sábado, 18 de maio de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


A POESIA CONCRETA

Enquanto a reação da estudantada de esquerda era francamente desfavorável - e muitos colegas compositores torciam o nariz -, a imprensa, embora criticamente dominada por posição semelhante, tinha no espalhafato das apresentações (e nas próprias discussões que elas geravam) um prato cheio para sua produção diária de reflexão, sensacionalismo e intrigas. Nesse caso, como em outros mais freqüentes do que se imagina, era exatamente sua venalidade que a salvava. Pelo menos do moralismo estreito e do tradicionalismo tacanho. Nós aparecíamos nas revistas especializadas em televisão, nas de amenidades, no noticiário cotidiano dos jornais e nas crônicas e artigos de novos e velhos jornalistas, além, é claro, de sermos citados freqüentemente nas perguntas feitas pelos repórteres a outros artistas. Episódios grotescos não faltaram, como o do produtor e apresentador de TV Flávio Cavalcanti, uma figura folclórica do conservadorismo sensacionalista que comandava um programa em que um corpo de "jurados" julgava canções - sobre as quais o próprio apresentador fazia inflamados discursos de reprovação moral ou louvação sentimental -, que, forçando bastante, encontrou nas iniciais das palavras "(sem) lenço, sem documento" da letra de Alegria, alegria uma referência ao ácido lisérgico - (S) L, SD?! - e, portanto, uma instigação ao uso de drogas, o que o levou a repetir o gesto que executava em ocasiões semelhantes e que lhe garantia a manutenção da fama algo cômica, algo sinistra: quebrou um exemplar do disco que continha tal infâmia.
Muitas manifestações de repúdio às novidades que trazíamos se seguiriam a essa. Sempre, felizmente, em nível mais alto. E tinham como alvo nosso suposto comercialismo e, sobretudo, nosso desrespeito aos princípios do projeto estético das esquerdas, dito nacional-popular. Mas eu pude ver publicada na revista Manchete, entre fotografias coloridas, algumas de página inteira, uma entrevista minha em que eu declarava que "quando ouvi João Gilberto pela primeira vez, tive vontade de fazer música. Depois industrializou-se (mas não muito) um samba 'classe A' com aparatos jazzísticos e clichês políticos, o qual, à medida
que ia perdendo terreno, deixava de ser um bom produto para tornar-se apenas uma ideia de defesa da pureza de nossas tradições contra todo esse lixo vendável: boleros, versões e, por fim, o chamado rock nacional. Sentia-me perdido: jamais pensara em música como produto, e não considerava o Fino da Bossa como a salvação de nossas tradições". E: "Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas".
O fato de essas mostras de lucidez poderem destacar-se da banalidade predominante na revista de maior circulação no país só agravava minha sensação de frustração ante o resultado das gravações já prontas para compor o esperado disco.
Eu desejara criar um objeto conceitualmente forte e de arte- final irretocável - e no fim das contas tinha de me animar a defender o que restara, apesar de tudo, de instigante num mondrongo esquálido. As dificuldades técnicas exibiam um subdesenvolvimento não folclorizado, é certo, mas eu tinha imaginado um nível de feitura que resolvesse - provisória mas satisfatoriamente - esse feixe de problemas. Tinha de contentar-me com a ousadia das idéias como única mantenedora do nível aceitável da empreitada. Não quero dizer com isso que desprezo o empenho ou a capacidade do produtor Manuel Barembein, e muito menos dos arranjadores (Medaglia, sobretudo, fez um trabalho notável). Apenas, consciente de que a unidade final dependia de minha liderança, reconheço não ter possibilitado ou exigido (o que, num caso desses, vem a dar exatamente no mesmo) que esses colaboradores chegassem a um desempenho que transcendesse todo provincianismo: mas como eu poderia, se, de todos, eu era justamente o que mais tímido e desarmado me achava dentro do estúdio? De qualquer modo, o resultado, por menos que me satisfizesse, revelava-se eficaz no ataque aos alvos cruciais mirados pela primeira inspiração tropicalista. As reações iradas, ou meramente assustadas, que surgiam na imprensa, nos auditórios e nas universidades eram prova disso. Mas não eram somente as reações negativas que reafirmavam a pertinência de nossa posição. O conjunto dos aspectos instigantes na música ela mesma e da considerável articulação dos esboços de idéias que se encontravam em minhas entrevistas, chamou, desde muito cedo, a atenção do poeta Augusto de Campos.
