Uma reportagem de Irlam Rocha Lima feita para o jornal Correio Brasiliense e publicada em 19/03/2012, pôs fim em todas as dúvidas que existiam sobre a quem foi dedicado o belíssimo samba “Para um Amor no Recife”, de 1971, obra do grande Paulinho da Viola, que tem, para mim, uma das mais lindas melodias da MPB. Foi o próprio cantor e compositor que se encarregou de dissolver algumas maldades que foram acumuladas ao longo do tempo.
Alguns se atreveram a insinuar um romance entre Maria José Aureliano e Paulinho (muito jovem no fim da década de 60), afirmando que a senhora mencionada já havia chocado a sociedade recifense ao se separar do marido, recusar a pensão alimentícia e levar uma vida independente com seus proventos de professora. Observem que mente arcaica tinha esse povo do Recife na época. A dita alta sociedade recifense era careta e preconceituosa, bem diferente de Maria José. Seu irmão, tinha altíssimo conceito no meio jurídico da Cidade Maurícia, tanto que aquele belo prédio que se vê na Ilha do Leite, que é a mais importante casa da Justiça de Pernambuco, chama-se “Fórum Rodolfo Aureliano”.
Depois inventaram que Dedé (era assim que os amigos a chamavam) seria amante do arcebispo Dom Hélder Câmara de quem foi secretária na sede do arcebispado. Dom Hélder, naqueles tempos feiosos da ditadura, foi considerado um perigoso elemento de esquerda e qualquer coisa que servisse para diminuí-lo era bem aceita. Mas vamos ao trecho esclarecedor do jornalista do Correio Brasiliense:
“Ao fazer sua primeira incursão pelo Nordeste, em 1971, Paulinho da Viola chegou a Recife para apresentar dois shows. A acolhida calorosa que recebeu, porém, o levou a ficar por quase um mês na capital pernambucana, hóspede de Maria José Aureliano, a Dedé, uma professora, vista pelo cantor e compositor carioca como afirmativa e independente.
‘Ela era feminista nas atitudes, antes do movimento da libertação da mulher. Ideologicamente de esquerda, chocou a sociedade recifense, onde desfrutava de alto conceito, ao separar-se do marido nos anos 1950, abrindo mão da pensão e assumindo uma vida economicamente ativa’, destaca Paulinho. ‘À minha mãe (Paula), Dedé pediu para me chamar de filho, o que lhe foi concedido’, lembra.
Depois de retornar ao Rio de Janeiro, o sambista e a mãe adotiva continuaram a se comunicar por cartas. ‘Até hoje guardo essas correspondências com muito carinho’, diz. Movido pela afetividade, Paulinho compôs naquele ano ‘Para um amor no Recife’, dedicada a Dedé. Hoje, ele reafirma que a música ‘era uma metáfora intencional sobre as distâncias e o silêncio que marcavam as relações entre amigos e artistas nos anos da ditadura militar’.
A ‘longa noite’ do verso em que promete voltar depressa para beijar a amiga é uma referência direta à sombra que se abateu sobre o país no período em que o Brasil viveu sob regime militar e que levou à prisão quem, de forma corajosa, se opunha ao sistema.”
Acredito que depois de tanto tempo devam parar as maledicências dos linguarudos. Fica provado que as pessoas são capazes de amar outras independente de fazer sexo com elas. Isso pode acontecer ainda hoje assim como sucedeu com Paulinho da Viola e Dedé. É algo mais transcendental que envolve apenas alma e coração. O sexo é ótimo, mas por melhor que seja, não passa de um complemento carnal, e como tal, tem dimensão menor do que o amor. Sexo é como um carrossel num parque de diversões. Às vezes, dependendo da parceira ou parceiro, um carinho, uma boa conversa e um saco de pipoca com refrigerante o substituem plenamente. Risos! Quem de nós sobreviveria sem o amor dos pais, da companheira ou marido, filhos, netos, demais parentes e amigos? Os sexistas vão dizer que isso é papo de assexuado. Então, “deixa isso pra lá, vem pra cá, o que é que tem, faz mal bater um papo assim gostoso com alguém?”
É forçoso lembrar neste momento que muito antes dessa reportagem de 2012, do Correio Brasiliense, Paulinho da Viola já tinha feito declaração de teor semelhante para o portal da revista Veja/SP, quando se nota claramente um conflito de datas sobre sua permanência no Recife, hóspede de Dedé Aureliano. Ele não tem dúvidas em relação ao ano. Veja abaixo:
“Essa música foi dedicada a uma senhora, já falecida, que pediu licença à minha mãe para me chamar de filho. Ela escrevia inúmeras cartas para mim, que começavam com ‘Meu filho,’. Quando fui ao Recife pela primeira vez, em 1968, eu iria ficar apenas uma semana na cidade. Acabei ficando um mês e dez dias. Eu não conhecia ninguém. Fiz um show lá, no antigo Teatro Popular do Nordeste. Quando acabou o trabalho do show, eu quis ficar por lá, e essa senhora me acolheu em sua casa. Ela se chamava Maria José Aureliano, era conhecida como Dedé Aureliano. Era uma pessoa muito conhecida na cidade, aposentada que trabalhou a vida toda como professora. Nós passamos a ter uma relação quase de mãe e filho mesmo. Aquela época foi um momento difícil para a minha geração, havia muita perseguição política, por isso a letra aborda uma outra coisa, que tem o sentido de falar daqueles tempos difíceis.”
