Longe do 'ambiente hospitalar' do estúdio, onde é difícil encontrar a emoção, artista percebe como suas composições chegam ao público
Por Eduardo Tristão Girão
São Paulo – Lenine se considera um “zeppeliniano”. “Uma coisa é um disco do Led Zeppelin, outra coisa é o show dos caras. É tudo estímulo, mas a mecânica é diferente”, explica. É por isso que seu novo disco, 'Carbono', soa diferente no fone de ouvido e no palco. Se no estúdio alinhou com competência colaborações díspares como Nação Zumbi e os holandeses da Martin Fondse Orchestra, no palco do Sesc Pinheiros, em São Paulo, onde encerrou na noite deste domingo a minitemporada de estreia, a aposta foi num som mais direto e pesado. Não é “mais um” show de MPB.
Para início de conversa, todas as 11 novas faixas estão lá (algumas rearranjadas) e praticamente não há hits. Cheia de ritmo, a mão direita da guitarra de Lenine, sua marca, é a mesma, mas a banda não fica à mercê dela. A concepção musical do espetáculo deixa clara a intenção de que ali se estabeleça o chamado “som de banda”, aquela colaboração orgânica entre músicos que não estão ali para cumprir um roteiro secundário. Não são meros acompanhantes.
O cantor e compositor pernambucano foi acompanhado pelo núcleo duro que gravou 'Carbono' com ele: o experiente JR Tostoi (guitarra), o filho Bruno Giorgi (bandolim e guitarra), Guila (baixo) e Pantico Rocha (bateria) – os dois primeiros assinam com Lenine a produção do disco. Sem convidados especiais, sem firulas e num cenário de poucos elementos, o que inclui fundo preto, uma escultura de ferro pairando acima da banda e 600kg de raspas de pneus espalhados pelo chão.
“No estúdio, você busca o sentimento, mas é difícil chegar a ele, já que o ambiente é hospitalar. No palco, o sentimento é a isca maior e é o melhor lugar, pois nele percebo de maneira inconteste como chega o que faço. Gosto muito da certeza de que, com a música, viajo. Já rodei o mundo fazendo o que faço, fiz amigos e tenho lugar para cair em qualquer canto do planeta. 'Carbono' também tem isso, é um somatório de amigos, é muito coletivo. Conto com a autoralidade, no caso do palco, de cada um dos integrantes”, afirma o artista.
Ao longo de uma hora e meia, ele passa de ponta a ponta pelo novo disco, pinça canções de outros trabalhos (como 'Envergo mas não quebro', 'Na pressão', 'Olho de peixe', 'Martelo bigorna' e 'Sonhei') e abre pequena janela para tocar, só com voz e violão, dois sucessos (a exemplo de 'Hoje eu quero sair só'), totalizando pouco mais de 20 composições. “Sei que tem aquela pessoa que quer ouvir isso. Tenho umas seis ou sete canções que tiveram mais exposição. Gosto desses filhos, mas tenho uma prole maior”, justifica.
No final das contas, o novo repertório mantém Lenine como um dos nomes de expressão da MPB, aliando esmero musical que mantém seu ouvinte habitual curioso e cuidado na escolha das palavras, ao lado de parceiros como Carlos Posada, Vinicius Calderoni, Lula Queiroga, Carlos Rennó e o filho João Cavalcanti. É possível que uma parcela do seu público (a mais afeita a hits) não vá achar tanta graça, mas o pernambucano cumpriu seu papel como artista. Experimentou.
COSTURA
A audição de Carbono revela a habilidade de Lenine, Tostoi e Giorgi para deixar coerente a costura das participações que conferem matizes distintos ao disco. Isso começa já na faixa de abertura, 'Castanho', que teve participação do violeiro Ricardo Vignini. “Percebi nessa canção uma verve pantaneira e imaginei a viola. Queria alguém desse universo, mas com veia roqueira. Foi assim que cheguei ao Ricardo”, conta Lenine.
Também marcou presença em estúdio a Orkestra Rumpillez e seu maestro, Letieres Leite, naquele que é talvez o ponto alto do trabalho, 'À meia-noite dos tambores silenciosos', marcada por delicado trabalho de sopros e percussão. Também vale destacar as colaborações com a Nação Zumbi (no frevo contemporâneo 'Cupim de ferro') e com a Martin Fondse Orchestra (a introspectiva 'O universo na cabeça do alfinete'). O percussionista Marcos Suzano e o flautista e saxofonista Carlos Malta, ambos instrumentistas de peso, também estão lá.
“A hora do disco é a da experimentação. É um processo laboratorial, com uma lupa diferente, que não é a mesma do show. Meus discos são para fazer o que não fiz. Passar para o palco é outra coisa. No fundo, faço disco para agradar a umas 30 pessoas. Família, filhos e algumas pessoas que são desconfiômetros meus, que uso como filtros. Alguns, como Lula Queiroga e Bráulio Tavares, trabalham com música. São os primeiros para quem mostro. Tenho certeza de que pelo filtro desses caras não passa nada”, conta Lenine.
Sobre o título do trabalho, o pernambucano, que é formado em engenharia química, esclarece: “Carbono é a base da vida e em torno dele há possibilidades de que seja agregado a qualquer coisa para criar coisas novas. Grafite e diamante são, exclusivamente, carbono e a diferença de pressão faz um diferente do outro. Eu me aproximei disso para entender o que faço, esse hibridismo, essa busca por novas ‘moléculas’. É tudo carbono, todo mundo fazendo música e procurando a beleza juntos”.
Inspiração no Grupo Corpo
'Carbono' foi feito em apenas dois meses. “Foi tudo ao mesmo tempo agora. Precisávamos do disco físico na estreia, que já estava marcada, e, para isso, foi necessário entregar masterizado em 30 de março. No início de fevereiro, comecei do zero. As canções só surgem a partir do desejo e nunca tive tão pouco tempo. Foi um exercício maluco”, lembra.
Na visão dele, essa urgência tem ligação com sua experiência como compositor de trilhas sonoras para os mineiros do Grupo Corpo (assina as trilhas de 'Breu' e 'Triz'). “Numa dessas vezes, a única exigência eram 40 minutos de música inédita e eu só deveria mostrar quando achasse que devesse. Precisava dar subsídios para a expressão dos corpos daquelas pessoas. Então, polirritmia. Uma equação diferente que tive de fazer pelo inusitado do agora, do momento, do único. Não é do efêmero, como pode parecer. Isso me deu uma sensação muito boa”, afirma.
Até então, diz ele, fazer disco significava abrir a gaveta de composições e retirar dali o que mais lhe conviesse. O gosto pelo imediato, então, passou a ditar a forma de trabalhar e seu álbum 'Labiata' (2008) foi concebido assim. “Essa urgência é benéfica para a sensação de ‘sou eu agora’. Isso envolve todo um questionamento do que quero falar, de que maneira, o tom e o peso das palavras, como jogar com elas”, resume.
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