segunda-feira, 29 de agosto de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



Mas pelo menos vivemos uma fugaz sensação de liberdade, por algumas horas nos sentimos mais perto dos jovens do mundo. Mas na segunda-feira tudo voltou ao normal na Aquarius Produções Artísticas, firma que abri em sociedade com André Midani e os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, para produzir jingles, shows e eventos musicais. Contas a pagar, trabalhos a fazer, clientes a visitar. Embora produzíssemos muito, ganhávamos pouco: as agências só pagavam pelos jingles aprovados, e como tínhamos que pagar todas as
despesas de músicos e estúdio, o prejuízo com um jingle recusado comia o lucro de dois aprovados: era um péssimo negócio. No fim do ano, uma boa notícia: Boni e Magaldi nos encomendaram uma música de Natal, a ser cantada por todo o elenco da TV Globo, como mensagem de boas festas da emissora. Marcos criou uma melodia que achamos linda, parecia Burt Bacharach, e Paulo Sérgio e eu fizemos a letra de acordo com o briefing que eles nos deram. Boni e Magaldi adoraram a música e acharam que a letra não era lá grande coisa mas também funcionava, que expressava muito bem a mensagem de esperança e fraternidade que queriam passar. Aprovada a música, chamamos o MPB 4 e o Quarteto em Cy e gravamos com eles, dobrando e quadruplicando as vozes no estúdio, para produzir a massa vocal das 60 pessoas — o elenco estelar da TV Globo — que “cantariam” na gravação no Teatro Fênix. No dia da gravação, animadíssimo, levei uma ducha gelada: minha amiga Dina Sfat estava furiosa com a música que teria que “cantar” e me chamou de lado para uma amistosa mas dura cobrança: como tínhamos feito aquilo? Era uma vergonha: aquela música servia aos objetivos da propaganda da ditadura, com a cumplicidade da TV Globo. Fiquei chocado: mesmo em minhas piores paranóias nunca imaginei nada parecido. Reconheci que a letra realmente passeava entre o sentimentalismo e um delirante otimismo, mas Dina reconheceu que seria muito difícil escapar desses clichês natalinos e concordamos que seria impossível fazer uma música de Natal de oposição. Depois, Dina e as estrelas da Globo — Tarcísio Meira e Glória Menezes, Francisco Cuoco, Marília Pêra, Regina Duarte, Cláudio Marzo, Leila Diniz, Chico Anísio, Cid Moreira, Paulo José, Lima Duarte, Paulo Gracindo e grande elenco — cantaram animadamente: “Hoje é o novo dia de um novo tempo que começou...”

Veiculada maciçamente, a campanha da Globo foi um sucesso nacional fulminante e o nosso jingle se transformou na música mais tocada e cantada do fim de ano: em todas as festas, em todas as churrascarias, em todas as casas, em vez de “Jingle Bells” cantava-se “Um novo tempo” e eu não sabia se sentia orgulho ou vergonha. “Hoje a festa é sua, hoje a festa é nossa, é de quem quiser, é de quem vier.” Em janeiro de 1972, a Aquarius viveu seu melhor momento: acertamos com o empresário Guilherme Araújo em Londres e fomos os produtores dos shows que marcaram a volta de Gil e Caetano do exílio, no Teatro João Caetano e no Teatro Municipal, gravados ao vivo pela TV Globo. Eles chegaram discretamente e foram recebidos festivamente como heróis, vieram com seus novos discos gravados em Londres, suas músicas em inglês, seus cabelos imensos, suas novas bandas (a de Caetano liderada por Jards Macalé) e suas novas músicas. E até seu próprio equipamento de som, pilotado pelo inglês Maurice Hughes. Os shows foram triunfais, com Caetano dando ênfase a melodias elaboradas e a um intimismo gilbertiano e Gil apresentando arranjos vigorosos, cheios de jazz e funk, e lançando seu rock “Back in Bahia” e a sensacional “Expresso 2222”. No final, em vez de uma apoteose roqueira, como tantos esperavam deles, vindos de onde eles vinham, os dois surpreenderam cantando juntos um samba-de-roda do velho baiano Riachão, que soou como um comentário irônico, uma forma tropicalista de expressar suas novas posições, com um pé na tradição e outro no futuro.