Antes de o tropicalismo ganhar corpo e nome, Augusto, tendo ouvido Maria Odete cantar "Boa palavra" no festival da TV Excelsior, e, por outro lado, tendo lido minha intervenção num debate sobre música popular na Revista Civilização Brasileira, no qual eu insistia na ênfase sobre João Gilberto e preconizava a "retomada da linha evolutiva" que este representava, escreveu um artigo chamado "Boa palavra sobre a música popular", saudando minha chegada no cenário da MPB como um fato auspicioso. Alex Chacon, cheio de entusiasmo, me mostrara esse artigo no Rio. Isso foi antes de que eu assistisse a Terra em transe, antes mesmo de que Rogério me apresentasse a Zé Agrippino. O que é mais importante: antes dos comentários de Bethânia sobre Roberto Carlos e a Jovem Guarda. Certamente por essa razão – mas também por eu não conhecer o nome do articulista nem encontrar nenhuma outra reação ao artigo além da de Alex - o texto me pareceu vindo de outro planeta. Eu estava preparado para a crítica ali apresentada por Augusto ao estilo enfático então ressurgente em decorrência da entrada em cena dos temas político- sociais com o advento da canção de protesto"; e quanto à volta ao samba tradicional e ao folclore nordestino, minha declaração citada por ele ("Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação") era eco de um longo artigo que eu escrevera em 65 para a revista Ângulos, publicação universitária de Salvador, em que ataco os nacionalistas passadistas que - liderados teoricamente pelo sociólogo José Ramos Tinhorão - tentavam desmerecer e mesmo anular as conquistas da bossa nova. Mas a revisão critica que Augusto esboçava fazer de Roberto e Erasmo Carlos ainda me era inaceitável: eu fechava o meu artigo da Ângulos opondo uma facção responsável da juventude brasileira - a mesma que eu queria reconquistar das garras dos nacionalistas retrógrados para a linha evolutiva da bossa nova - àquela outra facção que tem "algumas mocinhas tão suburbanas quanto Emilinha Borba e rapazes a meio caminho entre beatles e Francisco Carlos como ídolos", identificando assim a turma da Jovem Guarda com as figuras artisticamente menos prestigiadas entre os grandes sucessos de massa do rádio brasileiro dos anos 50. Mais: de antemão eu defendia essa posição ideológica contra as
possíveis recuperações críticas que tais "fenômenos publicitários" encontrassem em "frases (mais ou menos inteligentes) ditas na Europa a respeito de 'juventude' e 'ritmos alucinantes'. Além disso, o artigo de Augusto me soou um tanto acadêmico, justificando seu interesse por Roberto e Erasmo em observações tecno-estilísticas que eu não estava disponível para analisar.
