terça-feira, 15 de dezembro de 2015

MEMÓRIA MUSICAL BRASILEIRA

Eduardo Gudin e Márcia ajudaram o compositor a celebrar reflexivas canções em dois shows em 1975 e 1976

Por Tiago Ferreira



Não estará errado quem disser, na lata, que Paulo César Pinheiro é o maior letrista do Brasil. Com uma carreira que começou cedo no final da década de 1960, ele escreveu letras para Elis Regina, Chico Buarque, Sivuca, Baden Powell, Vinicius de Moraes, Beth Carvalho, Lenine, João Nogueira, Aldir Blanc, Clara Nunes…

São mais de 1.000 canções em mais de 500 colaborações, incluindo incontáveis poemas, inéditos ou não.

Apesar de construir uma carreira unicamente como letrista, algo dificílimo no Brasil, Pinheiro chegou a gravar alguns discos solos. Dentre eles, destaco o tema de O Importante é Que a Nossa Emoção Sobreviva, gravado em duas datas em São Paulo e no Rio de Janeiro em 1975 e 1976 com os cantores Eduardo Gudin (já um parceiro de composição de longa data) e Márcia (cantora ‘expressiva e original’, nas palavras de Zuza Homem de Mello).

A maioria das composições são sambas escritos ou coescritos por Pinheiro – com exceção de “Tatuagem”, de Nelson Cavaquinho, cantor e parceiro de longa data que a imprensa identificava como ‘pai’ do compositor por conta da voz parecida.

Ali, o trio estava muito bem acompanhado: no primeiro show, tocaram Bolão (flauta), Eraldo (violão-baixo), Nelsinho (cavaco), José Briamonte (órgão) e uma seção rítmica completada por Milton Banana, Dinho, Carlinhos, Dirceu e Jair.

No segundo show: Copinha (flauta), Braz (oboé), Sérgio Barrozo (baixo), Wilson das Neves (bateria) e o trio Luna, Marçal e Elizeu no ritmo, com participação de Guinga nas canções “Dança da Força”, “Evangelho” e “Canto do Beato Louco”.

Todos os 22 sambas que completam as duas edições de O Importante é Que a Nossa Emoção Sobreviva vão por vias sentimentais, uma quase nostalgia ‘do tempo em que era menos ambição e o coração valia muito mais’, como cantam Gudin e Pinheiro em “Consideração” – isso depois de Márcia estrear o show com “Veneno”, exibindo uma bela voz na ardorosa canção escrita pelos outros dois parceiros de palco.

Na hora de dar o recado, Márcia exibe rara capacidade de transpor melancolia nas lindas “Ingênuo” (parceria de Pinheiro comPixinguinha e Benedito Lacerda), “Resíduos” (usando um poema deCarlos Drummond de Andrade como interlúdio), “Velho Casarão” e na excelente “Velho Passarinho”, com o matador início: ‘Quem não volta atrás/Não é capaz/De ver plantar um grão/Adeus não é separação/E o que é depois/É mágoa que está nos dois’. Um belo disparo contra a imbecilidade do orgulho.

O caldo sonoro do samba, muito bem feito pelas duas formações, adequa-se perfeitamente na dançante “Justiça” (que cairia muito bem num disco de Zeca Pagodinho), na contemplativa “Dança da Força” (‘Deus criou/E os mortais dançarão/(…)Sendo assim/Mudam sempre os mortais’) e, claro, na batucada de “Tô Por Aí”, com belas passagens na flauta de Copinha: ‘É melhor lutar do que fugir’.

A grande eficácia do show está nas composições. Há um tempero de melancolia, alegria, reflexões complexas, momentos poéticos… Assim como o caldo de nossa vida.

Num momento vemos uma letra que pareia com a grandiosidade de Cartola, como é o caso de “Refém da Solidão”: ‘Eu fui somente um aprendiz/Daquilo que eu não quis/Aprendiz de morrer/Mas pra aprender a morrer/Foi necessário viver/E eu vivi/Mas nunca descobri/Se essa vida existe ou se essa gente em que insiste/Em dizer que é triste ou é feliz’. E conclui: ‘a morte é a vida que se quer’.

E o que dizer também da emocionalmente crítica “Canto do Beato Louco”, o samba mais sério do que se aparenta de “Essa Conversa” e do canto do ‘espírito torto’ de “Cautela/Mordaça”, que faz dos versos justaposições contraditórias: ‘O mesmo alento que nos conduziu, debandou/Tudo que tudo assumiu, desandou/Tudo que se construiu, desabou/O que faz invencível a ação negativa’?

Dois discos para tocar na emoção. Difícil não deixar de se fragilizar com as maduras composições que batem efetivamente no martelo: a nossa emoção é maior que todas as transformações inevitáveis do tempo. Não deixemos que ela morra ou fique ao relento.


Faixas:
01 - Veneno
02 - Consideração
03 - Tatuagem
04 - Ingênuo
05 - Resíduos
06 - Marcha-Rancho
07 - Justiça
08 - Velho Casarão
09 - Refém da Solidão
10 - Cautela-Mordaça

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