Lançamento de ‘Sambabook’ e ‘Discobiografia’ de Martinho da Vila reveem carreira do sambista.
Por Leonardo Lichote
Obra do compositor de 75 anos ocupa lugar único na música brasileira
RIO - “Quem quiser saber meu nome/ Não precisa perguntar/ Sou Martinho lá da Vila/ Partideiro devagar.” A sintética autodefinição de Martinho reafirma: em sua voz e seus versos, tudo sempre é mais profundo e parece mais simples. Chegando agora às lojas, o “Sambabook” (Musickeria) dedicado ao compositor — o segundo da série, que estreou homenageando João Nogueira — dá oportunidade de comprovar isso. E, mais importante, de vislumbrar o tamanho do artista que cabe num “partideiro devagar”.
No CD/DVD/Blu-ray do “Sambabook”, está lá o compositor do samba-enredo revolucionário (“Sonho de um sonho”), do partido alto modelo (“Casa de bamba”), da crônica social refinada (“O pequeno burguês”), da experimentação formal (“Odilê, odilá”), da sensibilidade de se olhar o amor sob ótica original (“Ex-amor”). Mais: com intérpretes que vão de Paulinho da Viola a Pitty, de Ney Matogrosso a Casuarina, o projeto aponta para o alcance da obra de Martinho, 75 anos. E no livro “Discobiografia” (Casa da Palavra) — parte do “Sambabook”, que inclui ainda um fichário com 60 partituras e um aplicativo para celulares e tablets —, percebe-se que mais que um “sambista”, “autor sofisticado” ou “partideiro devagar”, há um artista que o tempo todo reflete sobre sua obra e sobre onde quer chegar.
— Martinho é o artista da música brasileira que melhor se encaixa na “Discobiografia” (que acompanha a trajetória do artista pela análise de sua discografia) — diz Hugo Sukman, autor do volume sobre o compositor da Vila. — Quase todos os seus discos são conceituais, têm ideias muito firmes por trás deles.
Martinho confirma:
— Tirando o primeiro (“Martinho da Vila”, de 1969, que gravou para apresentar à gravadora RCA Victor seu trabalho como compositor), nunca trabalhei num disco só juntando músicas. Penso sempre numa ideia central, que às vezes é um tema, outras uma forma. Isso acontece desde o segundo disco (“Meu laiaraiá”, 1970), que vem da vontade de fazer um disco de samba bem produzido, com orquestra, sair do esquema que existia na época. O terceiro, “Memórias de um sargento de milícias” nasceu quando estava dando baixa do Exército (ou seja, escolhendo em definitivo a carreira de artista), trabalhei pensando nisso. E assim é até hoje.
O exercício de pinçar aleatoriamente álbuns em sua discografia reforça o que Sukman e Martinho dizem. “Rosa do povo”, de 1976, parte do universo poético de Carlos Drummond de Andrade (sem usar um verso do poeta); “Tendinha”, de 1978, transporta para o disco o espírito do encontro das rodas de samba, antecipando algo que a geração Cacique de Ramos consagraria; “Samba enredo”, de 1980, é um estudo sobre o gênero, salientando seu caráter de arte negra; “Ao Rio de Janeiro”, de 1994, olha para a cidade sob variados prismas; “Brasilatinidade”, de 2005, é sua viagem pela música da América Latina.
— Vejo o disco quase como um livro, um espetáculo roteirizado — define Martinho. — Como um enredo de um desfile, enfim. Acho que o que me levou a pensar dessa maneira foi minha proximidade com a escola de samba.
Da Vila, Martinho já se declarou pertencente a diversos universos, espalhando-se nos títulos de seus discos: “Martinho da vida”, “Martinho da Vila, da roça e da cidade”. Algo que dá pistas sobre o lugar único que ocupa na música brasileira. Tem todas as características de um “sambista autêntico” (a formação na favela, a escola de samba, o domínio das formas do gênero), mas explora temas inusuais e não se aferra ao ritmo. Por outro lado, sua trajetória não o alinha diretamente aos colegas de geração que definiram os fundamentos da chamada MPB, elaborada, universitária. E, como poucos, dialoga com rádios e gravadoras, afirmando sua arte sem negar os interesses deles.
— Sempre procurei entender do meu ofício. Procurei saber o que é um artista, ter noção da importância do que faço. Sempre fui de pensar — afirma o compositor, que tem também um livro infanto-juvenil a ser publicado em breve, “O nascimento do samba”, sobre as origens do gênero.
Uma das epígrafes do livro é de Tunico Ferreira, filho de Martinho: “Se você quer ser amigo íntimo do meu pai basta escutar seus discos, desde o primeiro até o último. Todos os problemas, alegrias, momentos marcantes estão nas músicas”. É assim com todos os temas que ocupam o pensamento do homem que sempre foi de pensar:
— Ele faz discos sobre partido alto, sobre o samba-enredo... Traduz seus projetos em discos. E, assim, leva a cultura que representa a um patamar que antes ela não ocupava — diz Sukman. — Sem Martinho, sem a popularização do gênero promovida por ele, o samba estaria num outro lugar hoje. Ele existe como música comercial em grande parte porque Martinho existe. Zeca Pagodinho, por exemplo, é filho do Martinho. Tanto que o ressurgimento de Zeca nos anos 1990 foi com Rildo Hora (fundamental na construção da sonoridade dos discos de Martinho).
No “Sambabook”, esse som de Martinho é representado já na escalação da banda. Ela estará completa, e terá a presença dos convidados, nos shows de lançamento do projeto — no Imperator (Centro Cultural João Nogueira), nos dias 22 e 23 de maio, e no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, em 31 de maio, 1º e 2 de junho.
— São músicos que tocaram com Martinho em diferentes momentos, como Zeca da Cuíca e Claudio Jorge, e um coro que tem filhos de Martinho (Analimar, Juju Ferreira e Martinho Filho) e sua neta Dandara — explica Flavio Pinheiro, diretor de Marketing da Musickeria. — Para os intérpretes convidamos pessoas identificadas com ele, como Paulinho da Viola, Leci Brandão, João Donato e Mart’Nália. Mas também procuramos artistas das novas gerações, seja do samba, como Moyseis Marques, ou de fora dele, como Pitty.
Martinho lembra que, quando começou, tudo era mais setorizado:
— Pitty cantou maravilhosamente bem meu samba (“Roda ciranda”). E Chorão era meu grande fã. Me falou uma vez que se inspirou muito em mim, veja só.
Apesar da surpresa de Martinho, não é difícil entender o fascínio que exerce o artista que estabeleceu de forma pioneira pontes entre a periferia e a indústria, entre o campo e a cidade, entre o Brasil e a África — sempre com os pés fincados em ambos os lados. Pontes construídas ao longo de uma vida que parece ficção.
— Ele foi retirante, vindo do interior do Rio (Duas Barras), e favelado (da Serra dos Pretos Forros, na Boca do Mato). Conseguiu se educar, sustentar a família, ficar rico, ter prestígio perene, tudo isso vindo do estrato mais baixo da sociedade. Ele compra a fazenda onde seu pai trabalhava e faz um samba-enredo lindo (o da Vila Isabel, campeã deste ano) que fala do homem do campo, e no qual o filho é um dos parceiros. Trajetória perfeita para um biógrafo — elogia Sukman.
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