O que me parece incrível, hoje, relendo esse artigo de Augusto, é que, na época do tropicalismo, eu, já tendo superado o preconceito contra a Jovem Guarda - e, afinal, fazendo, como ele fizera, uma aproximação entre João Gilberto e Roberto Carlos -, não tenha me reportado, nem mesmo íntima ou interiormente, ao aspecto profético das considerações ali expostas. A rigor, se eu tivesse lido com propriedade as conseqüências que Augusto tirou de minha fala, seu artigo teria sido o verdadeiro estopim de minha virada. De fato, nem Terra em transe nem Edgar Morin nem as insinuações de Guilherme, nem mesmo as conversas com Rogério e Agrippino, vieram a apresentar uma visão tão completa das questões que enfrentaríamos no tropicalismo. Ninguém depois de Augusto, até que o tropicalismo estivesse nas ruas, tocou com tanta precisão os pontos-chaves dos problemas específicos da música popular de então. Seu artigo dizia, por exemplo, que os "nacionalóides" preconizavam um "retorno ao sambão quadrado e ao hino discursivo folclórico-sinfônico"; que eles queriam "voltar àquela falsa concepção 'verde-amarela' que Oswald de Andrade estigmatizou em literatura como triste xenofobia que acabou numa macumba para turistas [...] Foi nesse estado de coisas que chegaram a Jovem Guarda e seus lideres Roberto e Erasmo Carlos para, embora sem o saber, evidenciar a realidade e o equivoco. Para demonstrar que, enquanto a música popular brasileira, como que envergonhada do avanço que dera, voltava a recorrer a superados padrões e inspirações folclorísticos, a música estrangeira também popular, mas de um outro folclore não artificial nem rebuscado, o 'folclore urbano', de todas as cidades, trabalhado por todas as tecnologias modernas, e não envergonhado delas, conseguia atingir facilmente a popularidade que a música popular brasileira buscava, com tanto esforço e tamanha afetação populística. Cúmulo do paradoxo, já há noticia de que surgiram no Recife romances de cordel narrando o encontro do rei do iê-iê-iê nacional com Satanás, glosando o tema da música [de Roberto Carlos] 'Quero que vá tudo pro inferno'. [....] A maior parte não entendeu que o iê-iê-iê sofreu uma transformação na sua tradução brasileira, que não é, nos seus melhores momentos, mera cópia do estrangeiro. Já tive oportunidade de observar [....] que,
quanto ao estilo interpretativo, os dois Carlos estavam mais próximos de João Gilberto do que muitos outros cantores atuais da música popular tipicamente brasileira (e João Gilberto, por sua vez, tem muito mais a ver com os cantadores nordestinos do que muitos ulradores do protesto nacional)". A clareza com que Augusto via o panorama da MPB de então se mostra mais surpreendente quando penso que a impressão de distância que o tom do seu artigo me dava correspondia a uma condição real: ele não apenas era um poeta de formação erudita, como também - em parte por causa da natureza e amplitude dessa erudição, mas sobretudo pela radicalidade do experimento poético a que se dedicava desde os anos 50 - estava à margem tanto das correntes dominantes da intelectualidade brasileira quanto do mundanismo dos ambientes artístico jornalísticos onde se discutia ou fazia música popular. Ele parecia saber se colocar com firmeza diante das questões cruciais, mas evidentemente lhe faltava a vivência da faixa em que a esquerda festiva se movia e em que circulavam as fofocas, vivência que talvez lhe tivesse dado a malandragem de linguagem que me teria conquistado à primeira leitura.
Mas há uma razão mais convincente para eu ter esquecido o artigo. É que, justamente por ser tão bem amarrado, quase esquemático, ele chegou com um roteiro pronto, um roteiro que eu não poderia enxergar se não o refizesse por minha própria conta. Não que eu tenha esquecido o artigo no sentido de nega-lo inconscientemente, como numa espécie rasteira de "angústia da influência". Na verdade eu não o absorvi propriamente e - como não conseguia discordar de seus avanços mais ousados, nem tinha noção da importância de seu autor, nem
encontrei um só entre meus conhecidos que o tivesse lido - simplesmente o considerei inexistente. Assim como o distanciamento munia Augusto daquele olhar seletivo que só via o que era relevante no quadro dado, meu envolvimento dificultava uma mirada geral suficientemente objetiva - e me impedia de compartilhar com ele o seu ponto de vista. A defesa de Roberto Carlos não me chocou nem me excitou: era um tema levemente incômodo que tinha sido tocado por um desconhecido um tanto sem humor e que não parecia pesar na balança das opiniões. Tampouco me entusiasmava a simpatia ali exposta pelas minhas idéias (que eram, no essencial para o artigo, identificadas com as de Edu Lobo, que eu tanto admirava mas de quem discordava tanto quando se tratava de opiniões e teoria), já que eu cria que ninguém ia ler aquilo. Não guardei nem por um dia a página do jornal. Quando, algum tempo depois, Capinan me mostrou o livro sobre Sousândrade e pronunciou o nome dos irmãos poetas que o haviam organizado, Augusto de Campos e Haroldo de Campos, eu não só não reconheci o nome como, ainda dessa vez, não o fixei.