“Xô, xuá, cada macaco no seu galho xô, xuá, eu não me canso de falar...” E fecharam com um surpreendente e antigo sucesso das irmãs Aurora e Carmen Miranda, rebolando alegre e provocativamente no palco: “Nós somos as cantoras do rádio levamos a vida a cantar de noite embalamos seu sono de manhã nós vamos te acordar...” Na platéia, Cacá Diégues adorou, mas sentiu um frio na barriga: era exatamente a música que ele tinha pescado no fundo do baú para ser o tema principal, o gran finale do seu filme Quando o carnaval chegar, que começaria a rodar em poucos dias com Chico Buarque, Nara Leão, Maria Bethânia e Hugo Carvana nos papéis principais. Às vésperas do carnaval, encontrei Marília Pêra num corredor da TV Globo, me apresentei, conversamos um pouquinho e convidei-a para ir passar o carnaval na Bahia comigo. Ela riu e disse que já tinha compromisso: era o destaque da escola de samba Imperatriz Leopoldinense que apresentaria o enredo “Alô, alô, taí Carmen Miranda”, onde encarnaria a própria.
 
Fui sozinho para a Bahia, onde não fiquei sozinho um minuto, tomando cerveja com Caetano e Bethânia e seus irmãos na Praça Castro Alves, dançando atrás do trio elétrico, mergulhando nas águas verdes do Porto da Barra e acabando na praia de Arembepe, transformada em uma colônia hippie, para onde tinham se mudado temporariamente muitos amigos. Lá, vivendo em cabanas de pescadores, entre o mar azul e a lagoa verde, dentro de uma paisagem idílica e selvagem, jovens rebeldes fugidos da cidade viviam com simplicidade e liberdade, comendo frutas e peixe frito, tocando violão,
namorando, fumando maconha, viajando de ácido e conversando, conversando muito, enquanto o tempo parecia não passar. Foi o “verão do desbunde”, que para mim durou três dias: tinha filha para criar, tinha que trabalhar na Philips, na Aquarius e na TV Globo, onde
apresentava um programinha de cinco minutos todos os dias, antes da novela das sete, com as novidades musicais nacionais e internacionais. Chamava-se “Papo firme” e tinha como tema de abertura o “Domingo o parque” de Gilberto Gil. Na Bahia, vi Marília na televisão, de Carmen Miranda, cantando e dançando com infinita graça à frente da escola de samba no Rio e levando-a a surpreendente vitória. Com 28 anos, loura platinada, olhos e boca enormes e um talento efervescente, ela era a atriz do momento, produtora e estrela do maior sucesso teatral do ano: a revista A vida escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato, de
Bráulio Pedroso, com músicas de Roberto e Erasmo. Foi quando a vi pela primeira vez, maravilhado, no Teatro Ipanema. Ao mesmo tempo, Marília estourou na televisão como a “Shirley Sexy” da novela “O cafona”, também de Bráulio, ao lado de Francisco Cuoco. Depois do carnaval, já de cabelos curtos e escuros, ela estava estreando no tradicional night club Night and Day, um musical sobre Carmen Miranda, A pequena notável, que fui correndo assistir. Fiquei completamente apaixonado. Por Marília e pela Carmen que ela vivia. Fui cumprimentá-la no camarim, saímos para jantar, voltei na noite seguinte e na outra e na outra e em poucos dias estávamos namorando.

Marília era fã de Elis e me contou que as duas, muitos anos atrás, no início de suas carreiras, tinham disputado o mesmo pequeno papel na montagem carioca do musical americano Como vencer na vida sem fazer força. Embora no teste de canto Elis tivesse arrasado, nos testes de dança e interpretação Marília acabou ganhando o papel. Também me falou com alegria de uma participação especial que tinha feito recentemente no programa de Elis na TV Globo, onde protagonizaram duas vedetes de teatro de revista, com maiôs de paetês, plumas na cabeça, meias arrastão e saltos altíssimos. Com imensos cílios postiços e figurinos idênticos, as duas brincavam de rivais, uma atropelando a outra, disputando os espaços, dançando e cantando “Sucesso aqui vou eu”, um divertidíssimo pastiche de canção da Broadway, criado por Rita Lee e Arnaldo Baptista para o fashion show “Blow Up”, da Rhodia. Fui com Marília à estréia do show de Elis no Teatro da Praia. Com a plateia invadida por uma multidão de convidados, sobrou só um lugarna primeira fila, onde me sentei feliz com Marília no meu colo e dali assistimos ao show e aplaudimos intensamente. No dia seguinte, recebi um telefonema do cabeleireiro Oldy, grande amigo de Elis, me dizendo que ela queria muito falar comigo, que queria conversar, esclarecer umas coisas. Apareceu de madrugada na casa dos meus pais, onde eu passava uns dias, se desculpou muito pelo rompimento abrupto e me disse que estava se separando definitivamente de Ronaldo. Mas nada era mais como antes.




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