segunda-feira, 21 de março de 2011

UM GRANDE ACHADO CULTURAL: RAUL BOEIRA

Por Bruno Negromonte

Salve engano, certa vez o poeta gaúcho Mário Quintana escreveu em um de seus poemas as seguintes palavras: "Eu sou um homem fechado. O mundo me tornou egoísta e mau. E a minha poesia é um vício triste, desesperado e solitário que eu faço tudo por abafar". Acho que só fundamentando-me nesse poema de um gaúcho, para falar sobre outro gaúcho.

Não que esse outro gaúcho seja egoísta, fechado e mau, e sua poesia seja um vício triste, mas é sem dúvida ele é um tanto quanto recluso o suficiente para nos privar de seu talento de cantor durante esses longos anos em que se escondeu por trás de seus versos e melodias.

(o outro gaúcho a quem nos referimos no início desta matéria) nasceu em Porto Alegre mas mora em Passo Fundo desde 1974 e vem desta época suas primeiras composições e melodias. Influenciado por grandes nomes da MPB como Joyce , Dori Caymmi e Gilberto Gil; Desde então suas canções foram gravadas por diversos artistas não só no Brasil como também na Europa e em alguns países da América do Sul (como o Uruguai por exemplo). Cantores e grupos como Leonardo Ribeiro. Mato Grosso Group, The Zawinul Syndicate, Daniela Mercury entre outros já gravaram Boeira ao longo desses mais de 30 anos dedicados a composição.

Porém, apesar de ser bem conceituado como compositor e crítico musical já estava na hora de Raul "desabrochar" como cantor. E quando chegou a hora da verdade (como o próprio Boeira definiu a gravação desse seu primeiro álbum), ele não fez por menos. A espera de 30 anos para que Raul Boeira lançasse-se como cantor foi válida. Essa longa espera me remete a uma analogia desse primeiro álbum de Boeira ao trabalho de pérolas nas conchas. A produção das pérolas normalmente levam de 8 a 12 anos em todo o seu estágio por parte das conchas, podendo ate atingir 20 anos para se formar uma pérola de porte grande.

Sendo assim 30 anos de espera não foram em vão. Raul Boeira nos presenteia com esse álbum de estreia intitulado de Volume um (que pode ser adiquirido clicando na imagem) e que sem dúvida alguma já se faz uma grande pérola da MPB. Volume um foi produzido e gravado em 2009 no estúdio de propriedade do baixista e produtor musical Liminha e que já se tornou referência na gravação de excelentes álbuns de todos os gêneros no Brasil.

Neste caso, o disco de Raul Boeira também merece entrar no hall dos grandes álbuns produzidos no estúdio Nas nuvens pois além dele ter sambas, ijexá, xote, baião, partido alto, candombe, milonga entre outros ritmos entre as doze faixas existentes nele, Há também a excelente qualidade das canções por conta do "know-how" de todos aqueles que deram a sua colaboração na confecção do disco. Instrumentistas como Lula Galvão, Celso Fonseca, Torcuato Mariano, André Vasconcellos, Sidinho Moreira, Firmino, e fazem parte do primeiro escalão da MPB. Além da participação da cantora Bárbara Mendes cantando uma das faixas e a produção, arranjos e teclados a cargo do também gaúcho Dudu Trentin.

Boeira compõe com inspiração e talento os vários ritmos e temáticas existentes no disco. Há um estilo próprio que o faz cosmopolita e ao mesmo tempo interiorano. Quando fala de temas como solidão, a saudade, o poder da natureza isso tudo o faz um compositor genuínamente brasileiro que trás em sua bagagem todas as variações rítmicas que o nosso país-continente tem e isso o faz universal. Isso o faz ir além da MPG (Música Popular Gaúcha) o aproximando dos gêneros da Bahia, de Pernambuco, Rio de Janeiro e Uruguai.

Analisando as doze canções presentes no disco percebe-se que nelas são abordados de tudo um pouco. A primeira canção (O Poder da benzedura), por exemplo, homenageia o seu Nabuco, conhecido benzedor e escultor de Passo Fundo. O arpejo do violão sugere a levada rítmica do candombe uruguaio. A faixa inicia com um belo arranjo de violinos executado por Glauco Fernandes, preparando a entrada dos violões, tocados por Lula Galvão (que acompanha Guinga há muito tempo).