Augusto e seu irmão Haroldo, juntamente com Décio Pignatari, formavam o núcleo do grupo de poetas que, no meio dos anos 50, lançaram o movimento de poesia concreta, uma retomada radical do espírito modernista dos anos 20 - e das ideias de vanguarda do inicio do século -, contra os pudores antimodernistas e antivanguardistas que tomaram conta da poesia e da literatura brasileiras, primeiro com os romancistas regionalistas dos anos 30 e, depois, com os poetas da chamada "geração de 45".
Os poetas concretos sentiam-se em sintonia com músicos europeus como Boulez e Stockhausen, que, nos anos 50, retomavam a radicalidade da escola de Viena (sobretudo Webern), e com os pintores que seguiam os caminhos de Mondrian e Malévitch, e, levando às últimas conseqüências o fato de que poesia não é propriamente literatura, valorizaram os aspectos físicos da palavra, criando um tipo de poema que foi qualificado inicialmente como visual - já que, sobre o papel, a ênfase caía na tipografia, no uso da cor e dos espaços em branco - mas que eles sempre quiseram, na expressão de Joy ce, "verbivoco-visual".
Conhecedores apaixonados dos movimentos pioneiros da primeira década do século – futurismo italiano, suprematismo e cubo-futurismo russos, dadá internacional etc. (com uma certa antipatia pelo surrealismo) -, eles tomaram posição bem definida em face dos modernismos dos anos 20, em face de uma história abrangente da poesia e, finalmente, em face dos roteiros que se deviam estabelecer para ela no futuro. Nesse sentido, criaram o que eles chamavam de seu 'pai-de-uma", uma seleção de autores obrigatórios na formação de uma sensibilidade nova e relevante: Mallarmé (o primeiro, com seu "Lance de dados", a pensar o poema sobre a página como uma constelação, e a usar o branco do papel como elemento estruturador): Ezra Pound (que foi quem lhes deu o conceito de "paideuma", além da aproximação com a escrita chinesa, sua monumental série de Cantos vista como composta à maneira dos ideogramas); Joyce (com suas palavras-montagens, a implosão da forma "romance" em Ulisses, e a invenção de uma translíngua em Finnegans Wake); Maiakóvski ("não há arte revolucionária sem forma revolucionária"); João Cabral de Melo Neto (o maior poeta brasileiro surgido depois do modernismo, pertencente, pela idade, à geração de 45, mas em tudo oposto a ela: um poeta das coisas vistas com olho lúcido e expressas em linguagem seca e rigorosissima); e. e. cummings (realizando gestos tipográficos isomórficos, fazendo até os sinais de pontuação protagonizarem lances fundamentais do poema), e Oswald de Andrade (o mais radical dos modernistas paulistas surgidos na famosa Semana de 1922), a poesia barroca (e os "metafísicos" ingleses), a poesia provençal.
