, travestidas de música: “tê-tê-tê-tê-tê-tê-re-tê-tê...”? Enfim, esses momentos “shimbalaiê” são os momentos mais alegres da história da canção, mais verdadeiros e mais impactantes — precisamente porque não significam nada.

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