Por Leonardo Davino*
Vidraça
Demorei a escrever sobre Praia, disco que Mariano Marovatto lançou em 2013, por pura incapacidade de verbalizar o que sinto e penso a cada audição. Digo isso para afirmar a caoticidade desse texto constipado, mas urgente para sair.
Desde o primeiro contato, percebi que o disco precisava de muitas escutas. Como sempre faço, seja com um livro (um poema), seja com um disco (uma canção), tentei ouvir Praia em vários momentos, em diferentes situações - também de frente para o mar - e todas as vezes o disco me diz ter vindo do fundo escuro de um coração tropical. De outra margem possível e mais real, entre o solar e o lunar, entre a tristeza e a felicidade, porque o rigor formal e o experimento sonoro de Praia ao mesmo tempo nega e expõe algo profundo do Brasil, de nossa genética e contemporaneidade.
Marovatto decalca experimentos sonoros, a fim de compor um cântico íntimo e internacionalizante, roçando outras línguas. Para os sujeitos cancionais criados por Marovatto, a praia é um lugar entre o mar (aberto, sem cais) e o asfalto (opressor, sem salvação). A praia é ilha, como bem observou Ismar Tirelli Neto: "A Praia, aqui, é claustrofóbica. Mesmo que fosse imensa, mesmo que fosse a perder de vista – estaria toda ela contida em seus “botões”. Praia de ilha, praia de náufrago – uma solidão populosa de vozes espectrais, chiados fantasmáticos, dissonâncias, sons cuja procedência não conseguimos muito bem situar".
É bonito perceber como que sujeitos estranhos, que tinham tudo para "nadar e morrer na beira da praia" pairam a milímetros da areia (cama sonora), sem que isso indique redenção e/ou finitude. Tal resultado é obtido, tanto no procedimento de decalque sonoro já mencionado, quanto no apagamento da voz do cancionista. Assim, como um gesto de contra-selfie, ou um selfie por dentro do olho da câmera (sempre lenta), Mariano está e não está nos sujeitos das canções.
Cada espectro vocal que aparece em Praia está movido por uma paixão que reapropria os sujeitos cancionais com um vigor abstrato pouco habitual em canção. Abstrato e geométrico, naquilo que esse conceito tem de rigor, de exatidão, de movimento em direção à certeza.
Ouça-se o exemplo de "Vidraça", de Mariano Marovatto e Romulo Fróes. Aqui, a canção é pedra. Pedra é palavra escrita na palma da mão, essa "epiderme da alma", como Arnaldo Antunes cantou. Há um convite à audição da rua, das tais "vozes das ruas". "Pega essa pedra, leva pro colchão", diz o sujeito. A pedra-canção é eco e silêncio dessas vozes. Mas a rua é preciso ser escutada no cotovelo, ou seja, na espera, no devir, assim como o ciúme que "dói nos cotovelos, na raiz dos cabelos, gela a sola dos pés", como canta Elza Soares.
O sujeito de "Vidraça" tem ciúme da rua? Ele sugere que se "não tem vidraça no cemitério", esse campo santo povoado de vozes, só resta levar a pedra pro colchão. A pedra atravessa a voz e a melodia. E intimida: "Me conta agora / o teu segredo / sai dessa banda / derruba o prédio / desliga o rádio / me dá remédio / deságua logo essa constipação".
Que banda é essa mencionada pelo sujeito da canção? Banda musical, constipada e urgente de soltar o som? Outra banda da terra, oposta à banda em que ele vive? Essas questões são intensificadas na estrutura formal da canção. Tudo é dito/cantado numa quase-vinheta em câmera lenta. "E nunca o ato mero de compor uma canção / Pra mim foi tão desesperadamente necessário", cantaria Caetano Veloso.
A antena parabólica de Praia capta videoclips que testemunham e interrogam a melancolia tropical dos sujeitos das canções, sujeitos presos na praia-ilha à espera de vozes marinhas, sirênicas. Marovatto dilui esse aglomerado na água poluída do sangue poético-cancional. E o segredo dói pra fora na paisagem, arde ao sol do fim do dia. E mais não ouso dizer.
***
Vidraça
(Mariano Marovatto / Romulo Fróes)
É bem mais fácil
não tem mistério
palavra escrita na palma da mão
Escuta a rua
no cotovelo
deserto, asfalto, latido de cão
Não tem vidraça
no cemitério
pega essa pedra, leva pro colchão
Me conta agora
o teu segredo
sai dessa banda
derruba o prédio
desliga o rádio
me dá remédio
deságua logo essa constipação
.
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
0 comentários:
Postar um comentário