O surgimento dos concretistas tinha sido escandaloso (a revista O Cruzeiro, de grande circulação, falou em "rock'n'roll da poesia"...) Embora contassem com a simpatia de uma figura gigantesca da poesia brasileira como foi Manuel Bandeira (mais velho que os modernistas, precursor destes e um mestre para sempre), eles encontraram forte resistência entre poetas, literatos e acadêmicos. Mas o nível de argumentação que eles sustentavam em suas respostas e defesas críticas era tão alto, sua cultura tão vasta, e sua determinação tão inabalável, que se tornaram um osso duro de roer na cena intelectual brasileira, impondo respeito mesmo onde não havia receptividade. O resultado disso foi que seus inimigos cercaram-nos com uma cortina de silêncio que era rompida de vez em quando por uma ou outra agressão desproporcional, e seus amigos tendiam a apoiá-los de modo sectário. Quando Augusto de Campos entrou em contato comigo - acho que foi Júlio Medaglia quem, já conhecendo seu interesse por meu trabalho, lhe disse que poderia arranjar um encontro através de Guilherme Araújo -, ele me deu de presente alguns números da revista Invenção, publicação dirigida por ele, Haroldo e Décio (o Grupo Noigandres, como eles se autodenominavam: noigandres é uma palavra encontrada num poema provençal cujo sentido ainda se discute e que aparece num dos Cantos de Pound como indecifrável por um conhecedor a quem o poeta vai recorrer para desvendar-lhe a significação), mencionou as afinidades que via entre o que eles faziam e o que nós estávamos
fazendo, e sobretudo falou de Lupicínio Rodrigues. Lupicínio foi um grande compositor, um negro do extremo Sul do Brasil - isto é, de uma área onde se pensa que a população é toda branca -, que ficara famoso por seus sambas-canções sobre mulheres infiéis e ciúmes monstruosos (no seu maior sucesso "Vingança", ele ameaça a traidora com uma praga que, décadas depois, faria a glória de Bob Dylan: "você há de rolar como as pedras que rolam na estrada/sem ter nunca um cantinho de seu..."), e cujas melodias tinham um caráter algo errático que lhes dava eficácia dramática e originalidade. Antes do artigo em que Augusto se referia a mim, ele escrevera um outro comparando favoravelmente a Jovem Guarda ao Fino da Bossa e, antes deste, um outro ainda sobre a poesia extremada de Lupicínio, seu realismo às vezes demasiadamente cru, o inusitado de suas composições melódicas e, principalmente, o extraordinário efeito que tudo isso alcançava quando apresentado pela voz surpreendentemente delicada do autor. Se acaso, no decorrer dessa nossa primeira conversa, algum silêncio parecia querer durar um pouco demais, Augusto recomeçava a falar em Lupicínio. Eu compartilhava do entusiasmo dele por esse compositor de quem eu sabia de cor um bom número de canções. Mas, como eu tinha admirações ainda mais intensas por alguns outros nomes da velha-guarda e sabia um vastíssimo repertório de um Olimpo de autores em cujo trono central sentava-se Dorival Caymmi, essa insistência em Lupicínio me soou um pouco como uma monomania. Ao voltar para casa, comentei com Guilherme, rindo: "Ele é mesmo louco por Lupicínio Rodrigues!".
O mais curioso é que Augusto, durante nossa conversa, mencionou o artigo que eu esquecera, e eu, que logo recuperei dele uma obscura memória, fiquei um pouco envergonhado de não poder comentar detalhes. Mas creio que uma cópia dele veio junto com os artigos sobre Lupicínio e os números de Invenção que Augusto passou às minhas mãos. Não se pode dizer que tenha havido uma verdadeira empatia entre nós. Ele parecia mais distante do meu mundo do que o tom do artigo dele me tinha feito imaginar. Quase todas as características daquilo que, no meu ambiente, nós chamaríamos de um "careta" se encontravam naquele homem metódico, muito branco, de bigode e com um sotaque paulista
imaculado. Por outro lado, nenhum traço do brilhantismo que impressionava num Glauber, num Rogério, mesmo num Ferreira Gullar, trazia um excedente de excitação à sua conversa medida e clarificadora. Sua mulher, Ly gia, uma pessoa muito doce e educada - além de sintonizada intelectualmente com os interesses do marido -, sentava-se ao seu lado demonstrando uma natural devoção a ele.