Nas minhas relações de amizade, há uma pessoa que conheceu Dedé e foi amigo dela. Não vou revelar seu nome porque ele preza muito pela discrição. Do que ele me revelou através de e-mail, posso colocar aqui neste texto, sem problemas, o seguinte:
“Conheci e convivi com Dedé Aureliano, mãe de Cláudia. Dedé tinha irmão famoso (Rodolfo), que hoje dá nome ao principal fórum do Recife. Paulinho tinha verdadeira adoração por Dedé. Depois conto de um final de ano que passamos juntos com Paulinho. Dedé era bastante idosa para atraí-lo. A adoração dele, por ela, impediria outro tipo de relação que não fosse filial. Foi o que vi. Ela era bastante espirituosa e dotada de inteligência ágil. Do tipo que perdia o amigo, mas não a piada. Quanto ao Dom, a vinculação tinha como fonte toda a família Aureliano e a posição política à época. Sempre que tenho oportunidade de ouvir ‘Para Um Amor no Recife’, conto a história. Talvez não tenha acontecido com você por perto. Também conto uma historinha sobre Dedé: uma vez ela foi dormir em uma casa que tinha um menino com problemas mentais. Lá para as tantas o menino começa a gritar: ‘Tia Dedé, Tia Dedé, tem um homem aqui’. E ela, de imediato: ‘mande ele pra cá, meu filho, mande ele pra cá’. Abraço.”
Rodolfo Aureliano, que foi desembargador do TJ de Pernambuco, sempre esteve ligado às causas sociais. Em 1932, ele assumiu a direção do Instituto Profissional 5 de julho, localizado na Av. 17 de Agosto, 435, Parnamirim. Este órgão redirecionou, no Recife, o recolhimento dos menores abandonados e delinquentes. Antes, eles eram levados para a Casa de Detenção e ficavam ociosos o tempo todo, além de misturados com todo tipo de criminoso. No Instituto, tinham assistência médica e dentária, e se ocupavam com vários ensinamentos que os preparavam para assumir diversas atividades remuneradas. Morreu em 1964.
1968 foi um ano agitado em todo o mundo. Aqui no Recife, Dom Hélder foi ameaçado de morte pelo Comando de Caça aos Comunistas, grupo paramilitar que tinha apoio da ditadura e metralhou sua casa na Rua das Fronteiras; o puto do sociólogo Gilberto Freyre declarou aos jornais do sudeste que o único risco que Dom Hélder corria era ser atropelado porque andava muito a pé; a rainha Elizabeth II, da Inglaterra, visitou a capital de Pernambuco; Nilo Coelho era governador, não eleito pelo voto popular, mas por escolha dos milicos; Geraldo Vandré incendiou o Maracanãzinho e enfureceu os militares com sua canção considerada subversiva “Para Não Dizer Que Não Falei De Flores”; Cauby Peixoto, grande cantor, que era tido e havido por homossexual, se mostrou mais macho que a grande maioria dos artistas e cantou (e gravou ao vivo) numa boate da zona sul carioca, a famosa toada “Viola Enluarada”, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, um grave protesto sobre a falta de liberdade no Brasil, música que tinha sua execução pública proibida e se tornaria o hino dos guerrilheiros do Araguaia; e em 13 de dezembro, coroando as coisas ruins praticadas pela ditadura naquele ano, foi assinado o famigerado AI 5 que tanto mal causou ao país nos anos seguintes.
Acho que agora só nos resta ouvir Teresa Cristina cantando “Para Um Amor no Recife”, acompanhada do Grupo Semente, que é para mim a mais bela das interpretações que este lindíssimo samba sem rimas já ganhou. Amo essa sambista por ser dona de um canto belíssimo. Gosto demais da conta do lirismo de Paulinho e da leveza do seu ser também. Coloco abaixo um áudio com ela e um vídeo com ele, ambos cantando sua genial criação. Aos 72 anos, Paulinho declarou recentemente sobre a impermanência do ser humano ou imprevisibilidade da vida: “A gente não sabe quanto tempo ainda vai ficar por aqui. Com o tempo não se brinca.” A sua música, como um todo, no entanto, destina-se a atravessar os séculos porque só fez coisa boa!
1 comentários:
Linda música. Linda história de amor. Nem sempre um amor que se sente um pelo outro, tem que ter comprometimento sexual. Esse sim, é o verdadeiro amor. Amor não morre nem se mancha nunca.
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