A segunda canção (Negro coração) é uma parceria com Alegre Corrêa e sintetiza a visão de Boeira sobre a questão "música gaúcha versus MPB". Nesse samba, ele lamenta a ausência da mão negra na música do Rio Grande do Sul, o quadradismo dos ritmos gaúchos e a xenofobia dos "donos da capitania"; já a terceira faixa (Oferenda) é uma microcanção. O violão foi tocado por Celso Fonseca, que acompanhava Gilberto Gil e hoje tem uma carreira consagrada como cantor, compositor e violonista. Ele também canta um dos versos da canção. Nesta canção também brilha o clarinete e a flauta em arranjo delicado de Dudu.

Na quarta quarta canção (Doutor cipó) há uma homenagem a um dos típicos personagens de Passo Fundo: seu Graciano, o velhinho que vendia ervas e chás em frente ao BB no centro da cidade. É uma verdadeira homenagem a fé do brasileiro na flora medicinal tupiniquim, como alternativa à medicina mercantilizada que muitos dos cidadãos comum do Brasil não tem acesso. Raul cita 25 tipos de ervas e afins nessa canção, me remetendo ao grande compositor pernambucano Onildo Almeida que na década de 50 enumerou diversos produtos existentes de uma famosa feira do nordeste, a feira de Caruaru. Trata-se de um ijexá bem ritmado. Os violões de aço tocados por João Gaspar e a percussão de Sidinho Moreira conferem à canção cores nordestinas.

"Na beira do rio" (a quinta canção) é uma toada sertaneja - no bom sentido! - simples e romântica. Os erros de português são propositais, pois o autor se coloca na posição do matuto que espera a morena voltar para o seu ranchinho. Nesta canção há apenas o violão de Fernando Caneca e o acordeom de Léo Brandão, mas que foram suficientes para criar o clima nostálgico que a canção pede. Já "Pro pandeiro não cair" (sexta canção do álbum) é um samba abolerado, onde há uma crítica sobre a necessidade que o brasileiro tem de cultuar os heróis do esporte e o modo como os meios de comunicação o utilizam como forma de induzir o povo à alienação. O destaque desta faixa fica para o arranjo de flautas executado pelo grande músico Marcelo Martins.

O álbum segue com canções bastante interessantes como é o caso de "Minha reza" que é uma das canções que mais chamam a atenção no disco. Trate-se de uma prece escrita por Boeira para São Jobim lá pelos idos de 1986 cantada sobre a guitarra de Julio Herrlein. Seguindo de "Castelhana" (um candombe suingado e bem humorado, no qual há a integração latino-americana), "Com o azul nos olhos" (um poema escrito em 2002 inspirado em uma viagem de volta de Uruguaiana e tendo o o céu da campina como inspiração e que foi musicado por Mário Falcão e interpretado no disco por Bárbara Mendes), "Tataravô" (um partido alto), o xote "Laranjeira" (com direito a sanfona, triângulo e zabumba) e por fim o samba "Clariô" (letra musicada por Alegre Corrêa na qual fala sobre fé, a resistência e a teimosa luta pela sobrevivência). A título de curiosidade vale lembrar que este samba está presente no cd 75th, do Zawinul Syndicate, que ganhou o Grammy 2010 de melhor álbum de jazz contemporâneo. Nesta canção Ricardo Silveira faz um solo excepcional.

Enfim, Passo Fundo e o Brasil devem se orgulhar desse grande talento musical brasileiro que traz em suas composições as peculiaridades da cidade em que mora e não se deixou render(-se) a vaidade do falso brilho das vitrines musicais do centro do país. Que esse grande achado cultural brasileiro não nos prive de sua voz e novos álbuns de agora em diante.

Conheçam também:
http://www.myspace.com/raulboeira
http://www.buzinadogasometro.com.br/web/artista/Perfil.aspx?id=393

Contatos para shows e aquisição do cd: (54) 9964-3540

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