Tudo o que ele dizia - e com que ela concordava invariavelmente - me soava certeiro e justo, e seu apoio ao movimento em que eu me achava engajado era nitidamente sincero e notavelmente fundamentado. Mas tudo parecia vir de longe e estar destinado a permanecer despercebido num canto obscuro.
De fato, repetia-se no encontro pessoal o estranhamento já experimentado na leitura do artigo. No entanto, havia nos olhos muito míopes de Augusto, e atravessando os círculos concêntricos das lentes esverdeadas dos óculos, um raio permanentemente vindo de um ponto muito preciso de sua pessoa, um raio de doçura intacta, e de louca tenacidade na defesa dessa doçura. Isso fazia com que ele parecesse ter um direito especial de mostrar-se absorto, como os loucos, e também unia os pontos de outro modo dispersos de suas demonstrações de identificação com o que me interessava. Aquilo em seus olhos fazia dele, de repente, o menos careta de todos nós.
Os outros artigos de Augusto, mas sobretudo alguns poemas e textos introdutórios da revista Invenção, contribuíram para que eu entendesse o sentido profundo dessa nossa aproximação. Um desses textos especialmente - um quase-manifesto escrito por Décio Pignatari - pareceu expressar exatamente minhas preocupações. E no mesmo tom. Num tom que seria o meu se eu pudesse escrever aquilo. Havia algo de simplista nos artigos de Augusto escritos para ser entendidos por leitores de jornal que assistiam a festivais de música popular na televisão, mas esse texto escrito por Pignatari, tendo sido escrito para a bela revista de poesia que eles faziam circular a intervalos irregulares, era ao mesmo tempo complexo, sugestivo e extraordinariamente convincente. Era um texto para circular entre eruditos, mas eu, se pudesse, o poria sem modificações na contra capa do meu disco. Tratava-se de mais uma defesa dos postulados concretistas contra as investidas sociologizantes dos nacionalistas. Era uma crítica à folclorização mantenedora do subdesenvolvimento, e uma tomada de responsabilidade pelo que se passa no nível da linguagem por parte daqueles que trabalham diretamente com ela. Contrapunha à imagem do pescador de chapéu de palha e rede às costas, que era o símbolo da Editora Civilização Brasileira, o alerta para o fato de que, em países desenvolvidos, pescava-se com sonar e barcos bem equipados. E, respondendo ao poeta Cassiano Ricardo, um ex-modernista que chegara a colaborar com eles mas agora dizia esperar que eles "afrouxassem o arco", Décio encerrava o artigo (todo costurado pela conjunção e na sua forma latina de uso comercial, &) insistindo em que eles, os concretos, manteriam "o arco sempre teso" pois "na geléia geral brasileira alguém tem de fazer o papel de medula & de osso".
A imagem do arco teso e a expressão "geléia geral" (um trocadilho com "geleia real" que soa de fato engraçado ficaram em minha mente e delas falamos muito em nossas conversas no 2002 (este era o número do nosso apartamento; pouco tempo depois Décio Pignatari brincaria com isso, sugerindo que o número se referia ao ano seguinte ao 2001 do filme de Kubrick). A expressão "geléia geral" foi parar numa letra tropicalista de Torquato Neto para uma música de Gil (e no título de uma coluna assinada por Torquato na imprensa carioca na década seguinte), e a imagem do "arco teso" reapareceu explicitamente numa canção minha dos anos 70 e foi uma presença difusa por sob as palavras de muitas das minhas composições e declarações esses anos todos. O 2002, com sua boneca de fibra de vidro e seus móveis de acrílico transparente, tornava-se mais e mais animado. Gil estava sempre por lá. Assim também os Mutantes e, naturalmente, Guilherme, que morava dois andares abaixo. Zé Agrippino e Maria Esther apareciam de vez em quando. Waly e Duda vieram do Rio e estavam morando conosco. Eu os ouvia muito. Duda sobretudo continuava a ter enorme ascendência sobre mim. Eu considerava que o que eu fazia era algo útil, porém intelectualmente menor, se comparado ao que eles, muito mais cultos e muito mais adestrados mentalmente, viriam a fazer. Dedé brincava dizendo que eles eram nossos consultores. Achávamos bom que o dinheiro que eu ganhava desse para manter um apartamento amplo que podia acolhê-los, enquanto eles próprios não faziam os filmes e os livros que poderiam fazer de nós uma geração marcante na história da cultura brasileira. Conversávamos até altas horas da madrugada bebendo cerveja e eu e Dedé nos orgulhávamos de que nossa casa fosse uma permanente promoção de saraus inesquecíveis. As revistas, os livros e os artigos que Augusto me dava circulavam entre os membros dessa comunidade. E o perfil dos concretistas ia se tornando mais nítido para mim. Eles próprios - porque Augusto me apresentara a Haroldo e Décio - passaram a frequentar o 2002 com certa assiduidade. Suas visitas, no entanto, eram de natureza diferente das feitas por Agrippino, os Mutantes, Gil ou mesmo Rogério e Hélio Oiticica (a quem finalmente fui apresentado, numa ida ao Rio, pela espantosamente antenada jornalista Marisa Alvarez Lima): os poetas concretos telefonavam antes, marcavam hora, enfim, cumpriam as formalidades ditas burguesas, enquanto os desbundados entravam e saiam de nossa casa sem aviso, como se vivêssemos em regime comunitário. Essa é uma das marcas distintivas entre os românticos irracionalistas e os descendentes hiper-racionais dos simbolistas.
Aos poucos eu ia ligando os pontos das informações fortuitas que tivera a respeito dos concretos ao longo dos anos. Dedé lembrava claramente das referências a eles feitas pelo professor Yulo Brandão em seu curso de estética, quando ela estudava dança na Universidade dia Bahia. Mas eu não lembrava sequer de ter ouvido a expressão "poesia concreta". Eu tinha guardado o nome de Décio Pignatari daquela conversa com Boal numa festa do elenco do Zumbi, em 65. Mas os nomes dos irmãos Campos foram esquecidos imediatamente após serem ouvidos quando Capinan me mostrou o livro sobre Sousândrade. Lembro de ver, encantado, um poema de e. e. cummings publicado em Salvador no suplemento cultural do Diário de Notícias, suplemento que Glauber dirigia no início dos anos 60. A tradução para o português devia ser de Augusto, que é só quem traduziu cummings no Brasil, que eu saiba (com a rigorosa supervisão do autor através de longa troca de cartas), mas se seu nome estava impresso naquela página, não o gravei. Já nos anos 70, ouvi Glauber dizer que "começara concretista", numa referência a seu primeiro filme, um curta-metragem chamado O pátio, cujo "formalismo", segundo ele, o desinteressou quando se viu em meio a gente miserável na aldeia de pescadores onde, pouco tempo depois desse curta, foi filmar Barravento. Mas nem nas páginas do suplemento que ele dirigia, nem em nenhuma de suas declarações públicas da nossa fase soteropolitana, ouvi ou li dele uma só vez que fosse a expressão "poesia concreta" ou os nomes de seus inventores. Eu fora, sem embargo, influenciado indiretamente por eles, pois, aos vinte anos, em Salvador, eu fazia uma ligação entre João Gilberto, o cool jazz, os poemas de João Cabral, a arquitetura de Niemey er em Brasília e o uso de letras tipo "futura" sobre generosos espaços brancos nas páginas do suplemento cultural do Diário de Notícias. E os espaços brancos e os tipos "futura" eram a marca registrada da obra dos concretistas.





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